Andrei
Tarkovsky considerava “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Kubrick um filme
“estéril”. Por isso, “Solaris” (1972), produção do cineasta soviético, foi
considerado pela crítica o filme “anti-2001”: se os EUA ganharam a corrida
espacial colocando o primeiro homem na Lua, no cinema a URSS ganharia a Guerra
Fria fílmica ao desconstruir o gênero ficção científica que legitimava
a conquista do espaço. De certa forma, Solaris foi o primeiro filme
PsicoGnóstico: há uma planeta, uma estação espacial e astronautas. Mas tudo não
passa de um álibi para discutir como o tema das viagens espaciais são um mito
que esconde a verdadeira viagem: lá em cima, ao descobrirmos que estamos só em
um Universo vazio e sem propósito, faremos uma viagem no interior do nosso próprio
psiquismo. Um planeta com um misterioso oceano que prova aos cientistas de uma
estação espacial de que não precisamos de outros mundos. Precisamos de
espelhos.
Sabemos
que o gênero ficção científica é uma invenção Ocidental. Com uma civilização
baseada no progresso tecnológico, é natural que tenha inventado uma narrativa
de ficção que especule o futuro relacionado com os impactos da Ciência e
tecnologia. Pode pensar o futuro utilizando-se da Fantasia e do sobrenatural.
Mas a
angústia existencial do século XX, com suas guerras e a
possibilidade do holocausto nuclear varrer a espécie humana da face do planeta,
fez crescer no gênero o tema das viagens espaciais, alienígenas, a existência
de outros mundos mais sábios do que o nosso. Angustiado, o homem não quer
sentir-se só no universo: deve haver outros mundos nessa e em outras dimensões.
Aceitar a ideia de que estamos sós no cosmos faria tudo parecer sem sentido ou
propósito.
Para
além dos propósitos bélicos, a corrida espacial entre EUA e URSS durante a
Guerra Fria acendeu ainda mais essa imaginação. E o ápice, além da chegada do
Projeto Apollo na Lua, foi o filme 2001:
Uma Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick. Um filme-síntese desse sonho:
somos filhos das estrelas desde tempos imemoriais e, através da tecnologia,
chegaremos a uma lua de Júpiter e finalmente reencontraremos nossos criadores.
O
diretor soviético Andrei Tarkovski sempre considerou 2001 um filme “estéril” e unicamente centrado na tecnologia. A
resposta foi o filme considerado o “Anti-2001”: Solaris (1972), uma
adaptação do livro homônimo do escritor polonês Stanislaw Lem.
Em
muitos aspectos, para compreender o desafio de Solaris para a ficção científica e porque foi uma resposta a
Kubrick, precisamos avançar um pouco na cinematografia de Tarkovsky e
visitarmos Stalker, de 1979. Lá está
uma linha de diálogo críptica que desconstrói toda a invenção Ocidental do
gênero ficção científica:
Não há telepatas, nem fantasmas, nem discos voadores... nada disso existe, a não ser a lei do ferro fundido. Não conte com discos voadores: seria muito empolgante. Não existe Triângulo das Bermudas. Existe apenas o triângulo A’, B’ e C’...
Ou ainda essa afirmação de Stanislaw Lem que
a síntese do argumento desafiador de Solaris:
Nós não precisamos de outros mundos. Nós precisamos de espelhos. Nós não sabemos o que fazer com outros mundos. Um único planeta, o nosso, nos é suficiente; mas nós não conseguimos aceitar isso do jeito que é.
O filme anti-2001
Lem
nunca teve apreço pela ficção científica, para ele um gênero norte-americano
“mal pensado, mal escrito, e mais preocupado em aventuras do que em ideias ou
novas formas literárias”. Essa crítica radical de Stanislaw Lem ao centro da
imaginação de um gênero que dava o appeal popular à hegemonia espacial
norte-americana, ia ao encontro da guerra fria EUA e URSS no cinema: Solaris de Tarkovsky seria o anti-2001
de Kubrick.
Se os
EUA ganharam a corrida espacial colocando o homem na Lua, a URSS ganharia a
corrida no cinema desconstruindo toda a ideologia que animava a exploração
espacial: iremos ao espaço apenas para descobrirmos que estamos sós – planetas,
galáxias e estrelas são apenas espelhos dos nossos próprios sonhos, desejos,
frustrações e pesadelos. Não existem outros mundos ou civilizações. Existe
apenas o Universo que reflete de volta o nosso próprio inconsciente.
De certa forma, Solaris foi o primeiro filme PsicoGnóstico: há uma planeta, uma
estação espacial e astronautas. Mas tudo não passa de um álibi para discutir
como as viagens espaciais são um mito que esconde a verdadeira viagem: lá em
cima, ao descobrirmos que estamos só em um Universo vazio e sem propósito,
faremos uma viagem no interior do nosso próprio psiquismo.
O Filme
Solaris é longo e lento e com
diálogos deliberadamente secos. As imagens e planos de câmera são belos e
muitas vezes surpreendentes. Ao contrário de 2001, concentrado em planos
descritivos e longos de naves espaciais, estações orbitais e no detalhamento
técnico do interior da nave Discovery com a posterior duelo final entre a
Inteligência Artificial e o homem, aqui em Solaris todos os cânones da ficção
científica são apenas sugeridos.
Tarkovsky
está interessado em planos fechados (close ups e planos médios), na humanidade dos
astronautas e no duelo final, dessa vez, do homem com seu próprio inconsciente.
Solaris
começa com uma longa conversação entre o psicólogo Kelvin (Donatas Banionis) e
o cosmonauta Burton (Vladislav Dvorzhetsky) na casa de campo do pai de Kelvin.
O leitor deverá prestar atenção nessa primeira sequência, pois ela voltará no
final em um novo e surpreendente contexto.
Burton
narra os problemas que a estação espacial soviética está enfrentando em órbita
do planeta chamado Solaris – um relato de morte e eventos inexplicáveis.
Cientistas na estação tentam compreender os mistérios de um gigantesco oceano
que ocupa toda a superfície do planeta. Um enigma tão complexo que até existe
uma especialização dentro da Ciência: a “Solarística”. Sugerindo que a
tripulação da estação está há muito tempo orbitando o planeta.
Kelvin
embarca para a estação (como sempre, Tarkovsky apenas sugere essa viagem o que,
no final, criará uma perturbadora ambiguidade) para encontrar um membro da
tripulação morto e outros dois
cientistas profundamente perturbados pelos estranhos eventos que vêm ocorrendo.
Tarkovsky
nos entrega logo o argumento principal de Solaris:
quando o oceano do planeta foi investigado através de intensos bombardeios de
raio X, em resposta o oceano também começou a sondar a mente dos cosmonautas,
materializando como entidades vivas as memórias mais profundas dos tripulantes
– pessoas vivas ou mortas, amadas ou odiadas.
Após ver
o vídeo do relato cheio de informações e alertas de um cientista que havia se
matado, Kelvin assustado se depara com uma duplicata da sua esposa que também
se matou, Khari (Natalya Bondarchuck). Mas não é apenas uma manifestação
física: está viva, consciente, porém com lacunas de memória.
Ela
questiona Kelvin: quer saber porque se matou, conhecer mais sobre si mesma.
Porém, acaba se desanimando ao perceber que jamais será quem aparenta ser. Até
certo ponto, seu ser é limitado pelo quanto Kelvin sabe sobre Khari, já que o
Oceano de Solaris não pode saber mais do Kelvin sabe.
Esse é o
ponto central do argumento do filme de Tarkovsky: os cosmonautas tratam as
entidades como estranhos seres alienígenas – eles as chamam de “hóspedes”.
Tentam mata-las, mas sempre voltam em novas versões. Algo como o “retorno
do reprimido” do dinamismo psíquico descrito por Freud.
Mas, no
final, o Oceano parece ser aquilo que Stanislaw Lem nos advertiu: no espaço,
encontraremos o espelho de nós mesmos. E a solidão: a verdade de que o Universo
inteiro foi feito apenas para conter a solidão humana.
Freud vai ao espaço – alerta de Spoilers à frente
Esse
humilde blogueiro considera 2001 de
Kubrick o último filme de ficção científica modernista – é dotado de um forte
sentido de futuro, utopia, descoberta, “indo onde nenhum homem jamais esteve”
como dizia a abertura da clássica série de TV Star Trek. Uma odisseia espacial na qual o homem vai ao encontro
dos seus próprios criadores.
A
resposta de Solaris é no sentido
oposto. Tarkovski sabia que jamais poderia fazer um filme dentro das mesmas
premissas de 2001 – seja por uma
questão da ideologia soviética, seja pela limitação de orçamento ou efeitos
especiais. Por isso, Solaris de
Stanislaw Lem foi o livro certo para a adaptação às telonas: é anti-modernista
– não há sentido de odisseia e nem o futuro como um lugar a ser desbravado em
um cosmos cheio de segredos.
Paradoxalmente,
Solaris consegue ser mais humanista
do que 2001: é simplesmente Freud levado ao espaço, enquanto o filme de Kubrick
é uma epifania místico-religiosa do encontro do homem com uma inteligência
superior.
E ao
contrário do final otimista e new age de 2001
com o “Star Child” olhando para o planeta azul terrestre, o desfecho de Solaris é estranhamente ambíguo e
misterioso, dando uma releitura totalmente diferente da sequência de abertura
do filme – estranhas ilhas começam a emergir no oceano de Solaris. E no final,
uma delas é a própria casa do pai de Kelvin, como se ele tivesse retornado para
Terra... ou ficado para sempre prisioneiro de uma das ilhas do planeta.
Um final
ambíguo, sugerindo que poderia haver mais hóspedes no filme do que pensamos
inicialmente. E mais além: de que as mais de duas horas do filme foram apenas a
narrativa da luta dos cosmonautas com seus próprios inconscientes e que jamais,
nenhum deles, retornou para a Terra.
Se é que
eles de fato viajaram da Terra para algum planeta chamado Solaris.
Abaixo link com filme completo com legendas disponíveis em inglês e português: "CC" e depois "Settings" - "Subtitles" - "Portuguese".
Abaixo link com filme completo com legendas disponíveis em inglês e português: "CC" e depois "Settings" - "Subtitles" - "Portuguese".
Ficha Técnica
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Título: Solaris
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Diretor: Andrei
Tarkovsky
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Roteiro: Andrei Tarkowsky adaptado do
livro homônimo de Stanislaw Lem
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Elenco: Donatas Banionis, Natalya Bondarchuk, Jüri
Järvet, Nikolay Grinko, Anatoliy Solontitsyn
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Produção: Mosfilm
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Distribuição: Continental Home Video (DVD)
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Ano: 1972
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País: URSS
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