Os seres humanos seriam inerentemente bons ou maus? Vemos tantas guerras, ganância, o crescimento das desigualdades, sofrimento e desinteresse alheio que nos perguntamos: sempre foi assim? Ou será que na história da humana nos desviamos, em algum momento, de um futuro mais próspero?
Basicamente temos duas respostas para essa questão. Uma, do fundador da teoria política: Hobbes e o seu “Leviatã” – a sociedade se funda na repressão coletiva porque os seres humanos seriam criaturas sórdidas e egoístas. Então, no máximo o que podemos esperar é um forte controle externo. O contrato social baseado na entrega da liberdade individual para um Estado Leviatã, evitando que a sociedade retorne à Natureza e se autodestrua.
A outra resposta é rousseauniana: os humanos de outrora vivam num estado de inocência quando éramos caçadores-coletores. Tudo mudou com a Revolução Agrária, fundando a sociedade, a civilização, o Estado e a necessidade da formação de exércitos, guerras - os fundamentos da desigualdade entre humanos.
Pode ser uma simplificação grosseira do pensamento de Hobbes e Rousseau, mas é uma história fundacional que sempre aflora, seja na psicologia organizacional, seja no sistema de pensamento de algum teórico revolucionário.
A questão é que isso não se resume a uma discussão teórica que exala a teologia cristã: Deus no criou como seres inocentes, para depois nos deixarmos corromper pelo pecado.
As consequências podem ser sinistras: sistemas totalitários que: ou se dizem representar um suposto interesse coletivo; ou a defesa de doutrinas que exortam a volta a algum passado idílico de pureza racial, ideológica, religiosa etc.
O projeto dos sonhos do diretor Francis Ford Coppola, que vinha tentando decolar por quatro décadas, Megalópolis (Megalopolis, 2024), é uma gigantesca parábola não só sobre a inerência humana entre a bondade e a maldade, mas, principalmente, sobre as consequências sinistras desses discursos maniqueístas.
Em quase duas horas e meia, parece que Coppola tenta fazer uma síntese da própria história da filosofia, como se os seus protagonistas procurassem ansiosamente uma resposta a essa questão da inerência humana.
Não há nada em Megalópolis que pareça algo de um filme “normal”. Tem sua própria lógica, cadência e vernáculo. Os personagens falam em frases e palavras arcaicas, misturando fragmentos de Shakespeare, Ovídio e, em certo ponto, até latim direto. Alguns personagens falam em rima, outros apenas em prosa de espírito que parece que talvez devesse estar em verso. Em um ponto, Adam Driver faz todo o solilóquio “Ser ou não ser” de Hamlet.
O enredo, por todo o seu amor pela ciência e pela razão, é um mix de magia, melodrama, emotividade propositalmente brega e política dos filmes de gângsteres. Isso nos coloca bem no meio de um debate entre o arquiteto utópico visionário Cesar (Adam Driver) e o prefeito de Nova Roma (uma espécie de Nova York alternativa estilizada), Cicero (Giancarlo Esposito), uma cidade devastada pelas dívidas e nas mãos de um poderoso banqueiro cuja riqueza vem dos próprios títulos da dívida pública da municipalidade – já vimos isso em algum lugar...
Mas tudo que os personagens encontram é aquilo que Cesar sintetiza em uma linha de diálogo: “Economia, Jornalismo e Sex Appeal” – draconianas medidas de austeridade que sufocam uma metrópole, os escândalos midiáticos que desviam a atenção dos problemas fundamentais e a ilusão hedonista sedutora.
Utopia vs. Realismo. Megalópolis é uma parábola que descreve as sinistras consequências desse maniqueísmo. É a busca de Coppola por uma redenção, através de alusões a grandes referências da sua filmografia: O Poderoso Chefão, Apocalipse Now, O Fundo do Coração, entre outras.
O Filme
Megalópolis é uma loucura retro-futurista que mistura o kitsch ao estilo dos filmes hiperbólicos de Ken Russell (Tommy, Liztomania, Viagens Alucinantes) com a auto-importância arrogante.
O filme começa expondo a sua tese central - que a América moderna segue o modelo da antiga Roma. Coppola esculpe sua declaração de abertura em uma placa de pedra em uma clássica fonte Times New Roman com Laurence Fishburne lendo solenemente as palavras soando como o próprio Deus: A América atual é como o império romano e está destinada a ser derrubada pela ganância e arrogância de alguns homens loucos pelo poder.
O cenário para a história é reconhecidamente Manhattan - o Chrysler Building tem mais tempo de tela do que alguns dos personagens coadjuvantes, como o desperdiçado Dustin Hoffman - mas na versão de Coppola, a cidade é renomeada para Nova Roma e apresenta um conjunto de personagens com nomes vagamente lembra a Roma imperial e vestidos como se tivessem saído de uma festa fetichista romana.
O prefeito da cidade é Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) - Francis para seus amigos próximos - mas apesar de compartilhar um nome com o personagem, parece provável que Coppola se identifique mais de perto com a figura central do filme, Cesar Catilina (Adam Driver). Cícero é um cético mesquinho (ecoando a tese hobbesiana), mais empenhado em reforçar seu poder e influência do que em abraçar as mudanças radicais que possam apenas melhorar a vida dos moradores da cidade.
Cesar, enquanto isso, é um sonhador radical e um visionário, um gênio problemático cuja ambição de criar “Megalopolis” é muito radical e brilhante para meros mortais entenderem. Uma metrópole futurista e que muda de forma construída a partir de um material sustentável recém-sintetizado (o “Megalon”). A Megalópolis promete mudar o próprio tecido da sociedade. Até porque requer que grandes áreas da cidade existente sejam destruídas para dar um caminho para ela – com as consequências que bem conhecemos no mundo real: desapropriações forçadas que só piora o abismo social.
E um pequeno detalhe - Cesar também tem a capacidade de parar o tempo à vontade. Na verdade, é a grande metáfora metafísica que Coppola trabalha: a humanidade luta contra o Tempo, o efêmero e o transitório. Através da arquitetura (o “tempo congelado”), a humanidade almeja o eterno – aquilo que vença as intempéries ou a própria seta entrópica do Tempo.
A vida de Cesar começa a mudar com a chegada da filha festeira de Cícero, Julia (Nathalie Emmanuel), a única outra pessoa que vê sua capacidade de pausar o tempo, e que parece ter o mesmo poder. Ela é atraída por seu brilho, mas é claro que um romance também floresce entre eles. Contrariando o pai, que vê em César um inimigo para o seu projeto de se perpetuar no poder.
O cinema tradicionalmente vê o jornalismo de forma negativa, como um campo formado por profissionais facilmente corrompíveis.
E em Megalopolis não é diferente: encontramos Wow Platinum (Aubrey Plaza), uma bela jornalista especializada em finanças com a intenção de acumular riqueza e poder para si mesma. Ela começa como amante de Cesar, mas logo se casa com seu tio, Hamilton Crassus (Jon Voight), o rico banqueiro da cidade.
Enquanto isso, o neto de Crassus, que muda constantemente de forma, Clodio (Shia LaBeouf, em trajes sempre rotativos), planeja herdar todo o dinheiro da família para si mesmo. Ao mesmo tempo em que se envolve nas subculturas de extrema-direita da Nova Roma em um esforço para ganhar influência política, manipulando o ressentimento das massas empobrecidas.
Grande parte dessa intriga acontece durante sequências de um bacanália que ocorre numa espécie de Coliseu com shows de lutas e corridas de bigas, com os festeiros escassamente vestidos. Claramente evocando a decadência e o declínio ao estilo romano.
Nova Roma é uma distopia hobbesiana comandada por um prefeito que espera o pior da natureza humana – tudo com o que se preocupa é manter o poder e evitar facadas pelas costas. Enquanto o arquiteto utópico César pressente o colapso entrópico que o Tempo vai impor à Nova Roma e planeja a realização da Utopia: uma cidade orgânica e sustentável construída com um material plástico que se moldaria rapidamente às necessidades de seus moradores.
Porém, o seu altruísmo está na relação direta da sua arrogância – ele olha a cidade de cima para baixo, do alto da coroa do icônico arranha-céu da Chrysler. De arquiteto humanista, em segundos pode se tornar num demiurgo da nova ordem totalitária.
Em Megalopolis Coppola faz um desfile de alusões a sua cinematografia: a referência ao Poderoso Chefão na figura do prefeito mafioso; os delírios febris da bacanália lembram Apocalipse Now; a feérica cenografia da Nova Roma lembra os gigantescos cenários que reproduziam Las Vegas e que levaram Coppola à falência em O Fundo do Coração; os enquadramentos que se dissolvem para gerar simbolismos visuais lembram Drácula de Bram Stoker, são alguns exemplos.
Nesse sentido, Megalópolis torna-se o filme autobiográfico de Coppola que chega aos 80 anos.
Entre a Utopia e o realismo hobbesiano, Coppola só encontra a redenção numa citação faz de Marco Aurélio em uma linha de diálogo: “O objetivo da vida não é estar do lado da maioria, mas escapar, encontrando-se nas fileiras dos insanos”.
Essa pode ser a própria síntese da carreira de Coppola.
Repetidamente o diretor sempre empurrou cada novo projeto ao limite da sanidade. Por exemplo, ele admitiu ter enlouquecido fazendo Apocalypse Now em locações nas selvas do Vietnã. Certamente o homem que apostou todo o seu estúdio em O Fundo do Coração — filme lindo e inesquecível, mas financeiramente falido já na estreia — não estava pensando com todo juízo.
E então, nesse novo filme Coppola fez isso de novo. E talvez tenha até se superado.
Megalópolis pode ser a coisa mais louca que o espectador já tenha visto.
Ficha Técnica |
Título: Megalipolis |
Diretor: Francis Ford Coppola |
Roteiro: Francis Ford Coppola |
Elenco: Adam Driver, Giancarlo Eposito, Nathalie Emmanuel, Laurence Fishburn |
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Distribuição: Lionsgate |
Ano: 2024 |
País: EUA |