sexta-feira, julho 06, 2012

O que há em comum entre a fotografia e o dinheiro?

Com essa pergunta não queremos falar sobre a profissionalização da fotografia ou sobre os conflitos entre a arte e a mercantilização. Estamos mais interessados em encontrar as semelhanças entre essas duas invenções no plano do imaginário social. Devido à função de representação que eles carregam (representar o real e a riqueza), a sociedade investe neles um alto valor moral: respectivamente objetividade e verdade; gratificação pelo empreendimento pessoal. Porém, a "obesidade" tecnológica parece inverter essa função ao reservar à fotografia e ao dinheiro o destino da dissimulação, simulação e hiper-realidade.

A fotografia e o dinheiro talvez sejam as principais bases imaginárias do Capitalismo. A primeira foi a invenção que deu início de toda a civilização da imagem, do espetáculo e das celebridades; e o segundo foi o instrumento para a criação de um princípio geral de equivalência, troca e unidade contábil através da qual todas as qualidades (objetos, valores, desejos e até sentimentos) podem ser quantificadas em um sistema de calculo universal.

A invenção da fotografia se desdobrou em uma série de subprodutos: fotojornalismo, foto publicitária, fotografia de viagem, retratos, foto-arte etc.; e o dinheiro em papel-moeda, cheque, crédito, dinheiro digital etc..

Embora gêneros de diferentes mundos (o cultural e o econômico) capazes de assumirem diferentes formas, um princípio único e mais básico os torna comuns: ambos são exemplos do primado da ordem da representação no Ocidente. Esse “partido da representação” pode ser formulado da seguinte maneira: em toda e qualquer forma de representação alguma coisa se encontra no lugar de outra coisa. Representar significa o outro do outro. Seriam exemplos do desejo humano em simbolizar, representar o que vê, o que sente e o que produz.

Tanto a fotografia quanto o dinheiro partilham de um poder de representação, isto é, a existência de uma relação semiótica de similaridade entre o negativo ou a foto impressa com o referente “real” ou uma relação semiótica simbólica entre um pedaço de metal ou plástico com uma quantidade de riqueza econômica correspondente.


A fotografia surge para representar o real e o dinheiro como medida de representação da riqueza e  de coisas produzidas.

Fotografia: o início de uma era onde as
imagens prometem cada vez mais
fidelidade e exatidão
Mais ainda, devido ao forte poder de representação que a fotografia e o dinheiro carregam, a sociedade investe neles um alto valor moral: primeiro na fotografia, porque tirou da arte toda a missão figurativista através de um olhar tecnologicamente objetivo e realista, supostamente sem a intromissão da subjetividade humana – o valor moral da objetividade e verdade; e no dinheiro a referência para a atitude racional e responsável na busca do lucro, sucesso e gratificação pelo empreendimento pessoal – princípio último da racionalidade econômica.

Fotografia e Dinheiro são casos exemplares porque seus produtos legitimam a certeza imanente aos sistemas de que elas são racionais, úteis e que tendem para o progresso. A fotografia inaugura a época da captação tecnológica do real por meio de imagens que tenderiam cada vez mais para o aprimoramento da utilidade: definição cada vez mais alta e fidelidade cada vez mais exata (das técnicas de emulsão química de revelação das imagens, a imagem granulada do cinema, 3D, imagens holográficas etc.); e o dinheiro como forma racional de medição do valor, forma de pagamento e acumulação de riqueza.

Obesidade tecnológica



Mas vivemos um momento em que os sistemas parecem estar “obesos” de tanto avanço tecnológico que, ironicamente, inverte a própria racionalidade que buscavam. Por exemplo, as fotografias digitais que de tantos recursos de captação e tratamento parecem não querer mais captar o real com fidelidade, mas superá-lo; ou toda liquidez financeira possibilitada pelo comando das tecnologias integradoras da microinformática que criou um movimento de desmaterialização sem precedentes pela especulação de títulos e papéis que superam a própria função do dinheiro.

A grande virtude dos pensadores “pós-modernos”, dentro da crítica chamada de “pós-estruturalista” que alimentava uma grande desconfiança em relação a conceitos como “representação”, “sentido” e “valor”, foi a de mobilizar um esforço teórico e de pesquisa para entender a dinâmica dessa irônica reversão dos sistemas altamente tecnologizados.

O filósofo francês Jean Baudrillard foi um desses pesquisadores. No livro “Simulacros e Simulações” de 1981 (no qual os irmãos Wachowski se inspiraram para criar o argumento do filme “Matrix” de 1999), Baudrillard vai para além do tradicional esforço da Filosofia em descascar a cebola que é o real. Ele constrói o seu espanto por descobrir que na sociedade industrial o homem não mais contempla, agora finge; não mais representa, mas simula. E investigou o que seriam as diferentes etapas da simulação ao longo da História, até chegar à simulação mais perfeita, a tecnológica: (a) representação, (b) dissimulação, (c) simulação e (d) hiper-real.

A fotografia e o dinheiro são casos exemplares onde mais facilmente percebemos os desdobramentos dessas sucessivas fases da simulação.


Fotografia: da representação ao hiper-real


Exposition Universelle de 1855: o início
da era da dissimulação na fotografia
(a)  Representação: fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar ou duvidamos parecem ser comprovados quando nos mostram uma foto. A força da similaridade da foto é a prova incontestável de que algo existe ou existiu. A foto como evidência mais forte da representação do mundo por meio de um dispositivo tecnológico.

(b)  Dissimulação: Em 1855 na Exposition Universelle de Paris (a primeira exposição industrial com exposição de fotos) um fotógrafo alemão espantou a multidão ao apresentar duas versões de um mesmo retrato – uma retocada e outra não. Estava inventada a retocagem no negativo, que fez a invenção ingressar na etapa da dissimulação: a situação onde afirmamos que não possuímos algo que escondemos. É a mentira, manipulação e ideologia. Mas ainda no horizonte vislumbramos a existência do referente. Só podemos afirmar que existe uma dissimulação porque ainda temos a certeza da existência de um original. O mais irônico é que a fotografia torna-se efetivamente popular com a notícia de que a câmera podia mentir.

(c) Simulação: Quem já não entrou em cantinas italianas tradicionais e encontrou nas paredes antigas fotos de famílias do início do século XX? Embora visivelmente retocadas, percebe-se uma estranha espontaneidade comparado com a fotogenia atual: as pessoas são “feias”. Uma impressão falsa. Na verdade, as pessoas ainda não possuíam uma cultura da pose, não possuíam os protocolos de como se portar diante daquelas estranhas caixas negras. Com a popularização do dispositivo, as pessoas passam a ter uma inédita autoconsciência, começam a pensar a si mesmas fotograficamente. Cria-se toda uma cultura da pose onde diante das câmeras as pessoas simulam a si mesmas.
Simular significa afirmar que você possui algo que não existe. Fingir uma presença ausente. Não estamos mais no império do segredo, mas no reino do blefe. Se na dissimulação o problema está na falsificação do dispositivo, na simulação o problema está no original que simula uma existência.

(d) Hiper-real: o momento em que a fotografia não tem mais relação com qualquer realidade, o simulacro puro. De tanto a pessoa posar para a câmera, ela começa a acreditar na própria pose. A imagem fotográfica em retorno substitui a consciência e a pessoa esquece quem ela já foi e passa a ver a si mesma por meio da pose. É o momento em que a imagem supera o real de tal maneira que a realidade é seduzida pela própria imagem e tenta se equiparar a ela. Se na fase anterior o simulacro blefava (ou simulava), ou seja, ainda havia no horizonte a nostalgia de um referente real a que ele queria se assemelhar, agora o mundo torna-se cada vez mais parecido com modelos artificialmente produzidos, como os parques temáticos, por exemplo. De tanto o indivíduo posar para a câmera simulando atitudes ou personas, tais modelos acabariam confundindo-se com a própria personalidade criando uma situação onde se esquece onde termina a realidade e começa a ficção, o Eu e o não-Eu. Distinção ociosa para o indivíduo que não se importa mais com isso.

Dinheiro: da representação ao hiper-real


(a)  Representação: tanto na economia política liberal como na marxista, o dinheiro é a expressão de uma medida do valor trabalho contida nas mercadorias, seja a representação do risco da iniciativa empresarial, seja a representação da exploração de horas de valor-trabalho não pagas ao operário – mais-valia. Portanto, preço e valor (entidades econômicas que representariam relações sociais de produção) seriam, por sua vez, representados pelo dinheiro na esfera da circulação.

(b)  Dissimulação: mas o dinheiro pode mentir. A quantidade de dinheiro em circulação tem que representar a quantidade exata das atividades econômicas reais, a não ser que se produza dinheiro falso. Essa falsidade está tanto na desobediência dos limites legais (imprimir dinheiro ilegal em casa para pagar obter ganhos pessoais) quantos dos econômicos (o Estado imprime dinheiro para pagar suas próprias dívidas). A punição é policial (prisão do falsificador) ou econômica (a inflação). Mas ainda temos como referência o “dinheiro real” – notas com marcas d’água da Casa da Moeda ou as medidas econométricas exatas que determinam a quantidade exata do meio circulante.

(c)  Simulação: Qual a diferença entre notas falsas e notas oficiais? A partir de 1971 as diferenças são apenas nominais. Desde que o então presidente dos EUA Richard Nixon rasgou o “Acordo de Breton Woods” e acabou com o lastro ouro para o dólar para que o país pudesse fazer frente a sua impagável dívida pública, o mundo ingressou na era da extrema liquidez e simulação. O valor do dólar, moeda de referência para o comércio mundial, passa a ser estabelecido por fatores especulativos (o poder militar dos EUA, títulos da dívida externa do terceiro mundo, sobrevalorização do potencial lucrativo de descobertas tecnológicas – como no caso da Internet – das novas e complexas fusões de empresas e os reflexos destas notícias nas bolsas de valores ou, simplesmente, através de falcatruas contábeis em empresas que passam a ser supervalorizadas artificialmente).

(d) Hiper-real: Títulos, papéis, dinheiro digital e o crédito substituem o dinheiro ou qualquer representação a algum referente econômico. Signos financeiros tornam-se verdadeiras bolhas especulativas valorizadas por meio de notícias (sejam elas boatos, rumores ou informações oficiais) criadas para as mídias repercutirem. Da noite para o dia, empresas têm suas ações valorizadas produzindo enormes bonificações por meio de notícias habilmente plantadas no noticiário econômico para, mais tarde, serem desmentidas pelas mesmas fontes.  No espaço de tempo entre a divulgação e o desmentido, muita riqueza virtual acaba sendo produzida nas complexas transações financeiras. Não há mais diferenças (e nem mais o sistema quer se preocupar) entre o dinheiro “falso” e “verdadeiro” – a não ser nas lições de moralidade nas denúncias das falcatruas financeiras esporadicamente exibidas pelas mídias a fim de simular um referente que há muito tempo desapareceu no horizonte econômico.

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