Como
pode ser prometida a felicidade numa sociedade de competição generalizada? Uma
competição tão naturalizada e entranhada cuja narrativa teria seu início na
seminal corrida dos espermatozoides na reprodução humana. A felicidade somente
seria possível no plano da ideologia: a felicidade individual às custas da
infelicidade da maioria. Esse é o tema do curta de animação “Happiness” (2017)
do britânico Steve Cutts: ratazanas antropomorfizadas correm frenéticas em
metrôs, ruas, calçadas e shoppings lotados, lutando entre si pela posse de
mercadorias em uma Black Friday selvagem. E todos cercados por centenas de
peças publicitárias que prometem felicidade com a compra de qualquer coisa.
Quanto maior a infelicidade que a competição provoca, mais valorizada é a mercadoria
“felicidade” no mercado. A sátira social do curta “Happiness” questiona o
modelo de felicidade prometido, com ácida ironia.
Recentemente
analisado nesse Cinegnose, no filme Stalker (1979) de Andrei Tarkovsky (clique aqui) temos uma sequência na qual
os protagonistas, ao chegarem no “Quarto”, local em que supostamente realizaria
desejos de todos que ali chegassem, discutem o conceito de felicidade.
Questionam o “stalker”, o guia que os levou até ali, quantos desejos realizados
pelo Quarto aumentaram o número de crimes, golpes de Estado, máfia,
superbactérias e toda a imundície oculta no mundo – dinheiro, conquista de
mulheres, vinganças...
Seria toda a felicidade realizada às custas da
infelicidade alheia? O stalker defende seu trabalho de guia das pessoas que
buscam a realização dos desejos, afirmando que ali apenas entram os “bons”: a
sociedade justa, a realização do reino de Deus na Terra. Ao que o interlocutor
responde: “Isso não é felicidade, é ideologia!”.
O curta
de animação Happiness (2017), do
britânico Steve Cutts (“Are You Lost in the World Like Me”, vídeo-clip criado
para DJ Moby – já analisado pelo Cinegnose:
clique aqui), coloca em questão esse
conceito de felicidade na atual sociedade de consumo baseada na competição e
nos modelos de conquistas oferecidos pela Publicidade. E principalmente como
numa sociedade construída sobre a ideia de competição generalizada, os modelos de
felicidade somente podem realizar-se como ideologia.
Em
termos de retórica visual, todo o argumento do curta é inspirado na analogia de
homens com ratos: vagões de metrôs, calçadas e locais de trabalho apinhados de
ratos antropomorfizados, correndo e lutando em ritmo frenético, cada um por si.
E tudo
emoldurado por mídias publicitárias (outdoors, cartazes, TV etc.) mostrando
modelos de ratos felizes e vitoriosos oferecendo produtos e serviços –
mercadorias que ou foram conquistadas após a vitória na corrida pela
felicidade, ou que, ao serem compradas, ajudaram a conquistar a vitória e a
felicidade.
Pode
parecer batida ou clichê essa analogia de homens com ratos – afinal, os
nazistas já usavam esse dispositivo retórico na propaganda contra judeus.
Mas em Happiness a função é completamente
diferente, lembrando o clássico dispositivo semiológico que Roland Barthes
chamava de “método de comutação”:
encontrar em um texto ou imagem a menor unidade de significação,
procurando alterar um signo por outro. Até encontrar a mudança de significado.
Se o tema é a sociedade competitiva humana, troque a menor unidade (homem) por
outro signo (rato) e teremos uma interessante relação de estranhamento e
distanciamento dos espectadores. Distanciamento necessário para refletirmos
sobre o tema.
A falta de
identificação e projeção com ratos se espremendo no metro lotado, nos força o
estranhamento e dissonância necessários para uma abordagem mais intelectual e
fria.
O Curta
Ao som de
“Habanera” da opera “Carmen” de Georges Bizet, Happiness inicia com outra curiosa analogia mas que revela o quão
profundo é o alcance do paradigma da competição generalizada: vemos um rato
andando cada vez mais rápido sob um fundo branco, até alcançar outros ratos em
um espécie de corrida. As longas caldas e o movimento frenético lembra bastante
a corrida de espermatozoides para o óvulo.
Essa imagem é
simbólica: a sociedade legitima a competição, entre outras coisas, através
dessa interpretação da reprodução humana como resultado de uma competição
biológica de milhões de espermatozoides. A analogia ideológica é clara: a
competição já está encrava na Natureza, é a razão da própria vida.
Isso chama-se
“darwinismo social”, aqui ironicamente representado nessa primeira sequência do
curta.
Vemos estações
de metros, calçadas, corredores, escadarias, ruas apinhadas de ratos numa
corrida frenética, todos cercados pelas mais diversas peças publicitárias: cada
uma prometendo “Felicidade” com um produto diferente – refrigerante, academia
de ginástica, roupas, bebidas, luminoso de um filme no cinema chamado
“Felicidade” etc.
Para todos
desembocarem em uma Black Friday, numa disputa selvagem pelos produtos em
promoção. Até pularem pedaços de corpos que voam junto com smartphones e caixas
de produtos diversos.
Nosso rato
protagonista sobrevive à Black Friday todo machucado e cansado arrastando uma
HD TV. Mas seu animo é renovado ao pular para dentro de uma Ferrari vermelha e
sai dirigindo velozmente... até parar no próximo congestionamento interminável.
Parado no engarrafamento
toma um multa, ladrões roubam os pneus da sua Ferrari, o carro é pichado.
Estressado e cansado de tudo, vê outdoors de bebibas alccólicas que prometem
mais felicidade – “Beba, esqueça, sorria!”, promete a cerveja “Felicidade”;
“Beba e mande a tristeza embora!”, anuncia a marca de uísque “Felicidade”; e a
vodka “Absolute Happiness” prometendo a “pura felicidade”.
O nosso herói
enche a cara até desmaiar para mais tarde tomar a prescrição médica: “Cápsulas
de Felicidade”, para se transformar numa versão caricata de um rato feliz ao
estilo Mickey Mouse.
Uma nota de
dólar perdida na rua será a isca para atrair o nosso infeliz protagonista a uma
ratoeira: o emprego infeliz e sem sentido.
A ética da felicidade como equivalente geral
Felicidade, esse
substantivo feminino que se tornou o equivalente geral da retórica publicitária
(no consumo qualquer coisa pode ser o suporte para esse suposto “estado durável
de plenitude”), está condenado a se realizar na sociedade competitiva apenas
como ideologia – como alerta os protagonistas do filme Stalker, uma “felicidade” às custas da infelicidade da maioria
deixada para trás.
Se na filosofia
grega da antiguidade a “felicidade” era um conceito ligada à ética (a estreita
relação entre a virtude de caráter, a felicidade e a importância dos bens
externos como a saúde, a riqueza e a beleza), na sociedade de consumo apenas os
bens externos foram considerados e a virtude de caráter esquecida. Afinal, numa
sociedade de competição generalizada espera-se dos vencedores menos virtude e
muito mais capacidade de adaptação a cada contexto que muda no jogo. Muito mais
flexibilidade do que uma rígida coluna vertebral – o que torna a ética uma
noção relativa a cada mudança de cenário.
O que o animador
britânico espera ao substituir seres humanos por ratos que competem no jogo da
felicidade, é produzir em nós estranhamento e distanciamento. Na atual
ideologia da meritocracia e empreendedorismo, essa noção de felicidade
individual às custas da infelicidade generalizada parece natural – é assim
desde os espermatozoides...
Ver ratos
antropomorfizados lutando numa Black Friday e perseguindo uma nota de dólar até
cair na ratoeira do trabalho sem sentido é a irônica estratégia de Steve Cutts: se a sociedade é naturalizada
como darwinista social, nada melhor do que colocar ratazanas no lugar de seres
humanos para que nós, humanos, fiquemos horrorizados de nos vermos como animais
de volta à Natureza.