domingo, junho 02, 2013

Sobre realidade, jardins e TVs no filme "Muito Além do Jardim"


“Muito Além do Jardim” (Being There, 1979), um clássico com Peter Sellers, teve sérios problemas para ser finalizado: o diretor Hal Ashby entrou em sério desentendimento com a produtora Lorimar Films para impor um final que seria um dos mais polêmicos da história do cinema (o final "andando sobre as águas"), um final tão cético que beira o ateísmo, isso após uma sequência onde aparecem símbolos maçônicos no mausoléu de um dos protagonistas. Mas “Muito Além do Jardim” é antes de tudo um filme sobre como a TV é capaz de moldar nossa percepção do real, assim como todos projetam suas percepções e interesses no protagonista. Uma fábula sobre a paradoxal incomunicabilidade em uma cultura moldada pelos meios de comunicação.

Nunca um filme teve um título em português tão bem acertado: “Muito Além do Jardim”. O título designado para “Being There” do diretor Hal Ashby, é perfeito porque a narrativa de quase duas horas em um ritmo elegante (ou lento, de acordo com a referência cinematográfica do espectador) vai pouco a pouco aprofundando as consequências na vida de um homem que se vê de repente despejado na rua após perder o emprego de uma vida inteira (jardineiro) e como o acaso vai construindo o seu destino em uma trajetória que o faz adentrar acidentalmente em círculos cada vez poderosos até chegar ao presidente dos EUA.

Da história de um homem simples cuja percepção da realidade foi moldada pela TV, passando pela forma como inesperadamente se torna um “insider” dos altos círculos do poder de Washington até o final onde símbolos esotéricos sugerem teorias conspiratórias na política e um inesperado, ambíguo e perturbador final que potencialmente pode por em xeque tudo que acabamos de assistir.

Como veremos adiante (aviso de spoiler) a sequência final, que quase custou o emprego do diretor Hal Ashby que insistiu em colocá-la na edição final do filme mesmo sob ameaça de demissão pela produtora Lorimar, é uma das mais polêmicas da história do cinema: podemos interpretá-la ou como um final poético sobre a pureza do protagonista ou como um brutal ceticismo que confirmaria as intenções do diretor em inserir algumas simbologias esotéricas na narrativa.


Mas, em geral, “Muito Além do Jardim” é visto como um filme que trata sobre como a TV molda a nossa percepção da realidade e como a política também é moldada por ela. O resultado final seria a incomunicabilidade do protagonista com o mundo e das pessoas ao redor com ele.

O Filme


Peter Sellers interpreta um jardineiro mentalmente retardado (“Chance, o Jardineiro”) que viveu e trabalhou toda a sua vida dentro dos muros de uma elegante mansão em Washington. A casa e seu jardim estão em um bairro decadente de uma cidade que vive os reflexos de uma crise econômica e desemprego nos EUA pós-crise do petróleo dos anos 1970. Mas o que passa lá fora é de nenhum interesse para Chance. Ele cuida do jardim, não saber ler ou escrever e apenas assiste à TV. É alimentado pelo staff de criados da mansão e vive satisfeito com abrigo, alimento e auto-estima fornecida pelo jardim que cuida com esmero.

Mas um dia o dono da mansão morre, a família se dissolve e um casal de advogados comunica a Chance que a casa será fechada e ele despejado. Chance, impecavelmente vestido com as roupas sob medida do patrão, passa então a vagar pela cidade com uma mala, um guarda-chuva e, principalmente, o controle remoto da TV. Ele utiliza o controle imediatamente ao ver-se ameaçado por uma gangue de rua com adolescentes hostis. Imperturbável, tenta mudar de canal, mas descobre que a vida lá fora não é televisão.

Em uma sequência rica de significados psicanalíticos, Chance se detém diante de uma loja de televisores e vê-se, pela primeira vez, em um monitor a partir de uma câmera instalada no local. Perplexo, Chance recua até o meio-fio para, então, sua perna ser prensada por uma limusine que estacionava. Assim como na Fase do Espelho descrita pelo psicanalista Jacques Lacan onde a criança vê-se a si mesmo nos olhos da mãe e começa a construir sua identidade a partir do trauma da descoberta da ruptura materna definitiva, Chance descobre de forma dolorosa sua identidade ao ser atropelado pela limusine após o choque de ver-se na tela de um monitor de TV.

A partir daí ele será inserido no mundo “real” do Poder: no veículo está Eva (Shirlley MacLaine) esposa de Benjamin Rand, presidente do conselho da First Financial Corporation e principal conselheiro e confidente do presidente dos EUA. Temerosa pela possibilidade de processo ou escândalo, Eva conduz Chance para sua enorme mansão para ser cuidado pelo médico da família.

Chance, o Forrest Gump dos anos 1970?


Com sua roupa impecável de alfaiate e seu jeito que todos interpretam como o de um fleugmático gentleman (na verdade ele demonstra a indiferença e distância próprias de um espectador de TV à espera da próxima atração) todos acham que Chance é alguma figura misteriosa e importante de Washington. Onde tem um aparelho de TV na mansão, Chance para e começa a fazer mímicas, imitando o que vê na tela. Ele logo será chamado de “Chauncey Gardner” (as pessoas simplesmente não entendem quando ele se apresenta como “Chance, The Gardner” – “Chance, o Jardineiro”). Confundem “Gardner” como um sobrenome. Jamais uma figura tão misteriosa, sem passado, capaz de tiradas filosoficamente “profundas” poderia ser um simples jardineiro.

Tudo que Chance sabe vem de jardins e televisores. As pessoas ao redor começam a fazer uma interpretação superestimada de tudo que ele fala: “Eu vi cinzas e pó, e eu sei que tudo isso é prejudicial para o crescimento de um jardim”, fala para os boquiabertos Benjamin Rand e o presidente que veio em busca de conselhos para o próximo discurso. Todos acham que Chauncey fala através de metáforas e analogias com profundas verdades econômicas e filosóficas.

Logo, o presidente usará suas “metáforas” como parábolas de economia liberal em seus discursos (as “raízes” como a indústria e as “estações do ano” como ciclos econômicos etc.). Citará nominalmente Chauncey como seu novo inspirador em um discurso na TV, o que atrairá a curiosidade da imprensa e do FBI. Quem é Chauncey, um homem sem passado, cartão de crédito ou conta bancária?

Símbolos iluminatis no funeral
de Benjamin Randal?
A crítica comparou o personagem do filme “Forrest Gump” de 1994 com “Chance, The Gardner”, mas com uma diferença: se em 1994 a filosofia sobre o nada de Forrest Gump mesclada com nostalgia foi superestimada pelos espectadores como tiradas filosóficas “profundas”, em “Muito Além do Jardim” Chance é pensado na perspectiva da incomunicabilidade: como a realidade é construída a partir das nossas projeções de expectativas que, em geral, são equivocadas. Na verdade as aparentes “lições” de Chance são sintomas de uma incomunicabilidade generalizada.

Todos que entram em contato com Chance atribuem mais significado aos seus pronunciamentos do que eles realmente possuem. Todos os personagens do filme fazem uma interpretação errônea da realidade: Chance vê o mundo como TV cujos eventos podem ser alterados pelo seu controle remoto; Eva se apaixona por ele e considera seu jeito indiferente (na verdade autista) como a de um homem reservado e sensível; o embaixador soviético acha que ele fala oito línguas e conhece a literatura russa; um homossexual acha que Chance é um pervertido (“Eu apenas gosto de olhar”, diz Chance, referindo-se, na verdade, à TV); o FBI considera sua misteriosa figura uma potencial ameaça; Rand e o lobby de influência em Washington os vê como a escolha perfeita como próximo candidato à presidência – sem passado, não poderá ser atacado pelos adversários...


Chance interpreta a realidade a partir das imagens eletrônicas da TV, assim como todos o interpretam de acordo com suas próprias projeções. Hal Ashby nos oferece uma fábula sobre a incomunicabilidade e autismo na cultura contemporânea: ao invés de abrir janelas para o mundo, os meios de comunicação e a midiatização da Política, ao contrário, são auto-referenciais como espelhos que refletem nossas próprias intenções.

Chance é Cristo? (aviso de spoilers a partir desse ponto)


Chance anda pelas águas. Como Jesus Cristo?
Aos poucos o filme vai tomando contornos mais sombrios e enigmáticos. Benjamin Rand, um homem poderoso acostumado a manipular presidentes e os mercados de ações, está morrendo e não tem um herdeiro apropriado para sua fortuna e poder de influência. Cada vez que Chance abre a boca, sua palavras são vista por Rand como grandes revelações: Chance é o nome certo para dar continuidade ao lobby na política e altas finanças

Em outra sequência carregada de significados, enquanto políticos e diretores de corporações financeiras carregam o caixão de Rand, discutem o impacto das palavras de Chance em um talk show na TV, as pesquisas de opinião favoráveis e decidem não apoiar a reeleição do presidente. “Nossa única chance é Chauncey Gadner!" Ao fundo o mausoléu da família Rand na forma do símbolo maçônico da nota de um dólar com o triângulo com o olho que tudo vê (veja fotos acima).

E o ambíguo e potencialmente perturbador final onde vemos Chance abandonando o funeral no alto de uma colina. Ele desce e se dirige para um lago segurando o seu guarda-chuva. Ele passa, então, a caminhar sobre as águas. Para e enfia o guarda-chuva no lago para que o espectador se certifique da profundidade do lago e que Chance está, de fato, caminhando sobre as águas... como Cristo!

Duas leituras são abertas: (1) É apenas uma indicação de qual puro e inocente é Chance em um mundo de interesses que deturpam a percepção da realidade ou (2) Chance é Cristo.

Talvez essas duas leituras, intimamente relacionadas, estejam por trás da resistência da produtora a esse final imposto por Hal Ashby. E se o Cristo histórico tiver sido como Chance? Para todos, Chance estava se comunicando através de parábolas (a parábola das “raízes”, a das “estações do ano” ou a das “cinzas e pó que matam um jardim”) assim como Cristo teria revelado profundas verdades em fábulas como as do filho pródigo, do semeador ou do joio e do trigo. Todos os evangelhos e interpretações teriam sido nada mais do que projeções dos interesses de grupos políticos dominantes ao sabor de cada época, assim como em “Muito Além do Jardim”.

Por essa leitura, Ashby e o livro de Jerzi Kosinski no qual se baseou o filme conteria um ceticismo radical: se a realidade é o resultado das projeções de nossos pensamentos, interesses e percepções, seríamos, apesar disso, capazes em algum momento de compreender a Verdade ou algo parecido? Cristo teria tido o mesmo destino de Chance, o Jardineiro?

Ficha Técnica

  • Título: Muito Além do Jardim (Being There)
  • Diretor: Hal Ashby
  • Roteiro: Jerzy Kosinski e Robert C. Jones
  • Elenco: Peter Sellers, Shirley MacLaine, Melvyn Douglas, Jack Warden
  • Produção: Lorimar Film Entertainment
  • Distribuição: Warner Home Video
  • Ano: 1979
  • País: EUA

 

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