Apontado como o Walt Disney mexicano, com um toque de Willy Wonka e sua fantástica fábrica de chocolate, o empresário Xavier López Ancona desde 1999 comanda a KidZania. É uma rede de parque temático para crianças presente em 16 países, e agora também em São Paulo. “Crianças necessitam de histórias de êxito”, diz o empresário cujo parque simula em escala infantil uma cidade onde, através de jogos de role playing, os pequenos performam atividades adultas remuneradas pela moeda local. Expostas ao bombardeio de marcas globais e acompanhadas por pais orgulhosos, os pequenos tornam-se médicos, bombeiros, jornalistas ou chef de cozinha. É a “edu-diversão”: crianças tornam-se espelhos dos adultos – subliminarmente são treinadas em jogos e simulações para o mundo dos processos seletivos corporativos dos administradores, call centers e funcionários – é a “gameficação” e a simulação como ferramentas de administração. Esqueça o jogo lúdico e infantil. Agora o jogo deve ser focado no futuro e nos negócios.
“Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor” (“Marvin”, Titãs)
“México:
tão longe de Deus e tão perto dos EUA”. Essa frase que virou um provérbio dito
pelo ex-presidente daquele país, Porfírio Diaz, mantém a atualidade. Sua
economia dependente à norte-americana através do NAFTA resultou na liquidação
das empresas públicas por meio de privatizações, sucateamento do Estado,
crescimento da desigualdade e narcotráfico e a ampliação das indústrias
“maquiadoras” – elaboração e reparação de produtos importados temporariamente
para posterior exportação.
Dominado
pelo império da Televisa (a TV Globo de lá) e frequentemente apontado pelos
neoliberais como modelo a ser seguido pelo Brasil, o México no século XXI
deixou de ser apenas um exportador de mão-de-obra barata para cartéis de drogas
e mercado norte-americano. Agora exporta também o imaginário que dá sentido a
esse modelo de globalização ao qual o país é tão fiel. Tão fiel que se torna
mais realista que o rei.
Apontado
como um Walt Disney mexicano, com um toque de Willy Wonka e sua assombrosa
fábrica de chocolate, o empresário Xavier López Ancona desde 1999 criou a
KidZania, espécie de parque temático onde as crianças jogam e trabalham como
adultos em uma réplica de uma cidade em escala infantil. Hoje a franquia conta
com 16 filiais em todo o mundo, e a partir desse mês também em São Paulo no
Shopping Eldorado.
Uma pequena cidade cenográfica
Cada parque é uma pequena cidade com ruas
pavimentadas, prédios, veículos, um sistema econômico e de moeda corrente: as
crianças acompanhadas de seus pais entram com um passaporte através de um
terminal aéreo para passar o dia em jogos de role playing em simulações de
atividades adultas remuneradas pela moeda local: alugar um telefone celular, ,
montar motocicletas, tornar-se um médico-cirurgião, abrir uma conta em um
banco, filmar um programa de TV, ser chefe de cozinha, bombeiro em
ação num incêndio, ser um juiz ou carteiro. As crianças performam seus papéis
enquanto os pais observam.
“Elas atuam com um propósito”, afirma Xavier
Ancona. Qual propósito? “O México necessita de empreendedores”, declara sério o
empresário. Sim, para Ancona KidsZania não é mera diversão. Possui um propósito
“educacional” sério: desenvolver na criança habilidades como a autoconfiança,
trabalho em equipe, foco, pro-atividade, comunicação etc. Ou seja, tudo aquilo
que os psicólogos de RH das empresas buscam nos processos seletivos – leia “Mexico
necesita de empreendedores” In: Negocios,
Milenio.com.
“KidZania prepara as crianças a entender o
seu mundo”, declara o site do parque
temático. Através de 100 atividades programadas de role playing com diversos
níveis de habilidades e dificuldades o parque promoveria o encontro das
habilidades e interesses na criança – um verdadeiro teste vocacional travestido
de entretenimento.
Em KidZania as crianças convivem com o bombardeio de marcas globais como Nestlé, Honda, Johnson & Johnson, Unilever, Nike etc. (parceiros no projeto). Segundo o empresário, para “autenticar o conteúdo”, quer dizer, tornar mais realista o faz-de-conta. Mas, ele faz um elogio educacional: “não há videojogos no parque”. Claro, em KidZania tudo já é um role playing.
Fim do universo lúdico infantil
A trajetória do empresário “Disney/Wonka”
Xavier López Ancona é uma amostra do perfil da elite mexicana. Estudou escola
preparatória nos EUA para retornar ao México e se graduar em Administração.
Voltou aos EUA para fazer MBA na Kellogg Scholl of Management da Northwestern
University. Em 1996 tornou-se executivo da General Eletric, onde um velho amigo
dos tempos de escola veio com a ideia de uma parque infantil que focaria suas
atividades em role play.
No mundo corporativo, de administradores a
call centers, funcionários já estão sendo treinados em jogos e simulações – a
“gameficação” e a simulação (“edu-diversão”) como ferramentas de
administração. Por isso, Xavier Ancona
teve a genialidade de mesclar a disneyficação da cultura norte-americana com a
gameficação corporativa: “Sou focado e ambicioso. As crianças necessitam de
histórias de êxito”, declara o empresário.
A relação que os adultos têm com a infância
costuma ser nostálgica: saudades da inocência, de uma época idílica e lúdica,
marcada pelo descompromisso, fantasias e irresponsabilidade feliz. A criança
ainda vive uma relação espontânea, imaginária e lúdica com o mundo.
Mas isso não significa que a criança é
alienada e desconectada com a realidade. Uma das características da espontaneidade
infantil é a imitação, como lembra o ensaísta e crítico literário alemão Walter
Benjamin. Para ele, as crianças incorporam e traduzem o realismo do mundo
adulto para o universo dos jogos, onde tudo é livremente subvertido.
Muitos pesquisadores apontam que a força da
fantasia e do universo lúdico é a sua ausência de racionalidade, no sentido de
performance, metas, objetivos, ou seja, o “agir-racional-com-respeito-a-fins”.
A diversão é o jogo em si mesmo, e não o seu resultado final: a vitória.
Paradoxalmente, as crianças levam o jogo mais
à sério do que os adultos: enquanto nesses, o jogo é apenas um meio para
alcançar um resultado, na infância o jogo é divertido porque é tomado como um
fim em si mesmo.
Da Disney à KidZania
As crianças imitam o mundo adulto (brincam de
médico, de polícia ou de bombeiro) como um jogo em si mesmo: não há
performance, desempenho ou eficácia. Como nos filmes mudos do passado, tudo
pode acabar em guerra de pastelão, isto é, brigas, correria ou piadas que
subvertem toda a proposta original que podem repentinamente suspender o jogo
para ser criado um novo.
A nostalgia por esse passado lúdico é tão
forte que Walt Disney criou na década de 1950 a Disneylândia, o ápice dessa
tentativa adulta em trazer de volta pelo menos uma amostra do que se perdeu –
porém, de forma degenerada, simulada e sem mais a espontaneidade infantil.
O empresário Xavier Ancona certamente trouxe
dos EUA esse modus operandi da indústria do entretenimento. Mas ele foi mais
além: como um bom empresário formado nas melhores MBAs norte-americanas com
todos os valores atuais do empreendedorismo e foco nos negócios, não há espaço
para nostalgias infantis.
A infância, as crianças, o jogo e o fenômeno
lúdico persistem nos primeiros anos das nossas vidas. Mas num mundo de negócios
globalizados, quando o próprio jogo infantil se torna uma mercadoria, a criança
tem que se tornar o espelho do adulto, isso é, deve “brincar” daquilo o que ele
vai ser no futuro.
Crianças como espelho dos adultos
A brincadeira vira treinamento ou “role
play”: situação dramática para a criança, pois ela enfrenta uma dupla
simulação: se os jogos corporativos já são em si mesmo simulações (de situações
de competição, de negócios, de trabalho em equipe etc.), na KidZania a criança
simula no presente a simulação do que lhe espera no futuro.
Sintomaticamente esse fenômeno já está
presente no modismo das fotografias chamadas “newborn” (fotos de recém-nascidos
em suas primeiras semanas de vida): bebês vestindo tutus como fossem bailarinas
ou bebês com óculos apoiados em livros, nitidamente refletem a profissão ou o
estilo de vida dos pais – sobre isso clique
aqui.
E para se tornar completa essa simulação do
que será a vida adulta, as crianças são expostas às marcas das empresas globais
que dominam a cenografia da cidade em miniatura. Para Xavier Ancona faz parte do
efeito de realidade para tornar mais verossímil a simulação. Mas certamente o
propósito vai muito além do efeito estético: é formar os novos consumidores do
presente na precoce alfabetização da linguagem publicitária das marcas.
E também certamente, quando essas crianças
saírem do parque temático, serão novos fontes de pressão por consumo que
cercarão os orgulhosos pais.
Parece que o mundo atual dos negócios se
tornou tão competitivo e os princípios de eficácia, eficiência e performance
tão onipresentes que agora invadem o último espaço que existiria de
resistência: a nostalgia pelo jogo infantil e o universo do lúdico. As crianças
estão e tornando o espelho do que nos tornamos. Em um parque como KidZania os
adultos olham com ternura para seus filhos – na verdade, sua ternura é o
sentimento de resignação e derrota lembrando os versos daquela música dos Titãs
chamada “Marvin”:
Marvin, a vida é pra valer, eu fiz o meu melhor... e o seu destino eu sei de cor (...)”
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