Em um mundo pós-apocalíptico, um homem fará uma jornada espiritual em busca do... Papai Noel, para que realize seu sonho de leva-lo para uma espaçonave que está parada no céu. Enquanto isso, sua esposa reza num altar com a foto de Michael Jordan para que divindades como “Justin Bieber IV” e “Paul MacCartney XI” os proteja nessa difícil missão. Esse é o primeiro filme de ficção científica da Etiópia: “Crumbs” (2015) de Miguel Llansó sobre um futuro em que tudo o que restou da antiga civilização foram brinquedos, objetos e detritos de plástico e vinil da extinta cultura pop. Sem terem a memória do mundo anterior ao apocalipse, criaram uma nova mitologia transformando todos esses restos do passado em símbolos místico-religiosos e amuletos de sorte. Toda a bizarrice e surrealismo de “Crumbs” nos faz pensar: assim como eles, será que também mitologizamos símbolos e objetos antigos, criando novas religiões tão loucas quanto as do filme “Crumbs”?
Todos os seus sonhos de riqueza e poder ilimitado, todos os seus sonhos de ambição desproporcional; a satisfação de se sentir análogo aos deuses, todos os seus impulsos sexuais que você julgava infinitos; todos esse sonhos faraônicos serão reduzidos a uma série de figuras de plástico barato que flutuarão na estratosfera uma vez que tudo finalmente explodirá.
Essa
frase dita por Seifu Yohannes, o primeiro professor etíope graduado em
engenharia nuclear, foi a inspiração para o diretor espanhol-etíope Miguel Llansó
produzir o inacreditável conto pós-apocalíptico Crumbs (2015), ambientado nas empoeiradas paisagens da Etiópia,
povoados em ruínas e parques temáticos abandonados.
Um mix
de ficção científica, aventura, fantasia, romance, mistério, surrealismo e non sense.
E filmado e produzido na Etiópia, o primeiro filme de ficção científica daquele
país africano. Definitivamente, é o que este Cinegnose classificaria como um “Filme Estranho”.
Além de
explorarem arquétipos a um nível de estranhamento e non sense, Filmes Estranhos
são capazes de imaginar o futuro isolando elementos e processo do mundo em que
estamos vivendo, exagerando-os.
E para
completar, Crumbs de certa forma
recria o argumento do filme clássico africano O Deuses Devem Estar Loucos (produção sul-africana de 1980 na qual
uma garrafa de Coca-Cola jogada de um avião cai em uma tribo, transformando a
vida dos bosquímanos do Kalahari num caos), além da inspiração imagética de Stalker (1979), do diretor russo Andrei
Tarkovsky.
Migalhas de uma civilização
Tudo se
passa há muito tempo em um futuro indeterminado, após uma guerra global que
detonou um cataclismo nuclear que varreu o planeta. Tudo o que sobrou da antiga
civilização para os poucos humanos que restaram foram detritos ou “migalhas”
(“crumbs”) da cultura pop: brinquedos, bonecos, adereços, enfeites, bibelôs de
plástico, além de discos de vinil e roupas de fantasias como a do Super-Homem.
E muitos desses objetos ainda nas embalagens originais, como as do hipermercado
Carrefour, por exemplo.
Assim
como a garrafa de Coca-Cola do filme sul-africano, fora do seu contexto
original, uma espada de plástico do Max Steel, uma foto do campeão de basquete
Michael Jordan, um brinquedo das Tartarugas Ninjas ou uma pistola espacial de
plástico transformam-se ou em talismãs mágicos, objetos de adoração religiosa
ou simplesmente moedas de troca – como um disco de vinil de Michael Jackson.
Justin
Bieber e Paul MacCartney, ao lado de Einstein, Stephen Hawking e Carrefour são
considerados antigas divindades da época pré-apocalipse. Em particular,
Carrefour, Papai-Noel e Mattel (fabricante de brinquedos) consideradas
divindades provedoras de todas as migalhas que são encontradas nas ruínas da
velha civilização.
Além de
baratas, após uma hecatombe nuclear somente sobrará da nossa civilização tudo
aquilo que não biodegradável. Se a Antiguidade nos deixou como legados
pirâmides, templos e estátuas, tudo que deixaremos serão migalhas de plástico,
acetato e vinil (durarão no mínimo 500 anos), mais do que prédios e shoppings.
E ao
lado desses detritos da cultura pop, restará no homem o atemporal impulso
religioso por transcendência e busca de algum sentido ou propósito místico para
a existência. E esses futuros e enigmáticos objetos de plástico serão cercado
pela aura de uma nova mitologia religiosa.
É a
essência de um Filme Estranho: se esses objetos e marcas já são idolatrados
como divindades seculares na sociedade de consumo, no futuro, fora do contexto
publicitário atual, facilmente se tornarão objetos de culto religioso. Em Crumbs vemos de forma exagerada, aquilo
que já somos.
O Filme
Candy (Daniel Tadesse) passa seu tempo
escavando e procurando objetos de plástico do passado (fala-se de um “século
III”, antes do apocalipse nuclear) e escapando de ladrões, um deles vestido com
um uniforme nazista e uma máscara de gás.
Alguns desses
objetos encontrados são levados para o seu amor, Birdy (Selam Tesfaye), e são
depois colocados em um altar de culto
religioso à divindade representada pela foto de Michael Jordan, enfeitada por
dois pinos de boliche e luzes de led de Natal...
Por
falar em boliche, o casal também passa o tempo em uma pista de boliche em
ruínas. Repentinamente, o mecanismo de carregar as bolas para as pistas começa
a funcionar por conta própria, assustando Candy e Birdy.
Enquanto
isso, outro fenômeno insólito começa a ocorrer: uma velha nave alienígena que
paira há muito tempo sem atividade no céu (lembrando o filme Distrito 9), repentinamente começa a
funcionar e seu campo magnético provavelmente está acionando o mecanismo da
pista de boliche.
Essa
misteriosa circunstância produz uma epifania místico-religiosa em Candy: ele e
Birdy terão que ir para aquela espaçonave onde terão um filho que será o rei
das estrelas. Para realizar essa profecia, Candy tem que primeiro encontrar uma
vidente, que lhe dirá onde está Papai-Noel, divindade que realizará todos os
seus sonhos... assim como ele trás todos aqueles talismãs da Mattel,
Carrefour...
Candy
despede-se do seu amor para seguir sua jornada espiritual, enquanto Birdy reza
no seu altar da divindade do basquete, pedindo a proteção dos deuses “Paul
MacCartney XI”, “Justin Bieber IV”, “San Pablo Picasso” e... claro, “Carrefour”
para a difícil jornada do marido.
Crumbs é um daqueles filmes que
deixam apenas duas alternativas: ou o espectador rejeita tudo como um imenso
besteirol, inverossímil, pura perda de tempo e celuloide; ou aceita as
premissas do universo surreal do filme, diverte-se e encara a narrativa como um
estranho conto de fadas pós-apocalíptico.
Mas o
ponto a favor de Crumbs é que a
narrativa entrega uma experiência única e concisa de 68 minutos. Um filme que
cria seu próprio universo, sua própria linguagem e lógica ficcional. Um mundo
totalmente outro, no qual o futuro se desconectou totalmente com o contexto do
passado recriando toda uma mitologia em cima de prosaicos objetos. Por exemplo,
a espada do Max Steel (ainda na embalagem original da Mattel) teria sido um
arma dos “guerreiros Molegons”.
Religiões arbitrárias
Crumbs sugere também uma analogia
bem herética sobre a maneira como interpretamos na atualidade os símbolos e
ícones religiosos: será que, assim como naquele universo futuro, também nós
estamos atribuindo significados arbitrários a objetos ditos “religiosos”? Por
exemplo, ao interpretarmos na literalidade os versículos bíblicos do Gênesis ao
Apocalipse também não estaríamos criando os nossos próprios “guerreiros
Molegons?”.
Também
criamos intrincadas simbologias e mitologias a objetos do passado como a cruz,
pirâmides, estátuas, escudos e espadas. Os nazistas fizeram isso com o
ocultismo nazi, recriando uma mitologia própria em cima de objetos cristãos,
místicos e pagãos. Tiraram símbolos e objetos dos contextos originais para
inventarem uma nova religião cujo propósito era tornar-se global.
A certa
altura do filme, quando Candy finalmente encontra Papai-Noel, vestido com um
uniforme do Super-Homem, pergunta para ele se conhece aquele “S” estampado no
peito da roupa azul. Ao que o Papai-Noel responde: “parece um símbolo nazista!”.
Mais
além, Crumbs suscita a questionarmos
como marcas e ícones atuais são novas formas religiosas secularizadas pela
Publicidade e Propaganda. Uma nova religião globalizada a um nível que jamais
qualquer religião conseguiu na História. Uma nova religião que, assim como em Crumbs, conseguiu re-simbolizar as
antigas religiões, transformando-as em novas mercadorias disponíveis no mercado
religioso.
Os efeitos futuros das migalhas da cultura pop
A certa
altura em sua jornada espiritual nas terra áridas pós-apocalípticas, Candy
encontra um cinema abandonado: há anos o cinema apresenta, em loop, o mesmo
filme do Super-Homem para uma audiência inexistente. Fascinado, Candy olha para
o herói que voa para salvar Lois Lane de um acidente de carro.
Por
isso, Crumbs tem um forte comentário político-social: mesmo num futuro
pós-apocalipse, ainda a cultura pop globalizada terá grande influência no
imaginário das gerações futuras. O conceito do Super-homem sustenta a crença de
que as pessoas são onipotentes e que progressivamente superarão seus limites. A
fé no progresso pessoal e da realização de todos os sonhos.
Essa
ideologia pega o exemplo de um poucos sortudos, para começar, o modelo do
próprio super-homem. Para depois apresentar modelos de pessoas bem sucedidas: o
vencedor da loteria, a menina que veio da pobreza na periferia de São Paulo e
entrou em Havard, a modelo de moda que casou com um astro de futebol americano
etc. Um sistema eficaz de controle dos nossos desejos: “Nunca desista de seus
sonhos!”, é a máxima do Capitalismo globalizado.
Por isso
a cultura pop atual é cada vez mais infantil, com Disneylândia, Cristiano
Ronaldo, Dubai, Paris Hilton como modelos degradados de felicidade para
servirem de cortina de fumaça para a miséria e injustiças.
O
surrealismo e bizarrice de Crumbs é
exatamente isso: a disparidade entre os sonhos do protagonista e os limites da
realidade – como os modelos de felicidade de uma civilização que se extinguiu
ainda continua com seus efeitos deletérios mesmo num futuro distante. Por meio
das migalhas e detritos da cultura pop.
Ficha Técnica
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Título: Crumbs
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Diretor: Miguel
Llansó
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Roteiro: Miguel Llansó, Daniel Worku
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Elenco: Daniel Tadesse, Selam Tesfaye, Mengistu Berhanu,
Tsegaye Abegaz
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Produção: BiroBiro Films, Lanzadera Films
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Distribuição: IndiePix Films
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Ano: 2015
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País: Etiópia
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