Os modernos manequins nas
vitrines dos shoppings são herdeiros de uma longa tradição do fascínio humano
por bonecos, fantoches, autômatos e demais simulacros humanos. Esse fascínio
teria suas origens mágicas e herméticas na Teurgia e Alquimia. Se isso for
verdadeiro, a história dos manequins revelaria uma nova narrativa sobre a Moda
que vai além dos tradicionais discursos antropológico e semiótico/linguístico.
Uma narrativa que descreveria a história de como o corpo humano foi ao poucos
transformado em um “golem” (o “não formado”): um corpo inanimado à espera de um
Espírito (o “Estilo”) que lhe traga a vida.
“A moda é alquimia. Ritual e magia. Fé e religião. Sacrifício e devoção. A moda tem grande similaridade com a religião e pode ser vista como a religião atual (...) É um sistema místico de poder visual. (...) O sistema de moda é um sistema metafísico muito bem guardado por seitas e escolas herméticas. É governado por uma pequena elite de místicos e intérpretes profissionais – um grupo líder formado por cardeais e padres, seguindo as orientações e regras de um ideal mais elevado.
(...) Através de uma longa história e tradição, os sacerdotes se reúnem para uma cerimônia, convocando o próprio espírito da mística força da Estética para materializá-lo. Nesse momento místico de materialização do elevado ideal é produzido um ícone para adoração - a fotografia de moda. Uma guarda inteira de sacerdotes, geralmente da mesma rede de seita, é recolhida em um estúdio, os bastidores escondidos do templo da moda. Lá eles invocam o espírito da Beleza para se materializar em um modelo virgem.
Tratada pelo mais sagrado óleo e poções de lugares exóticos e com ingredientes secretos transforma-se em algo divino, para além da condenada carne humana. Na frente das lentes ela é transformada em uma representação fantasmagórica e na modelo mais bonita de uma raça humana imperfeita. Sem pelos indesejáveis, sem cheiro, sem pele irregular, sem características indesejáveis. São os elementos necessários para adorarmos um ícone.”
O texto acima é constituído de trechos do prefácio de um catálogo de roupas 2004/2005 (clique aqui para ler todo o texto) de Otto Von Busch, estilista, teórico Phd e designer sueco. São frases provocativas e de forte poder retórico. Podemos afirmar que o texto é uma típica estratégia ideológica do campo da moda em se legitimar como uma força criativa especial, porque fundamentado em algo tão antigo quanto a história da humanidade. Afinal, segundo ele, as raízes da Moda estariam na religião, magia e hermetismo.
A despeito da sua imagem anarquicamente criativa formada por estilistas
excêntricos e modelos “heroin heroes”, sabemos que o campo da moda é altamente
industrializado, disciplinado e comandado por rígidas regras de pesquisa de
mercado e análises de tendências.
Basicamente dois discursos legitimam perante a sociedade a instituição
da Moda e do Estilismo: (a) uma necessidade mítica e religiosa que acompanharia
o homem desde a pré-história como, por exemplo, vestir-se com peles de animais
para mimeticamente adquirir sua força ou maquiagens e piercings onde o humano
procuraria imitar os deuses ou (b) um discurso fundamentado na Semiótica e
Linguística que vê no homem uma suposta necessidade de negar o corpo nu (o grau
zero da linguagem) para sobre ele construir um texto cultural cuja linguagem
operaria em oposições como contenção/liberação, exposição/ocultamento do corpo
para fins significação - sedução, erotismo, poder, hierarquia etc.
O texto de Otto Von Busch a princípio associa-se ao discurso (a), mas o
que o torna interessante não é o que ele tenta explicitamente dizer -
estilistas como altos padres de escolas de conhecimentos herméticos. Pelo
contrário, seus atos falhos são o que o torna mais significativo: a constante
referência ao humano como “a condenada carne humana” ou “raça humana
imperfeita” e o corpo com “pelos, cheiro e características indesejáveis”
transcendido por uma representação fantasmagórica, a foto de moda, para ser
idolatrada como ícone religioso.
O corpo humano como massa amorfa, passiva, disforme, imperfeita,
condenado à queda, necessitando de um modelo, sentido ou “espírito” que o
transcenda ou que o faça superar a si mesmo. Embora de origem racionalista, o
discurso (b) parece partilhar desse princípio que vê o corpo como “massa
plástica moldada pela linguagem”.
O corpo a que Otto Von Busch se refere nada mais é do que o manequim
(vivo ou artificial), analogia a esse corpo humano imperfeito que necessita da
roupa ou do “estilo” - quintessência da “mística força da Estética”. Por isso, este
ato falho de Busch reflete uma secreta história da Moda e do manequim, a
hipótese de que o estilismo contemporâneo seria a secularização de antigos
arquétipos relacionados a crenças e práticas ocultistas e herméticas como a
Teurgia, Alquimia e Cabala.
A vida secreta dos manequins
Animar o
inanimado. Os modernos manequins nas vitrines dos shoppings são herdeiros de
uma longa tradição do fascínio humano por bonecos, fantoches, autômatos e
demais simulacros humanos. Victoria Nelson em seu trabalho The Secret Life of Puppets defende que a origem desse fascínio está
na Teurgia e nos filósofos e sacerdotes Helenísticos. Platão falava em um ser
chamado Demiurgo, criador do mundo visível, personagem largamente usado na
antiguidade para explicar a origem da alma humana a partir de uma forma Divina
e Original: Anthropos. Do Mundo das
Formas Anthropos desceu ao mundo
material, originando o homem.
Apesar de ser uma forma inferior, o ser humano teria dentro de si fagulhas divinas da sua origem (Anthropos). Portanto, objetivo da sua existência seria galgar os degraus que o façam retornar às suas origens divinas.
A Teurgia (theoi, “deuses” + ergon, “obra”) surge no mundo helenístico como a primeira forma de
alcançar isso através da manipulação da matéria onde, assim como o Demiurgo,
podemos dar vida e alma a uma forma material e inferior. Se temos dentro de nós
uma parte desse Anthropos, podemos retornar a ele exercendo as mesmas
habilidades reservada aos deuses: imitatio dei por generatio
animae, imitar Deus criando vida.
Para a
autora, é na Alquimia que temos esse encontro decisivo entre gnosis e
epistemis, entre a ciência experimental e a prática religiosa através de sucessivas
operações que reproduzem as etapas da criação do cosmos físico pelo Demiurgo
até a redenção da matéria representado pela criação da “Pedra Filosofal” ou da
“criança/homunculus” (“pequeno homem”, também chamado como “mannikin”).
Com o
racionalismo ocidental de cunho aristotélico, esse ecletismo esotérico que
envolvia o mannikin foi relegado como
idolatria e paganismo. Todo o significado mágico na crença de um mundo
transcendente foi subjetivado ao confinar o mannikin
ao universo dos brinquedos, bonecos e fantoches. Rapidamente, foram convertidos
ao supérfluo da “última moda”.
Embora a
História documente que reis e rainhas se presenteassem com coleções de bonecas
vestidas com tendências de moda (Henrique IV de França despachou bonecas
elegantemente vestidos à sua noiva, Marie Medici de Florença, para atualizá-la sobre
as tendências francesas e Maria Antonieta manteve sua mãe e irmãs na Áustria
informadas sobre a última moda em Versalhes também com bonecas elaboradamente
vestidas que ela regularmente enviava) é com a Revolução Industrial que teremos os
progenitores do manequim moderno.
A
principal característica da modernidade dos manequins é o realismo: em primeiro
lugar deixam de serem miniaturas para assumirem a escala do corpo humano real. Essa
é uma característica do racionalismo: se a miniatura significa apreender o todo
em um único olhar (concepção mágica ou mística da realidade onde a experiência
do conjunto precede as partes), a escala natural já possui fortes traços
racionais (para conhecer o conjunto temos que operar por partes).
E segundo,
a substituição da madeira por outros materiais que imitem realisticamente a
pele humana: cera, porcelana, olhos de vidro etc.
O manequim como um “golem”
Nesse
ponto nos aproximamos do “ato falho” do texto de Otto Von Busch. O aspecto
realista (em escala e textura) reforça o aspecto estático e inanimado dos
manequins. Eles aproximam-se do imaginário da chamada “cabala extática”: o “golem”,
o “não formado”, aquele com características humanoides, porém “liso”, informe,
uma tabula rasa à espera de um “espírito” que lhe dê vida e forma.
O fascínio
do estilismo estaria nesse dar vida a algo imperfeito, sem vida e decadente. A
Teurgia secularizada no livro “Frankenstein” de Mary Shelley no século XIX agora
aplicada em manequins realistas.
Modelos vivos emulam manequins
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Mas na
pós-modernidade observamos uma reviravolta com os manequins vivos dos modelos
desfilando pelas passarelas ou os seres vivos emulando manequins em vitrines de
shoppings (as “estátuas vivas”). Se na Teurgia o inanimado é animado, agora
vemos uma curiosa inversão: o animado deve se aproximar da forma inanimada para
ficar mais evidente o aspecto “golem” de uma matéria que deve ser “ressuscitada”
por um código hermético: o Estilismo.
Modelos vivos anoréxicos, cadavéricos, aspectos “heroin heros”, “decadentes chics”, um ar enfadado à espera de um estilo que lhes traga à vida. Pelos menos até a próxima estação.
Talvez o exemplo mais irônico dessa secreta aliança entre manequins e modelos vivos tenha ocorrido em 1998, em Nova York, no desfile chamado “Fashion Fusion” quando a Greneker (empresa design de manequins) lançou a sua nova coleção de bonecos feita pelo escultor britânico Robert Petterson.
Estilistas como Yves Saint Lauren, Krizia, Bill Blass e Halston participaram vestindo os manequins com suas peças. Ao invés de Kate Moss ou Naomi Campbell, o público acompanhou manequins sem vida arrastados por dispositivos mecânicos em uma passarela.
Modelos vivos anoréxicos, cadavéricos, aspectos “heroin heros”, “decadentes chics”, um ar enfadado à espera de um estilo que lhes traga à vida. Pelos menos até a próxima estação.
Talvez o exemplo mais irônico dessa secreta aliança entre manequins e modelos vivos tenha ocorrido em 1998, em Nova York, no desfile chamado “Fashion Fusion” quando a Greneker (empresa design de manequins) lançou a sua nova coleção de bonecos feita pelo escultor britânico Robert Petterson.
Estilistas como Yves Saint Lauren, Krizia, Bill Blass e Halston participaram vestindo os manequins com suas peças. Ao invés de Kate Moss ou Naomi Campbell, o público acompanhou manequins sem vida arrastados por dispositivos mecânicos em uma passarela.