“Muito Além do Jardim”
(Being There, 1979), um clássico com Peter Sellers, teve sérios problemas para
ser finalizado: o diretor Hal Ashby entrou em sério desentendimento com a produtora
Lorimar Films para impor um final que seria um dos mais polêmicos da história
do cinema (o final "andando sobre as águas"), um final tão cético que beira o ateísmo, isso após uma sequência
onde aparecem símbolos maçônicos no mausoléu de um dos protagonistas. Mas
“Muito Além do Jardim” é antes de tudo um filme sobre como a TV é capaz de
moldar nossa percepção do real, assim como todos projetam suas percepções e
interesses no protagonista. Uma fábula sobre a paradoxal incomunicabilidade em
uma cultura moldada pelos meios de comunicação.
Nunca um filme teve um título em
português tão bem acertado: “Muito Além do Jardim”. O título designado para
“Being There” do diretor Hal Ashby, é perfeito porque a narrativa de quase duas
horas em um ritmo elegante (ou lento, de acordo com a referência
cinematográfica do espectador) vai pouco a pouco aprofundando as consequências
na vida de um homem que se vê de repente despejado na rua após perder o emprego
de uma vida inteira (jardineiro) e como o acaso vai construindo o seu destino
em uma trajetória que o faz adentrar acidentalmente em círculos cada vez poderosos
até chegar ao presidente dos EUA.
Da história de um homem simples
cuja percepção da realidade foi moldada pela TV, passando pela forma como
inesperadamente se torna um “insider” dos altos círculos do poder de Washington
até o final onde símbolos esotéricos sugerem teorias conspiratórias na política
e um inesperado, ambíguo e perturbador final que potencialmente pode por em
xeque tudo que acabamos de assistir.
Como veremos adiante (aviso de
spoiler) a sequência final, que quase custou o emprego do diretor Hal Ashby que
insistiu em colocá-la na edição final do filme mesmo sob ameaça de demissão
pela produtora Lorimar, é uma das mais polêmicas da história do cinema: podemos
interpretá-la ou como um final poético sobre a pureza do protagonista ou como
um brutal ceticismo que confirmaria as intenções do diretor em inserir algumas
simbologias esotéricas na narrativa.
Mas, em geral, “Muito Além do
Jardim” é visto como um filme que trata sobre como a TV molda a nossa percepção
da realidade e como a política também é moldada por ela. O resultado final
seria a incomunicabilidade do protagonista com o mundo e das pessoas ao redor
com ele.
O Filme
Peter Sellers interpreta um
jardineiro mentalmente retardado (“Chance, o Jardineiro”) que viveu e trabalhou
toda a sua vida dentro dos muros de uma elegante mansão em Washington. A casa e
seu jardim estão em um bairro decadente de uma cidade que vive os reflexos de
uma crise econômica e desemprego nos EUA pós-crise do petróleo dos anos 1970.
Mas o que passa lá fora é de nenhum interesse para Chance. Ele cuida do jardim,
não saber ler ou escrever e apenas assiste à TV. É alimentado pelo staff de criados da mansão e vive
satisfeito com abrigo, alimento e auto-estima fornecida pelo jardim que cuida
com esmero.
Mas um dia o dono da mansão
morre, a família se dissolve e um casal de advogados comunica a Chance que a
casa será fechada e ele despejado. Chance, impecavelmente vestido com as roupas
sob medida do patrão, passa então a vagar pela cidade com uma mala, um
guarda-chuva e, principalmente, o controle remoto da TV. Ele utiliza o controle
imediatamente ao ver-se ameaçado por uma gangue de rua com adolescentes hostis.
Imperturbável, tenta mudar de canal, mas descobre que a vida lá fora não é
televisão.
Em uma sequência rica de significados
psicanalíticos, Chance se detém diante de uma loja de televisores e vê-se, pela
primeira vez, em um monitor a partir de uma câmera instalada no local.
Perplexo, Chance recua até o meio-fio para, então, sua perna ser prensada por
uma limusine que estacionava. Assim como na Fase do Espelho descrita pelo
psicanalista Jacques Lacan onde a criança vê-se a si mesmo nos olhos da mãe e
começa a construir sua identidade a partir do trauma da descoberta da ruptura
materna definitiva, Chance descobre de forma dolorosa sua identidade ao ser
atropelado pela limusine após o choque de ver-se na tela de um monitor de TV.
A partir daí ele será inserido
no mundo “real” do Poder: no veículo está Eva (Shirlley MacLaine) esposa de
Benjamin Rand, presidente do conselho da First Financial Corporation e
principal conselheiro e confidente do presidente dos EUA. Temerosa pela
possibilidade de processo ou escândalo, Eva conduz Chance para sua enorme
mansão para ser cuidado pelo médico da família.
Chance, o Forrest Gump dos anos 1970?
Com sua roupa impecável de
alfaiate e seu jeito que todos interpretam como o de um fleugmático gentleman (na verdade ele demonstra a
indiferença e distância próprias de um espectador de TV à espera da próxima
atração) todos acham que Chance é alguma figura misteriosa e importante de
Washington. Onde tem um aparelho de TV na mansão, Chance para e começa a fazer
mímicas, imitando o que vê na tela. Ele logo será chamado de “Chauncey Gardner”
(as pessoas simplesmente não entendem quando ele se apresenta como “Chance, The
Gardner” – “Chance, o Jardineiro”). Confundem “Gardner” como um sobrenome.
Jamais uma figura tão misteriosa, sem passado, capaz de tiradas filosoficamente
“profundas” poderia ser um simples jardineiro.
Tudo que Chance sabe vem de
jardins e televisores. As pessoas ao redor começam a fazer uma interpretação
superestimada de tudo que ele fala: “Eu vi cinzas e pó, e eu sei que tudo isso
é prejudicial para o crescimento de um jardim”, fala para os boquiabertos
Benjamin Rand e o presidente que veio em busca de conselhos para o próximo
discurso. Todos acham que Chauncey fala através de metáforas e analogias com
profundas verdades econômicas e filosóficas.
Logo, o presidente usará suas
“metáforas” como parábolas de economia liberal em seus discursos (as “raízes”
como a indústria e as “estações do ano” como ciclos econômicos etc.). Citará
nominalmente Chauncey como seu novo inspirador em um discurso na TV, o que
atrairá a curiosidade da imprensa e do FBI. Quem é Chauncey, um homem sem
passado, cartão de crédito ou conta bancária?
Símbolos iluminatis no funeral de Benjamin Randal? |
A crítica comparou o personagem do
filme “Forrest Gump” de 1994 com “Chance, The Gardner”, mas com uma diferença:
se em 1994 a filosofia sobre o nada de Forrest Gump mesclada com nostalgia foi
superestimada pelos espectadores como tiradas filosóficas “profundas”, em
“Muito Além do Jardim” Chance é pensado na perspectiva da incomunicabilidade:
como a realidade é construída a partir das nossas projeções de expectativas
que, em geral, são equivocadas. Na verdade as aparentes “lições” de Chance são
sintomas de uma incomunicabilidade generalizada.
Todos que entram em contato com
Chance atribuem mais significado aos seus pronunciamentos do que eles realmente
possuem. Todos os personagens do filme fazem uma interpretação errônea da
realidade: Chance vê o mundo como TV cujos eventos podem ser alterados pelo seu
controle remoto; Eva se apaixona por ele e considera seu jeito indiferente (na
verdade autista) como a de um homem reservado e sensível; o embaixador
soviético acha que ele fala oito línguas e conhece a literatura russa; um homossexual
acha que Chance é um pervertido (“Eu apenas gosto de olhar”, diz Chance,
referindo-se, na verdade, à TV); o FBI considera sua misteriosa figura uma potencial
ameaça; Rand e o lobby de influência em Washington os vê como a escolha
perfeita como próximo candidato à presidência – sem passado, não
poderá ser atacado pelos adversários...
Chance interpreta a realidade a
partir das imagens eletrônicas da TV, assim como todos o interpretam de acordo
com suas próprias projeções. Hal Ashby nos oferece uma fábula sobre a
incomunicabilidade e autismo na cultura contemporânea: ao invés de abrir
janelas para o mundo, os meios de comunicação e a midiatização da Política, ao
contrário, são auto-referenciais como espelhos que refletem nossas próprias
intenções.
Chance é Cristo? (aviso de spoilers a partir desse ponto)
Chance anda pelas águas. Como Jesus Cristo? |
Aos poucos o filme vai tomando
contornos mais sombrios e enigmáticos. Benjamin Rand, um homem poderoso
acostumado a manipular presidentes e os mercados de ações, está morrendo e não
tem um herdeiro apropriado para sua fortuna e poder de influência. Cada vez que
Chance abre a boca, sua palavras são vista por Rand como grandes revelações:
Chance é o nome certo para dar continuidade ao lobby na política e altas
finanças
Em outra sequência carregada de
significados, enquanto políticos e diretores de corporações financeiras
carregam o caixão de Rand, discutem o impacto das palavras de Chance em um talk
show na TV, as pesquisas de opinião favoráveis e decidem não apoiar a reeleição
do presidente. “Nossa única chance é Chauncey Gadner!" Ao fundo o mausoléu da
família Rand na forma do símbolo maçônico da nota de um dólar com o triângulo
com o olho que tudo vê (veja fotos acima).
E o ambíguo e potencialmente
perturbador final onde vemos Chance abandonando o funeral no alto de uma
colina. Ele desce e se dirige para um lago segurando o seu guarda-chuva. Ele
passa, então, a caminhar sobre as águas. Para e enfia o guarda-chuva no lago
para que o espectador se certifique da profundidade do lago e que Chance está,
de fato, caminhando sobre as águas... como Cristo!
Duas leituras são abertas: (1) É
apenas uma indicação de qual puro e inocente é Chance em um mundo de interesses
que deturpam a percepção da realidade ou (2) Chance é Cristo.
Talvez essas duas leituras,
intimamente relacionadas, estejam por trás da resistência da produtora a esse
final imposto por Hal Ashby. E se o Cristo histórico tiver sido como Chance?
Para todos, Chance estava se comunicando através de parábolas (a parábola das
“raízes”, a das “estações do ano” ou a das “cinzas e pó que matam um jardim”)
assim como Cristo teria revelado profundas verdades em fábulas como as do filho
pródigo, do semeador ou do joio e do trigo. Todos os evangelhos e
interpretações teriam sido nada mais do que projeções dos interesses de grupos
políticos dominantes ao sabor de cada época, assim como em “Muito Além do
Jardim”.
Por essa leitura, Ashby e o
livro de Jerzi Kosinski no qual se baseou o filme conteria um ceticismo
radical: se a realidade é o resultado das projeções de nossos pensamentos,
interesses e percepções, seríamos, apesar disso, capazes em algum momento de
compreender a Verdade ou algo parecido? Cristo teria tido o mesmo destino de
Chance, o Jardineiro?
Ficha Técnica
- Título: Muito Além do Jardim (Being There)
- Diretor: Hal Ashby
- Roteiro: Jerzy Kosinski e Robert C. Jones
- Elenco: Peter Sellers, Shirley MacLaine, Melvyn Douglas, Jack Warden
- Produção: Lorimar Film Entertainment
- Distribuição: Warner Home Video
- Ano: 1979
- País: EUA