A chamada “senha sagrada”, a pergunta “o que você vê quando fecha os olhos?”, é uma bomba lógica e fatal para os robôs no filme espanhol “Eva” (2011), usada em situações extremas quando o robô deve ser imediatamente “desligado”. Com temática semelhante a “I.A.” (2001) de Spielberg, o diretor Kike Maíllo evitou os clichês dos mundos sombrios, pós-apocalípticos e distópicos para colocar a questão em um futuro próximo ao focar os robôs dentro do problema central da inteligência artificial: a lógica linear e binária dos robôs não consegue entender os paradoxos lógicos como o que está contido nessa pergunta fatal. Sem vida interior os robôs somente enxergam a escuridão. Isso até tentarem fazer um robô especial que seja capaz de ver a Luz da consciência, mas com perversas consequências. Filme sugerido pelo nosso leitor Fábio Hofnik.
“EVA” é um desses filmes difíceis de serem resenhados porque
qualquer coisa que se escreva sobre ele corre o risco de transformar-se em um
grande spoiler, matando a graça da narrativa.
Isso porque o filme consegue realizar uma coisa que é o sonho de todo
roteirista: uma narrativa bem amarrada a partir de um gancho perfeito. No caso
de “Eva” o gancho é uma pergunta denominada por um dos personagens como “a
senha sagrada”: “O que você vê quando fecha os olhos?” Uma pergunta que somente
pode ser formulada a um robô em casos extremos, quando não resta outra
alternativa. Em quais casos extremos? Quando robôs irremediavelmente se
danificam, algumas vezes a ponto de ameaçarem seres humanos. Ao ouvir a
pergunta, o robô imediatamente entra em colapso e desliga.
Em um futuro bem próximo, Alex Garel (Daniel Brühl – “Adeus
Lênin” e “Bastardos Inglórios”) é um famoso programador de robôs que retorna à
sua cidade natal dez anos depois para reencontrar sua antiga Universidade de
Robótica e seu amor Lana (Marta Etura), pesquisadora e professora da
Universidade, mãe de uma menina chamada Eva. Agora casada com o irmão de Alex
(David Garel – Alberto Ammann), cria-se um triângulo amoroso que irá se tornar
no tenso pano de fundo do projeto que envolverá todos: a criação de uma nova
linha de robôs livres e autônomos.
Em busca de uma personalidade infantil ideal para servir de
modelo para desenhar um inédito programa de personalidade para esse novo robô,
Alex encontra na menina Eva a criança perfeita: inteligente, perspicaz e
criativa.
“Criar robôs divertidos para pessoas entediadas”. É como
David Garel define ironicamente toda a pesquisa e ensino da Universidade de
Robótica. Por isso, pretendem revolucionar essa área tecnológica com o projeto
do robô S.I-9. Vemos nas primeiras sequências como os diversos tipos de robôs
participam da rotina dos humanos: como recepcionistas, dublês de animais
domésticos ou garçons. São programações lineares, alguns dotados de certa independência
(como o gato robótico de estimação de Alex), mas nenhum deles conseguiu
alcançar o grau de inteligência autônoma.
O ponto chave do filme é a senha fatal para os robôs: “o que
você vê quando fecha os olhos?” Por que os robôs entram em uma pane mortal ao
ouvirem essa pergunta? Para uma inteligência artificial (I.A.) atual incapaz de
lidar com paradoxos e níveis lógicos simultâneos, essa pergunta é totalmente
irracional: como é possível enxergar algo estando com os olhos fechados? Sem
estabelecer um nível meta, é impossível uma resposta que fuja à literalidade da
pergunta. Dentro da lógica formal e binária robótica (olho aberto/fechado,
ver/não ver), a dualidade não se supera e transforma-se em uma contradição
insolúvel.
Desde a formulação dos tipos lógicos pelo filósofo Bertrand Russell
(1872-1970) como solução para bloquear círculos viciosos em raciocínios lógicos
(o estabelecimento do nível meta em um raciocínio onde se evitaria confundir classe com conjunto), esse passou a ser o desafio dos pesquisadores em I.A. Se
um dia uma máquina solucionasse o famoso “paradoxo do cretense” (um cretense
afirma: todo cretense é um mentiroso – se todo cretense é mentiroso, essa
afirmação só pode ser mentirosa, porém essa mentira confirmaria que todo
cretense fala a verdade: a de que todo cretense mente...) teríamos uma I.A. que
finalmente estaria pensando , isto é, estabelecendo um nível “meta” ao seu
próprio ser. A consciência na inteligência artificial.
Um robô nada enxerga com olhos fechados porque não é dotado
de vida interior, não tem alma ou sonhos. A vida interior (o psiquismo) criaria
esse nível meta impossível até agora para a I.A. Esse é o desafio que Alex Garel
procura superar com o retorno à sua cidade natal: o design de um software de
personalidade robótica tão rico e complexo que consiga, a partir da criação de
sentimentos e emoções cada vez mais refinados, criar a vida interior psíquica
em uma máquina. Ao invés de ver escuridão, ver Luz (Opa! Quase criei um spoiler!).
Cartografias e topografias da mente
Em postagens anteriores discutíamos como o cinema atual vem
refletindo a agenda tecnocientífica atual marcado por aquilo que denomino como
projeto tecnognóstico: o esforço multidisciplinar envolvendo aas neurociências,
ciências cognitivas, I.A. e teoria da informação para desvendar um dos últimos grandes mistérios da ciência: o
funcionamento da mente humana e a natureza da consciência. A procura de uma
simulação, um modelo computacional, uma interface gráfica que permita não só
compreender a dinâmica dos processos mentais e da consciência, mas,
principalmente, manipulá-la e controlá-la.
“Eva” é
mais um exemplo, talvez o filme recente que melhor visualmente represente esse
esforço em fazer uma verdadeira geografia interior, as cartografias e
topografias da mente. Essa é a grande diferença entre “Eva” e “I.A.” de
Spielberg: embora ambos tratem de narrativas sobre robôs infantis, em “I.A.”
temos o ponto de vista dos robôs (abandono, desamor e solidão), enquanto que
“Eva” são os robôs pelo olhar humano (poder, manipulação e controle).
As cenas
em que Alex lida com uma interface gráfica tridimensional onde manipula livremente
as peças/pingentes de um verdadeiro mapa da personalidade em forma de um imenso
lustre é a melhor metáfora que se aproxima do imaginário tecnognóstico.
Teurgia e Robótica
Por outro
lado, a metáfora da personalidade humana como um lustre e a luz na sequência
final como a consciência que sobrevive após a morte tem claramente sua
inspiração arquetípica na teurgia e na alquimia.
Para
Victoria Nelson em seu livro The Secret
Life of Puppets a origem do fascínio humano atemporal por bonecos,
fantoches e autômatos ao longo da história tem sua origem na teurgia
helenística cujas origens encontram no platonismo. Apesar de ser uma forma
inferior, o ser humano teria dentro de si fagulhas divinas (a Luz) da sua
origem (Anthropos). Portanto,
objetivo da sua existência seria galgar os degraus que o façam retornar às suas
origens divinas. Nós, humanos, não passaríamos de simulacros do Humano Primal,
assim como o mundo dos nossos sentidos é um simulacro do Mundo das Formas.
Através do autoconhecimento ou gnose poderíamos então retornar à Luz é à vida
eterna possuída por Antropos, esse
humano essencial.
A Teurgia surge no mundo helenístico
como a primeira forma de alcançar isso através da manipulação da matéria onde,
assim como o Demiurgo, podemos dar vida e alma a uma forma material e inferior.
Se temos dentro de nós uma parte desse Anthropos,
podemos retornar a ele exercendo as mesmas habilidades reservada aos
deuses: imitatio dei por generatio animae, imitar
Deus criando vida.
Para a autora, é na Alquimia que temos
esse encontro decisivo entre gnosis e
epistemis, entre a ciência
experimental e a prática religiosa através de sucessivas operações que
reproduzem as etapas da criação do cosmos físico pelo Demiurgo até a redenção
da matéria representado pela criação da “Pedra Filosofal” ou da “criança/homunculus”
(“pequeno homem”, também chamado como “mannikin”).
A robótica e a I.A. atualizam essa mitologia, porém não mais redimindo a
matéria, mas submetendo-a ao controle e manipulação através de um código
arbitrário. O projeto tecnognóstico é a promessa messiânica de
libertação espiritual dos limites do corpo através do aumento da capacidade de
acessar poderes ainda desconhecidos da mente. Como já vimos em postagens
anteriores (veja links abaixo), esse discurso é um amálgama de ciência com
misticismo tecnognóstico na busca de atalhos que permitam essa transcendência
final: técnicas de autoajuda, modelos simulados do cérebro desenhados a partir
de cartografias mentais. A promessa de realizar uma aspiração arquetípica da
espécie (gnose e transcendência) por meio de uma tecnologia que possibilita a
manipulação e controle.
Mas “Eva” vai além: retoma o lamento do replicante Roy no filme “Blade
Runner” (1982) ao pressentir que vai ser “desligado”: “para onde irão todas as
minhas memórias?” – lamenta o replicante em uma sequência antológica. “Irão
embora como lágrimas na chuva”, lamenta. Mas em “Eva” elas se transformarão em
luz, aquilo que toda Alquimia e o Gnosticismo procuram resgatar na espécie
humana.
Ficha Técnica
- Título: Eva
- Direção: Kike Maíllo
- Roteiro: Sergi Belbel, Aintza Serra
- Elenco: Daniel Brühl, Marta Etura, Alberto Ammann, Claudia Veja
- Produção: Canal+ Espanha, Escândalo Films, Ran Entertainment
- Distribuição: Paramount
- Ano: 2011
- País: Espanha
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