A comparação do episódio “Special Service”
da terceira temporada da série de TV “Além da Imaginação” (1988-89) com o filme “Show
de Truman” (1998) revela didaticamente com a sensibilidade gnóstica atual está por trás de adaptações dos clássicos da TV e do
cinema. O episódio de 1988 inspirou
Andrew Niccol a escrever o roteiro de “Show de Truman”: enquanto no
episódio original vemos uma típica ficção científica orwelliana onde a paranoia
e conspirações dominam o protagonista, na adaptação de Niccol vemos esses
mesmos elementos transmutados em drama e sátira social. Mas Niccol colocou algo
mais: a suspeita de que o reality show não seja apenas televisivo, mas cósmico.
A
postagem anterior sobre o filme brasileiro O
Efeito Ilha (1994) e a possibilidade sugerida pelo diretor Luís Alberto
Pereira de que Peter Weir teria “chupado” a ideia do filme para construir o
roteiro de Show de Truman (Truman Show, 1998), provocou polêmica
aqui no blog – clique
aqui.
Como vimos, essa suspeita não procede, já que
o tema do controle da privacidade que é transformado em show pela mídia são
tratados de forma invertida: em O Efeito
Ilha, a transmissão televisiva involuntária da vida do protagonista é
tratada como “dissonância cognitiva, isto é, elemento dissonante que faz os
espectadores tomarem consciência da TV como instrumento de alienação; enquanto
em Show de Truman, a vida do
protagonista é transformada em um autêntico reality show, como instrumento de
alienação para as massas.
No filme brasileiro, o reality show
involuntário propicia conscientização; no filme de Weir o reality show é proposital
para aprisionar o protagonista e os telespectadores em uma gigantesca indústria
publicitária.
Na verdade o roteirista de Show
de Truman, Andrew Niccol (Gattaca, S1m0ne),
teria se inspirado em um episódio da terceira
temporada (1988-89) da série Além da Imaginação
chamado “Special Service” – veja o episódio abaixo. Enquanto o episódio
original de 1989 possuía um tom muito mais de thriller de ficção científica, a
adaptação de Weir e Niccol de 1998 foi muito mais um drama e sátira social com
algumas pitadas de ficção científica.
Para um blog como esse estudioso da
recorrência dos simbolismos gnósticos no cinema, a forma como Weir e Niccol
adaptaram a série clássica televisiva é
um flagrante exemplo de como a sensibilidade gnóstica é atuante nas produções cinematográficas.
Se prestarmos bem atenção no argumento do
episódio “Special Service”, veremos que explora os temas da paranoia e da
desilusão, porém em uma perspectiva ainda clássica – por assim dizer,
orwelliana - relativo a George Orwell, autor da distopia 1984.
Como veremos, a adaptação de Show de Truman também vai lidar com
esses temas centrais, porém dentro de uma cosmologia gnóstica.
O episódio “Special Service”
O
episódio acompanha a vida de John Selig, aquele que passa a vida “com as duas
mão no volante”, constante e prático, um
realista. Quando acorda para mais um dia de trabalho para se barbear no banheiro, o espelho cai revelando uma
câmera embutida na parede com uma luz vermelha acesa.
De repente, surge um técnico que munido de
uma furadeira recoloca o espelho no lugar. Quando John questiona a existência
da câmera, o técnico age como se nada tivesse acontecido e tenta ir embora.
Sob a ameaça de John chamar a polícia, o
técnico leva-o para um closet para revelar a verdade sobre tudo: a vida de John
é transmitida ao vivo, 24 horas por dia, para todo o planeta. John se questiona
como não sabia de nada disso. “Isso é o que torna tudo mais interessante, não
saber que está sendo televisionado!”, exclama o técnico.
Antes de ir para o trabalho, sua esposa fala
ao seu ouvido: “não estrague tudo, os índices de audiência estão altos”,
confirmando a confissão do técnico de que tudo ao redor não passa de um
meticuloso reality show. John faz uma busca pela sua casa, encontrando diversas
câmeras escondidas. Enquanto isso, o telefone toca com advertências e ameaças
de que as câmeras são propriedade particular e que ele não pode arrancá-las das
paredes.
Para quem assistiu ao filme Show de Truman, esperamos que o
desenrolar do episódio seja idêntico ao filme de 1998: que tudo ao redor (a
casa, a rua, a cidade etc.) seja, na verdade, uma gigantesca cenografia
produzida para criar a ilusão da realidade no protagonista. Mas o filme não
segue esse que seria um argumento gnóstico.
Um clássico orwelliano
Assim como no filme de Peter Weir, o episódio
explora temas clássicos do gnosticismo: a paranoia e a desilusão.
Mas no decorrer do episódio percebemos uma
diferença fundamental: esses temas ainda são tratados da forma clássica
orwelliana – há um complô do qual participaram inclusive vizinhos para que a conspiração
televisiva fosse escondida de John Selig. A noção de realidade não foi
desconstruída de forma radical como em Show
de Truman (pressuposto da cosmologia gnóstica de que toda a realidade é uma
ilusão produzida e mantida por um Demiurgo).
Como uma abordagem clássica orwelliana, o
episódio “Special Service” funde em um único bloco a paranoia e a realidade: há
um Estado, mídia ou conspiração de vizinhos contra John Selig. Temos aqui a
paranoia abordada num viés narcísico, isto é, há um complô apenas contra o
protagonista. Sua desilusão não desconstrói a realidade como em Show de Truman:
ela apenas faz o protagonista cair em si de que é o pivô de uma rede de
conspirações.
Ao contrário, a paranoia numa abordagem
gnóstica é mais radical pois desconstrói o próprio princípio de realidade.
Diferente do viés narcísico, a paranoia gnóstica é cósmica: a própria realidade
é uma construção artificial para aprisionar não apenas o protagonista, mas
todos.
O reality show cósmico
Show de Truman: a possibilidade gnóstica de existir um reality show cósmico |
Sintetizando, o reality show do episódio
“Special Service” limita-se à própria TV, enquanto do ponto de vista de uma
sensibilidade gnóstica a própria realidade poderia ser um gigantesco reality
show cósmico.
Nesse sentido, o filme brasileiro O Efeito Ilha estaria mais próximo de Show de Truman do que a série Além da Imaginação: Luís Alberto Pereira
criou em 1994 um reality show involuntário para o protagonista João William,
produzido graças ao efeito de uma estranha anomalia eletromagnética – um
“buraco sobre o Atlântico Sul”.
É claro que podemos contra-argumentar que em Show de Truman existe o elemento
conspiratório e paranoico contra o protagonista Truman Burbank. Em última
análise, o filme lidaria com a paranoia narcísica semelhante ao episódio
“Special Service”. Porém, para a percepção do protagonista de Show de Truman, confinado desde o
nascimento na cidade cenográfica de Seaheaven, a desilusão torna-se cósmica e
gnóstica – para Truman aquela abóboda celeste e o mar diante dele eram a
própria realidade que, repentinamente, se dissolvem em suspeitas.
No final do episódio “Special Service” temos
a locução em of sinistra: “Na próxima
vez que pensar que pessoas falam de você pelas suas costas, ou que uma feliz
coincidência foi muito boa para ser verdade, olhe para trás do espelho do seu
banheiro. Ou veja se há canais faltando na sua TV...”. A exortação final
inspira a paranoia nos espectadores.
Bem diferente de Show de Truman, quando saímos do cinema desconfiados de que por
trás de cada parede poderiam estar escadas, latas de tinta, técnicos e
produtores de algum tipo de reality show cósmico.
Ficha Técnica |
Título: “Special
Service” (episódio 29 da terceira temporada de “Além da Imaginação”, 1988-89)
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Diretor:
Randy Brandshaw
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Roteiro:
J. Michael Straczynski
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Elenco: David Naughton, Keith Knight, Elias Zarou, Susan Roman
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Produção:
Atlantis Films, Columbia Broadcasting System (CBS),
London Film
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Distribuição:
Metro Goldwyn Mayer (MGM) e CBS
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Ano: 1989
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País: EUA, Canadá, Reino Unido
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Legendas em português aqui
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