A escalada de manifestações nas ruas em todo o país parece expressar um
profundo mal estar dos jovens em relação não apenas à política (o jogo partidário), mas principalmente à instituição
da Política como representação de
qualquer demanda social. Desconfiam que por trás da Política ou do Poder não existe
nada mais do que ardil, simulação, blefe. Mas a mídia tem horror ao vácuo: para
manter o ardil da simulação os meios de comunicação precisam encaixar as manifestações
em um script, assim como um novo roteiro
de um filme publicitário que oferece mais do mesmo para o mercado.
As interpretações dos cientistas e comentaristas
políticos crescem na mesma proporção que os protestos nas ruas. Em toda essa
espiral interpretativa há um ponto que todos parecem concordar: a incrível
flexibilidade e rapidez da logística das mobilizações nas ruas através das
redes sociais contrasta com os lentos canais de comunicação representativos de
partidos políticos, Executivo e organizações classistas. A UNE, por exemplo,
desapareceu. Qualquer identificação partidária no meio das passeatas é vista
com maus olhos e rejeitada pelos manifestantes.
Mas essa questão logística de comunicação é apenas
o sintoma: os jovens na rua estão expressando um profundo mal estar em relação
não apenas à política (o jogo partidário), mas principalmente à Política – o
questionamento da própria ideologia política como representação de qualquer
demanda social. Em outras palavras, os jovens desconfiam que por trás da
Política ou da ideologia não existe nada e que tudo é um ardil, uma simulação,
um blefe.
A essa desconfiança que parece estar latente em
cada voto nulo ou em branco o pensador francês Jean Baudrillard
chamava de “grau zero da política”. Para ele o Poder teria perdido a sua
correspondência objetiva no real. Ele subsistiria apenas no campo midiático da
simulação da vontade política das autoridades, das suas declarações, das suas
“canetadas” em projetos e promulgação de leis, nas intrigas palacianas, nos
boatos metodicamente “vazados” para as mídias. Diante do Capital, o Poder
subsistiria como mero gerenciador da manutenção macroeconômica. Dito de outro
modo, o Poder não mais produz a
Política, ele apenas reproduz
políticas econômicas, financeiras, sociais etc.
O perigo da simulação
Ña Política não existe produção, mas reprodução |
O que seria então o jogo partidário senão a
simulação de diferenças ideológicas que, em si, cessaram? Lendo Baudrillard
parece que ele quer nos dizer que os partidos guardam uma analogia às
mercadorias promovidas pela Publicidade: em mercados cartelizados os produtos
começam a ficar cada vez mais parecidos tecnologicamente; por isso, o ardil
publicitário seria o de simular diferenças (design, cores, apresentação,
retórica etc.), criar um centro gravitacional em torno do qual tudo circule
para evitar a suspeita no consumidor de que tanto faz qual produto escolher.
É exatamente esse o perigo de toda simulação ou
blefe: e se suspeitarmos de que nada existe por trás? E se o eleitor descobrir
que por trás da representação democrática não existe produção (História, Revolução, Transformação, Rupturas etc.), mas
apenas a reprodução ad eternum não só do jogo político
(circularidade e auto-referência) como também reprodução da onisciente necessidade de reprodução macroeconômica
do valor de troca?
Esse mal estar de que, na verdade, “tanto faz”
representaria o momento de verdade de toda essa escalada de protestos que
testemunhamos nas ruas e nos meio de comunicação. Os jovens estão deixando o
rei nu, Dorothy abre a cortina e descobre que o Mágico de Oz não existe.
Horror ao vácuo
Porém, a natureza parece ter horror ao vácuo. A
ausência de centro gravitacional, de uma massa com densidade suficiente para
criar uma força centrípeda que dê sentido à Política e ao Poder, passa a ser
compensada de forma canhestra por uma instituição: a mídia.
Quando Maria Judith Brito, presidente da Associação
Nacional dos Jornais (ANJ), falou que diante de uma oposição fragilizada
politicamente no país os meios de comunicação seriam de fato o verdadeiro
partido de oposição, não foi uma mera bravata ou elogio à liberdade de (em)imprensa.
Foi na verdade uma tese baudrillardiana de que toda a sociedade já gravita em
torno das mídias como a única forma de produção de sentido possível, nem que
seja como simulação.
O campo de enquadramento da câmera passa a ser o
novo tempo forte do social, em torno do qual todos os agentes gravitam,
inclusive o próprio Poder e a Política.
O incêndio do painel da Coca-Cola Copa 2014 |
Nas ruas o comportamento dos manifestantes diante
das mídias tem semostrado ambíguo: de um lado queimam furgões de emissoras de
TV como o da Record ou expulsam repórteres da TV Globo como o caso de Caco
Barcelos; por outro, onde tem um cinegrafista e um spot de luz (desde que não
identificada a emissora) é imediatamente cercado por manifestantes que gritam
palavras de ordem, pulam, acenam e mostram cartazes com mais palavras de ordem
e reivindicações.
É inegável que há um componente cênico-teatral nas
ações nas ruas, um desejo de visibilidade, de repercussão ao depredar símbolos
midiáticos (o painel da Coca-Cola em referência à Copa 2014) ou quando eskatistas
posam para fotos e cinegrafistas diante da carcaça do furgão da TV Record
incendiado.
Passado o momento progressista e de verdade de um
movimento que rechaçou a simulação do jogo político-partidário, o movimento
corre agora o risco de ser mais um agente a gravitar em torno dos meios de
comunicação, principalmente agora que a mídia descobriu um escript para
encaixá-lo. Passado o momento de perplexidade em que a mídia viu as
manifestações das ruas sem poder entendê-las a não ser pela execração (“vândalos”,
“criminosos”, “burrice política” etc.), agora vislumbram a possibilidade de
encaixar as passeatas e mobilizações no roteiro da simulação do Poder e da
Política a partir da criação da atmosfera de uma suposta crise.
Em poucos dias a TV Globo passou a compará-los aos “caras-pintadas”
do impeachment de Collor, a convidar os espectadores a enviar seus melhores vídeos
sobre os protestos, a caprichar nos enquadramentos de forte carga retórica
(torre da FIESP na avenida Paulista iluminada em verde e amarelo diante de um
mar de faixas e cartazes, uma criança que dava flores para cada manifestante
que passava na avenida Faria Lima...). E as cenas de depredação e incêndios
provocadas claramente por truculentos agitadores sempre mostrados em tomadas aéreas
por helicópteros para dar um impacto ainda maior de caos e anomia, emendadas
por comentários sobre perda do controle federal, repercussão internacional das
manifestações, aumento do dólar e assim por diante em um delirante discurso
metonímico.
Se a grande novidade da explosão das manifestações
foi pegar a questão das tarifas de ônibus como um álibi para expressar esse mal
estar do jovem diante do artificialismo da Política, agora ironicamente começam
a ser capturados pelo mesmo discurso midiático que quer encobrir esse mesmo
artificialismo ao simular a existência de Poder através do ensaio de golpe
contra o governo Dilma.
Nostalgia ideológica
Dilma precisa ser derrubada por uma necessidade simbólica de simulação das diferenças ideológicas |
Se o Poder não existe para Baudrillard, porque falar
então em “golpe”? Para Baudrillard, se existe Poder ele não está mais no campo
da política e do discurso, mas na ordem do proibido, da Lei, dimensões que
evocam muito mais uma antropologia da política do que a ordem objetiva do real.
Explicando melhor, o PT precisa ser derrubado não porque ele é virulento e
radical (afinal ele nada mais fez até agora do que modernizar o país pela
normalização das funções de reprodução de força de trabalho e consumo ótima
para o capital com as medidas de inserção social e a manutenção da
financeirização), mas por uma necessidade simbólica de simulação das diferenças
ideológico-partidárias.
Encaixar os gritos das ruas à pauta midiática do
combate à corrupção e à indignação “contra tudo que está aí” é um álibi para
invocar toda a nostalgia ideológica retro da Direita: neoliberais radicais, neofascistas
e tantos “neos” quanto forem necessários para a simulação do embate político.
Pois justamente no momento em que os jovens nas
ruas expressavam esse sintoma do envelhecimento e fastio diante do jogo da
simulação da Política e do Poder, eis que surgem os meios de comunicação ávidos
por encaixar esses jovens manifestantes em um roteiro pré-estabelecido que, por
incrível que pareça, a mídia levou algum tempo para entender: o script da “primavera de mudanças”, da “novidade
política”, assim como o roteiro de uma campanha publicitária que lança mais do
mesmo no mercado.
Tudo isso lembra o já mítico filme “Show de Truman”
(Truman Show, 1998): diante da melancolia e paranoia crescentes do protagonista
que desconfia de que há algo de errado na cidade de Seaheaven onde vive, o
produtor do reality show cria um plot melodramático
para racionalizar o mal estar de Truman: na verdade tudo o que ele sente nada
mais é do que a culpa pela morte do pai.
Da mesma forma os meios de comunicação querem
transformar as manifestações na palmatória de um suposto processo de moralização
política em andamento, retirando toda a radicalidade de jovens que começavam a
perceber que por trás das camadas ideológicas, nada existe.
Em um revival
nostálgico voltam à memória da mídia a “marcha pela família” que antecedeu o
golpe que derrubou João Goulart em 1964, as greves gerais que minaram o poder
do governo socialista de Allende no Chile e a “Marcha dos 100 mil” de protesto
contra a ditadura militar brasileira em 1968. Da Esquerda para a Direita essas
imagens retro são repercutidas para, de alguma forma, dar sentido às
verdadeiras flash mobs que se
tornaram as mobilizações. A mídia soube entender em tempo hábil tudo isso, mas
e a Esquerda? Sumiu... apertem os cintos.
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