Prefeitos,
governadores e presidentes vivem a pressão política e mercadológica de tornar visíveis para a
mídia e opinião pública suas obras e realizações. Mas às vezes essa corrida
contra o tempo cria verdadeiros atos falhos onde a peça publicitária se trai e
a verdade sobe à tona em meio a camadas de discursos e eufemismos. O exemplo
mais recente é a da inacreditável publicidade veiculada no jornal “O Globo” do
programa “Fábrica de Escolas do Amanhã” da Prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro: crianças em carteiras sobre uma esteira de linha de produção ao melhor
estilo do vídeo clip “Another Brick in The Wall” do Pink Floyd. Qual concepção
de educação pública é passada pelo ato falho visual? Para onde aquela esteira
está levando as crianças da foto? Uma análise iconográfica e semiótica da peça
publicitária pode revelar: a esteira leva para o futuro, para o Capitalismo
Cognitivo.
Como
diz aquele provérbio, uma imagem vale mil palavras. Publicidade veiculada no
último domingo no jornal O Globo do programa “Fábrica de Escolas do Amanhã”, da
Secretaria Municipal da Educação do Rio de Janeiro, mostra uma fotografia onde
explicitamente faz uma aproximação de uma escola com uma linha de produção
industrial.
Acima
da foto em que vemos crianças nas carteiras escolares sobre uma esteira de
linha de produção há um texto que diz: “Nossa linha de produção é simples.
Construímos escolas, formamos cidadãos e criamos futuros”. A peça publicitária
divulga o programa da prefeitura que constrói estruturas pré-moldadas para a
construção e escolas, além de armazenar e distribuir material para as unidades
da rede de ensino.
Imediatamente as redes sociais começaram a relacionar a
fotografia com o clássico vídeo clip da música do Pink Floyd “Another
Brick in The Wall” onde vemos também
estudantes em carteiras se movendo sobre uma esteira de linha de produção, para
depois serem jogadas em um assustador moedor de carne humana.
O
programa municipal Escola do Amanhã é bem intencionado, como todo projeto
pedagógico ou de aprendizagem. Fala em “cidadãos autônomos”, “educação
holística”, “personalização e individuação” e outros conceitos que encontramos
em qualquer texto de educação com inspiração humanista.
Porém,
ao mesmo tempo, o programa usa os típicos eufemismos da gestão corporativa:
“excelência”, “gestão avançada”, “diagnóstico”, “planos de ação” etc. Em tempos
de cobrança de austeridade da máquina pública, apenas palavras humanistas não
legitimam políticas – são necessários conceitos corporativos para criar uma
percepção de gestão eficiente - leia "Escolas do Amanhã", Secretaria Municipal da Educação, Rio de Janeiro .
Mas
a imagem publicitária da Fábrica da Escola do Amanhã diz muito mais: é um ato falho que revela os destinos da
Educação dentro do chamado “Capitalismo Cognitivo” atual – a formação educacional
voltada para trabalho cognitivo-cultural em serviços comerciais e financeiros
caracterizados pelo uso da tecnologia digital, dentro de organizações flexíveis
ou pós-fordistas - leia DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Capitalismo e Esquizofrenia.
À
primeira vista, a imagem sugere algo como uma linha de montagem taylorista como
aquela que engole Chaplin no filme Tempos Modernos: crianças padronizadas como
estruturas pré-moldadas, tal qual a matéria-prima destinada à construção de
escolas municipais.
Porém,
utilizando ferramentas de análise iconográfica e semiótica, veremos que a
imagem é um revelador ato falho daquilo que está nas entrelinhas bem
intencionadas da Escola do Amanhã: formação padronizada e em série de futura
mão de obra, não para as tradicionais linhas de montagem, mas como nova força
de trabalho exigida pelo capitalismo cognitivo.
Iconografia: padronização versus
flexibilidade
Vemos
três crianças (duas meninas e um menino) sentados em carteiras. Estão sobre uma
esteira rolante com as engrenagens à mostra. As crianças estão cabisbaixas.
Tomando-as isoladas, seria um índice de concentração em uma atividades escolar
- estão com lápis na mão e escrevem em cadernos. Porém, a padronização
generalizada (uniformes, tênis, carteiras) sugere atitude de resignação.
Pink Floyd: Another Brick in The Wall |
Cabeças
baixas, padronização e esteira de produção criam o forte significado de
serialidade. “Mais educação” é transposto para a imagem como um evento serial.
Certamente, a analogia com o vídeo “Another Brick in The Wall” é imediata, pela
serialidade da padronização dos estudantes como tijolos que formam o muro do
sistema.
Enquanto o vídeo clip do Pink Floyd mostra carteiras antigas de madeira escura, roupas em
tons cinzas, esteira de produção enferrujada, criando uma atmosfera do peso da
tradição escolar, nessa peça de publicidade temos o inverso: ambiente claro
onde predominam tonalidades em azul. A esteira está sobre um piso limpo, liso,
vitrificado, assim como a esteira – metal como que escovado, conferindo um
visual high tech. São signos de futuro, modernidade, o amanhã.
Não
estamos diante de uma linha de montagem padrão taylorista, tal como no filme The
Wall: não há a máscara da padronização e os cortes de cabelos são diferentes,
contemporâneos, reforçando o significado de variedade étnica. O que vemos é uma
linha de montagem pós-fordista, tal como as baias dos ambientes corporativos:
permitem individuação dentro de um ritmo de trabalho imposto pela organização.
Combinando
com as carteiras também em design moderno (sugerem materiais leves entre
alumínio e plástico), a atmosfera geral passa leveza, flexibilidade e ambiente
tecnológico.
Conclusão:
a iconografia nos transmite significados contraditórios: de um lado o peso da
padronização transmitida pelo conceito fabril de “mais educação”; e do outro o
décor que transmite leveza e flexibilidade. Se é possível fazer uma psicanálise
da imagem, diríamos que é um ato falho: o “chiste” da imagem refletiria a
dualidade do discurso da Escola do Amanhã – noções humanistas como “autonomia”,
“cidadania” e “holismo” convivendo ao lado de conceitos organizacionais duros
como “gestão” e “excelência”.
Semiótica: a resignação das crianças
A
figura de retórica utilizada (uma “paliconia”, isto é, o mesmo elemento
repetido) reforça esse conceito geral de serialidade e produção fabril. O
curioso é que as cabeças baixas dos estudantes (que poderia ser interpretada
como concentração nos estudos) tem a leitura da resignação reforçada pela visão
em plongée (de cima para baixo).
A "individuação" de Eduardo Paes |
No
vídeo clip do Pink Floyd vemos os estudantes vítimas da linha de montagem em
contra-plongée (de baixo para cima) o que confere aos personagens um heroísmo
trágico – luta e revolta dos estudantes contra o sistema. Ao contrário, na peça
publicitária, o plongée reforça ainda mais o significado da resignação dos
estudantes pela sua condição presente e futura.
E
finalmente, numa saturação de signos, a esteira está em diagonal e em descenso
– ela vai da posição superior esquerda para a área inferior direita. Cabeças
baixas, visão em plongée e esteira em descenso saturam esse significado geral
de resignação do indivíduo diante da produção serial.
E
para onde a esteira rolante leva os alunos da foto? Certamente para o
Capitalismo Cognitivo: os significados aparentemente contraditórios de produção
serial versus leveza de cores e design transmitem o próprio futuro para o qual
as crianças resignadas estão sendo “educadas” (ou treinadas?) – as organizações
flexíveis dos setores de serviços e financeiros, trabalhos precarizados pela
tecnologia digital e flexibilização das leis trabalhistas.
No
final a mensagem contraditória da peça publicitária revela o futuro
esquizofrênico – atitude conformista convivendo com a ideologia da iniciativa
individual da busca pelo mérito.
Algumas bombinhas prá
terminar
Mandatários públicos têm a compulsão em
mostrar obras e realizações. Mais estradas, mais policiais, mais ruas
iluminadas, mais saneamento básico e assim por diante. Publicitariamente, obras
públicas são significadas pelo princípio do serial e da produtividade. O
problema é quando as realizações dos gestores públicos entram na área
humanística da educação e cultura: por mais cuidado e sensibilidade que tentam
ter, acabam cedendo a atos falhos como a dessa peça publicitária da Fábrica da
Escola do Amanhã – no final, a educação segurança e saneamento básico são
medidos pela mesma régua quantitativa.
A imagem do prefeito
Eduardo Paes deixando a marca da sua mão no concreto de uma estrutura
pré-fabricada que construirá escolas, na inauguração de mais uma Fábrica é
emblemática: a marca do realizador em meio à produção serial – talvez a única
“individuação” que a Escola do Amanhã produzirá.