Apesar de ter nascido em uma família de longa
tradição de músicos famosos, Amadeus é um investigador de polícia que odeia música. Mas ironicamente destinam a ele o caso mais difícil da
sua vida: seis bateristas excêntricos, liderados por um gênio musical
anarquista, decidem lançar uma ataque em escala sonora transformando torres de
alta tensão, salas de cirurgia e agências bancarias em inesperados instrumentos
de música e ritmos. Bandidos de uma nova
geração: terroristas que explodem bombas musicais. Esse é a produção sueca “O
Som do Ruído” (Sound of Noise, 2010), claramente inspirado no manifesto musical futurista de 1913
“Arte dos Ruídos”. O filme é uma comédia e, ao mesmo tempo, um manifesto
estético-político que mostra como a música pode produzir
conformismo. Mas também no diz como é possível reagir através de guerrilhas
sonoras-musicais que nos libertem da música produzida pela indústria do
entretenimento.
Quando
falamos em filmes gnósticos imaginamos dramas ou thrillers de ficção científica
cheios de ação como Matrix ou A Origem, ironia social como em Show de Truman ou intrincadas narrativas
que confundem a ilusão com a realidade como em Ilha do Medo. Os simbolismos gnósticos são pesados e épicos ao
denunciarem que a realidade é ao mesmo tempo ilusão e prisão.
Um
filme que combina comédia, música e romance pode também lidar com temas
gnósticos profundos? Assistindo ao filme sueco O Som do Ruído (Sound of
Noise, 2010) podemos chegar a uma surpreendente conclusão positiva. Sim, a música e o som que nos rodeiam podem
também modelar a nossa experiência, criar o senso comum e nos faz aderir a
valores sociais, produzindo conformismo ao status quo.
Assim
como o cinema nos mostrou que máquinas, alienígenas ou drogas podem nos induzir
a realidades que conspiram contra nós, também a música possui o poder de nos
fazer aderir a uma determinada ordem. E podemos reagir, criando verdadeiras
guerrilhas sonoras-musicais que nos libertem da música produzida pela indústria
do entretenimento.
Esse
é o tema do filme O Som do Ruído,
onde os protagonistas nos mostram o potencial musical de objetos comuns do
dia-a-dia tidos geralmente como não musicais. Ao longo do filme acompanhamos
performances de músicos de vanguarda que procuram extrair ritmos, percussão e
harmonias de situações e instrumentos mais inesperados: equipamentos de uma sala
de cirurgia com um paciente sedado; equipamentos pesados de construção como
escavadeiras e britadeiras; linhas das torres de alta tensão; gavetas, carimbos
e máquinas de calcular de uma agência bancaria etc.
O filme
O Som do Ruído abre com uma sequência que
nos oferece uma pequena amostra do experimentalismo sonoro que aguarda o
espectador: Sanna (Sanna Persson) guia uma van enquanto Magnus (Magnus
Börjeson) toca em um kit de bateria na parte traseira – os músicos procuram
estabelecer uma áspera sinfonia instantaneamente fugaz entre o ritmo da bateria
e os sons do carro e da estrada – tudo com um metrônomo fazendo a marcação do
tempo em cima do painel da van. A direção errática da van faz a dupla entrar em conflito com as
autoridades - passam a ser perseguidos por um policial em uma moto.
Sanna
e Magnus são os cérebros de um grupo de músicos anarquistas cujo projeto é
detonar uma bomba musical na cidade conservadora e “contaminada” pela música
clássica e pela “música de elevador” que toca nas pequenas caixas de som
colocada nos postes. A obra-prima chama-se “Música para uma Cidade e Seis
Bateristas”: “essa é a nossa bomba para uma cidade contaminada por uma música
de merda”, declara desafiadoramente Magnus .
A
peça será formada por quatro movimentos, na verdade performances ou
intervenções em espaços urbanos ou privados: primeiro chamado “Doctor, doctor,
gimme gas in my ass”, onde os percussionistas tiram harmonias e ritmos de máquinas
e ferramentas cirúrgicas, além do corpo do próprio paciente sedado que faria
uma cirurgia de hemorroida - veja abaixo a sequência completa;
Segundo,
“Money 4 U Honey”, onde invadem mascarados um banco, "armados" com um metrônomo.
Pegam os seus “reféns” para serem a plateia de uma performance musical tirada
de carimbos e máquinas de calcular;
Terceiro,
“Fuck the Music”, onde escavadeiras e britadeiras fazem ritmos e percussão com
o tempo marcado por um metrônomo, para interromper a execução de uma sinfonia
de Haydin (ironicamente, um compositor que ignorava a percussão nas suas
composições);
E
por último “Eletric Love”: os músicos tiram som e ritmos das linhas de alta
tensão de torres que repentinamente se transformam em gigantescas partituras e
os performers notas musicais.
Um policial gnóstico
E
perseguindo esses músicos anarquistas que pretendem detonar com o “bom gosto
musical” da cidade está um investigador de polícia chamado Amadeus Warnenbring
(Bengt Nilsson). Ironicamente, o único membro de uma família de maestros e
músicos que não foi dotado de dom artístico: odeia música e se tornou a
ovelha negra da família.
Tudo
começa com a descoberta de um metrônomo na van do início do filme, após a fuga
do grupo de anarquistas musicais. A partir daí, a narrativa transforma-se em um
jogo de gato e rato: Amadeus fica obcecado em prender os músicos, justamente
pelo seu ódio à música que o fez se tornar o patinho feio de uma família de
artistas famosos.
Mas
tudo muda, quando percebemos na construção do personagem Amadeus a fusão de
dois personagens gnósticos: o Estrangeiro e o Detetive – sobre o simbolismo
gnóstico desses personagens clique
aqui. Aos poucos percebemos que o enigma que Amadeus tenta resolver é na
verdade o enigma da sua própria vida: ele possui uma deficiência auditiva que o
torna seletivo a determinados sons – típica característica do Detetive: na
solução do enigma policial está a solução do próprio enigma existencial do
Detetive.
E
o Estrangeiro: Amadeus aparentemente odeia toda e qualquer música, músicos e
instrumentos musicais. Ele se sente um Estrangeiro dentro da sua própria
família e sociedade: a cidade é rodeada de música clássica e música de elevador
(“muzak”) que toca nas caixas de som públicas. Mas aos poucos, Amadeus começa a
se sentir estranhamente atraído pela música proibida daquele grupo anarquista
cujos músicos foram expulsos do conservatório musical da cidade – não é que
Amadeus não goste da música, mas sim daquela música clássica e comercial.
A gnose através do silêncio
Por tanto, o filme O Som do Ruído começa explorando dois temas gnósticos: o personagem
Estrangeiro/Detetive e a construção de realidade ilusória através de uma
paisagem sonora que, para os habitantes da cidade escandinava, é a única
possível.
Mas além disso, o espectador perceberá que o
filme aborda um tema mais profundo: a gnose através do silêncio. Amadeus no fundo
busca o silêncio. Sua disfunção o auditiva é um sintoma da recusa em aceitar um
cotidiano preenchido por aquela espécie de música.
O tema central do filme é a paradoxal atração
de Amadeus pelo silêncio ao mesmo tempo em que admira a música rica em ritmos e
percussão tirada de objetos não musicais da sinfonia vanguardista “Música para
a Cidade e Seis Bateristas”.
Desde que o compositor futurista Luigi
Russolo lançou o manifesto “A Arte dos Ruídos” em 1913, a música foi inserida na
explosão industrial do início do século XX. Em um novo ambiente urbano repleto
de novos objetos os limites estabelecidos para a instrumentação, melodias,
harmonias e ritmos deveriam ser quebrados. Então, Russolo concebeu
instrumentações inéditas como o “órgão de ruídos” (“intonarumori”) feitos com
caixas, funis e alavancas.
Isso criou uma nova missão para o músico: ir
além do virtuosismo instrumental. Tornar-se um pesquisador de novos sons,
batidas e pulsações; tornar-se também um designer sonoro. E paradoxalmente,
isso é buscado através do silêncio – silenciar a mente, para que consigamos
ouvir os sons e harmonias que estão ao nosso redor, vindo de novos timbre e
ritmos produzidos pelos objetos industriais do cotidiano.
Esse tema do silenciamento da mente para que
consigamos alcançar a iluminação interior e rompermos a ilusão da realidade é
basilidiano no Gnosticismo. Basilides, um dos primeiros professores gnósticos
de Alexandria no século II da Era Cristã nutria uma grande desconfiança em
relação à capacidade da linguagem apreender a realidade. Basilides propunha o
estado de suspensão: o silêncio, o esvaziamento da mente por meio da suspensão
de todos os mecanismo de abstração da linguagem – conceitos, sintaxe etc.
Como o espectador perceberá no filme, esse é
o propósito final de Amadeus: através do silêncio, dissolver a sintaxe musical
que nos impede de ouvir novos sons dentro do ruído urbano.
Mas em uma reflexão gnóstica mais atenta, O Som do Ruído nos oferece um tema bem
baudrillardiano (Jean Baudrillard, 1929-2007, pensador francês com assumidas
influências gnósticas): o mito do “objeto musical” (ilusão que deve ser mantida
pela indústria do entretenimento como forma de reserva de mercado musical) cria
também o mito da música e da arte como esferas afastadas da vida cotidiana. Seriam
mundos “subjetivos” da fantasia e da imaginação, enquanto a realidade seria
racional e concreta.
Acompanhando o raciocínio de Baudrillard, o
mito do objeto musical teria a mesma função ideológica dos simulacros da
Disneylândia: salvaguardar a realidade ao redor como fosse lógica e racional em
oposição ao mundo da fantasia de Walt Disney.
A quebra das fronteiras entre música e
realidade, insere melodias, ritmos e harmonias na próprio dia-a-dia, em objetos
e sons incidentais do cotidiano, desconstruindo a própria noção ontológica que
temos do que seja o real: se a própria realidade é musicalidade, segue-se que
ela não é assim tão concreta – pode ser desconstruída e reconstruída a todo
momento com a reorganização de ritmos e compassos.
E isso somente pode ser revelado através do
silêncio.
Ficha Técnica |
Título: O
Som do Ruído (Sound of Noise)
|
Diretor:
Ola Simonsson e Johannes Stjärne Nilsson
|
Roteiro:
Jim Birmant e Ola Simonsson
|
Elenco: Bengt Nilsson, Sanna Persson, Magnus Börjeson, Marcus Boij, Johannes Björk
|
Produção:
Bliss, Nordisk Film, dfm Fiktion
|
Distribuição:
Magnolia Pictures
|
Ano: 2010
|
País: Suécia, França
|
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