Um
repórter cobrindo ao vivo um congestionamento de empilhadeiras em um depósito
central de produtos vendidos pela Internet. Enquanto isso, uma outra repórter
foi destacada para ficar o dia inteiro numa espécie de “sala de guerra” na
qual, através de um telão, as vendas e os números acumulados dos valores dos descontos eram acompanhados em tempo real . Agora o viés da grande mídia para a Black
Friday virou uma espécie de Teleton comercial. Só que ao invés de um evento em
prol de crianças que necessitam de cuidados especiais, agora virou uma espécie
de contagem progressiva de um País que estaria saindo da crise. Basta um
simples exercício de jornalismo comparado para perceber a radical mudança de
viés, principalmente da Globo: se de 2010 a 2015 (período do jornalismo de
guerra e de esgoto) era “Black Fraude” e “Black Friday da crise”, agora tornou-se
indicador de um País que lentamente estaria saindo do buraco depois da
“irresponsabilidade fiscal” do passado. Além de revelar mais uma contradição em
que a Globo se mete: ao mesmo tempo que pede a cabeça de Temer para aparentar
imparcialidade, tem que defender as reformas daquele que supostamente quer
derrubar.
Esse foi
o tom histérico e surreal da cobertura da grande mídia (em particular da Globo)
para a chamada “Black Friday” que, ao lado do Halloween, é mais um desses
eventos importados que de uma hora para outra se transformam em pauta da agenda
midiática.
O evento
comercial que originalmente é o dia que inaugura a temporada de compras
natalinas, chegou no Brasil em 2010 reunindo mais de 50 lojas de varejo e foi
totalmente online. A Black Friday
nacional chegou em pleno fenômeno sociológico do surgimento da nova classe
média (a “classe C”) nos tempos em que as políticas neodesenvolvimentistas dos
governos lulopetistas estavam de vento em popa.
Mas basta um
rápido exercício de análise em jornalismo comparado para percebermos como, a
partir do ano passado, a Black Friday passou a ser coberta pela grande mídia
com um viés totalmente outro: em 2016 com mudanças ainda tímidas para, nesse
ano, transformar-se em acontecimento com a estrutura de cobertura com ares de
megaeventos como Carnaval ou Copa do Mundo.
Black Friday era um incômodo
De 2010 a 2015 a cobertura da grande mídia
iniciou tímida como um evento de e-commerce,
para aos poucos assumir como acontecimento comercial importante cujo montante
de vendas dobrava a cada ano. Mas dentro de um contexto midiático tenso: era o
período de jornalismo de guerra no qual a mídia corporativa assumiu
compulsoriamente o papel de oposição política a um governo que insistia em
permanecer no poder apesar do bombardeio noticioso diário com os escândalos do
mensalão e, depois, com a artilharia pesada da Lava Jato.
Com o auge do
neodesenvolvimentismo, tocado pelas notícias das potenciais riqueza da
descoberta do pré-sal para o País, os números anuais crescentes da Black Friday
se tornaram um incômodo para a grande mídia, dentro da construção da narrativa
de uma suposta crise econômica que apontava em direção ao abismo. Naquele
período, todos os esforços midiáticos estavam na estratégia da produção de uma
crise autorrealizável. A crise política já estava descendo a montanha a baixo
como uma bola de neve. Agora era a vez da crise econômica.
Ao vivo: cobertura de congestionamentos de empilhadeiras e progressão dos números do Black Friday - um novo Teleton? |
Basta dar uma
olhadas nas manchetes e coberturas televisivas da Black Friday desse período para
perceber as reservas, desconfianças, e, principalmente, o viés do jornalismo
adversativo dominado pelas conjunções “mas”, “porém”, “contudo” etc. baseado na
presunção da catástrofe.
Hoje, a Black
Friday transformou-se na pièce de
resistance da grande mídia para provar que a economia brasileira está
retomando (lentamente) a trajetória do crescimento – o “mercado” estaria dando
sinais de otimismo com as diversas reformas (trabalhistas, previdenciárias
etc.) prometidas pelo governo do presidente desinterino Temer.
Black Friday
numa conjuntura de “inflação baixa” como destacam os analistas econômicos
“mandrakes” – não importa se é uma deflação originada numa estagnação econômica:
o que importa é que os preços caem, aumentando o “poder de compra” de quem não
tem mais emprego e salário...
Os dilemas da Globo
Além do atual
viés midiático de inflar histericamente a Black Friday, revela principalmente
mais um dilema em que a Globo se meteu. O primeiro dilema surgiu no seu jornalismo
de guerra: conciliar os interesses comerciais (atrair anunciantes) com a
militância do golpe político.
Depois veio o
segundo: após se aliar até com o inferno (a direita hidrófoba e “politicamente
incorreta”) e remexer a lama do psiquismo nacional, agora a emissora adota
apressadamente o tom “politicamente correto” (a pauta do combate à qualquer
forma de intolerâncias – religiosa, gênero, raça etc.) para tentar dizer que
sempre teve as mãos limpas.
Nesse momento
vive o terceiro dilema: pede a cabeça do desinterino Temer desde que bateu o
bumbo das denúncias do PGR de Rodrigo Janot para, num futuro próximo, quando
Lula for preso ou inelegível, posar de imparcial; mas, ao mesmo tempo, tem que
apoiar as reformas desse mesmo governo que supostamente quer derrubar – afinal,
Temer segue à risca as reformas neoliberais do Consenso de Washington.
E a pièce de resistance em que se tornou a
Black Friday desde 2106, é uma das peças da nova narrativa de um País que estaria
voltando a crescer depois das “irresponsabilidades fiscais” do lulopetismo.
Black Friday em tempos de jornalismo de guerra
Tudo começou em
2013 quando a mídia corporativa começou a bombar as críticas feitas pela
revista Forbes à Black Friday brasileira: "Se nos Estados Unidos, a Black Friday é a largada
da temporada de compras de Natal, no Brasil, é uma data para varejistas enganarem
consumidores ávidos", destacava a revista a ação brasileira.
Memes
começaram a lotar redes sociais (“pegadinha do Sérgio Malandro...HAAAA!!!!” – a
Black Friday vista com desconfiança) e matérias sobre “falta de transparência
do lojistas” e a “irritação dos usuários” eram destaques.
Uma matéria
do JN da Globo de 2015 ironizava que os brasileiros não conseguiam pronunciar a
palavra em inglês . Matérias em portais de notícias chegavam a falar sobre o
“impacto da Black Friday sobre nosso planeta” com relatórios da WWF (Fundo
Mundial para a Natureza – clique aqui), os impactos psicológicos do consumismo e as benesses
do “consumo consciente” e “sustentável”.
Imagens de um hipermercado de SP repetida diversas vezes na TV e portais da Internet |
A pauta
desse período de 2010-15 mostrava a Black Friday como manobra das montadoras de
veículos para enfrentar as vendas em baixa motivada por uma suposta crise
econômica (“Com vendas em baixa, mais carros entram na Black Friday” – portal
G1, 2015) e as matérias sobre o risco do “endividamento desmedido” (“Comprar na
Black Friday requer cuidados” – IG, 2015), dentro do viés do calote e crise endêmica
que estaria vivendo o País.
A pauta
ficava entre o jornalismo adversativo (“Black Friday promete descontos mas o
cenários de desaceleração econômica...”) e a simples estereotipagem como “Black
Friday da crise” como costumava dizer o Estadão.
Como num passe de mágica...
Mas a partir do
ano passado tudo mudou como num passe de mágica: “Vendas da Black Friday são
60% maiores que em 2015” destacou o G1 em 2016. O viés agora era de que “o
consumidor estava aguardando a Black Friday para comprar”.
Se a Black
Friday no passado era endemicamente falsa e ilusória, agora as promoções
enganosas, fraudes e golpes são noticiadas sob um viés maroto: cresceram porque
o consumo também cresceu.
O viés “Black
Fraude” desapareceu do noticiário para no lugar entrar a Black Friday do
consumidor consciente que deve conhecer os seus direitos.
E na TV a velha
tática de pegar imagens de um acontecimento pontual e repeti-la durante toda a
programação como fosse uma tendência generalizada: as imagens de pessoas
disputando televisões em preços promocionais de um hipermercado da Zona Sul de
São Paulo que abriu às portas na madrugada, foram replicadas nos canais de TV e
portais da Internet. Um acontecimento pontual tornou-se o ícone de um fenômeno
que supostamente estaria acontecendo por todo País.
Não se fala mais
em Black Friday como uma das responsáveis pela bola de neve do endividamento.
Agora é o índice do aquecimento de uma economia que luta para sair das
irresponsabilidades do passado.
Agora fala-se
até em “Efeito Black Friday”, na qual lojistas viriam a necessidade de trocar
de data, mudando o evento para setembro: o comércio de Natal estaria se
tornando compra de “lembrancinhas” diante do “volume de vendas” em novembro.
E a cereja do
bolo desse novo viés jornalístico: a mudança gramatical – depois do predomínio
das conjunções adversativas do passado, agora entramos no império dos adjuntos
adverbias de concessão: “mesmo visto com desconfiança, dia de descontos faz
vendas superarem as de dezembro”, diz o G1.
APESAR da crise,
Black Friday é sucesso! Por que? Porque supostamente indica que estamos no
caminho certo das reformas...
A trajetória
midiática da Black Friday é a mesma do Enem: desacreditada e achincalhada nos
tempos do jornalismo de guerra, agora recebe uma cobertura positiva.
Ao lado das
trevosas alianças com a direita raivosa para engrossar o caldo do impeachment,
o ataque incondicional às mazelas do Enem e Black Friday era o elemento forçado
para uma narrativa que se construía e que culminou no golpe de 2016. Hoje, como
se nada tivesse acontecido, a mídia corporativa candidamente fala que não teve
nada a ver com isso e faz a cobertura entre a apologia e a prestação de
serviço.
Finalmente a
grande mídia aceitou Enem e Black Friday como eventos normais dentro da agenda
para a nova narrativa pós-golpe que constrói para o País.
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