quinta-feira, novembro 03, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
À época do seu lançamento o filme "O Fundo do Coração" (One From the Heart, 1982) foi fracasso de crítica e de público e a falência do diretor Coppola. Ninguém entendeu nada. Não é para menos, pois o filme estava à frente da sua época: um musical romântico hiper-estilizado e metalinguístico reproduzindo Las Vegas em estúdio com um assombroso número de cenários antevia a sensibilidade atual onde, com a proliferação das tecnologias das imagens e virtualização do real, passamos a conviver com a suspeita de que o mundo possa ser uma ilusão fabricada, como um gigantesco estúdio. Parece que Coppola anteviu "Show de Truman" e "Matrix".
Depois de passar 16 meses na selva filmando “Apocalipse Now”
preocupado com clima, luz solar e precisão histórica, Coppola procurou, nas
suas palavras, um “antídoto”. Em uma época onde os grandes estúdios procuravam
poupar dinheiro filmando em locações externas e fora dos EUA, Coppola decidiu
reinventar o sistema de estúdios de Hollywood indo na contra-mão: filmar uma
estória totalmente em um estúdio onde o diretor pudesse controlar todos os
elementos de produção e linguagem.
O resultado foi o filme “O Fundo do Coração” onde, dentro
dos estúdios American Zoetrope, criou-se uma Las Vegas sintética através de um
número assombroso de cenários, inflacionando o orçamento de produção numa
proporção inversa ao da recepção do público e crítica que não entendeu a
proposta de Coppola. Resultado: a falência e um intervalo forçado nas
atividades do diretor.
Se em “Apocalipse Now” Coppola já havia flertado com o tema
da estilização do real (a forma como a guerra do Vietnã era estilizada pelos
soldados e governo americano até se transformar em um delírio lisérgico e
místico como no enlouquecido personagem do Coronel Kurtz vivido por Marlon
Brando), em “O Fundo do Coração” ele mergulha de cabeça no “abismo das
aparências” criando uma curiosa fábula sobre a ilusão do mundo e do próprio
cinema.
Se Las Vegas já é, ela mesma, uma gigantesca estilização e
simulação do real (pirâmides e torres Eiffel convivem com navios piratas
envoltos em neon e luzes feéricas), como o cinema pode reproduzir em estúdio
uma estilização da estilização? Coppola chega ao paroxismo para descrever a
ilusão do mundo e o mundo da ilusão: se o casal protagonista mora, vive e passa
por uma prova de fogo no relacionamento numa cidade que é inteira uma
simulação, seus sonhos e aspirações também podem ser igualmente ilusões porque
inspirados em vitrines, luzes e fotografias.
Coppola com Gene Kelly no estúdio Zoetrope durante as filmagens de "O Fundo do Coração"
Ao som da brilhante trilha musical de Tom Waits que pontua a narrativa, o filme descreve os desencontros de Frannie (Terry Garr) e Hank (Frederic Forrest). Ela uma vitrinista de uma agência de
turismo que monta paisagens exóticas em cenários de papelão baseados em
fotografias de lugares exóticos. Seu sonho é viajar, ir para ilhas do Pacífico
Sul. Ele, um boa praça que trabalha numa espécie de ferro-velho fora da cidade
nas bordas do deserto de Nevada. Seu sonho: comprar a casa onde moram. Ela, alimenta
fantasias escapistas e românticas e ele prefere a realidade, ter um patrimônio
e garantir o futuro.
Em pleno feriado norte-americano de 4 de julho eles se separam após uma
briga e conquistam uma independência repentina e a possibilidade de cada um
seguir seus planos e buscar novos companheiros. Porém, a separação não tarda a
mostrar seu lado ambíguo e controverso, apresentando-se ao mesmo tempo odiada e
desejada.
A Ilusão do Mundo
O filme parece explorar três níveis na narrativa. O
primeiro nível, metalinguístico: quando do lançamento em 1982 a promoção do filme
fazia questão de destacar o fato de ser uma produção inteira em estúdio e um filme musical altamente estilizado como uma linguagem autoparódica do gênero. No detalhismo de cada plano
percebemos o caráter cenográfico de fachadas e objetos, além de a narrativa e
montagem não serem realistas: muitas quebras de eixo de câmera e ausência de
continuidade entre planos; a utilização de imagens sobrepostas para demonstrar
que, mesmo distantes, Frannie e Hank permanecem próximos através do pensamento.
Em outras palavras, Coppola quer que o espectador tenha
consciência que os protagonistas vivem em um mundo ilusório, cenográfico,
hiperreal. Embora Hank seja o personagem que quer se apegar à realidade (ele
quer ter a posse definitiva da casa pensando no futuro do casal), seu mundo está em
pedaços. Ele trabalha em um ferro velho, como se tentasse se segurar nos
destroços de realidade que resta no mar da ilusão do mundo.
A sequência em que Hank rege uma sinfonia de luzes e buzinas
dos carros velhos empilhados num depósito enquanto a atriz circense Leila
(Nastassja Kinski) se equilibra na corda bamba é uma daquelas que merece entrar para a história do cinema. Leila (a ilusão criada por Hank para tentar
se esquecer de Frannie após a briga – “sou uma garota do circo, é só piscar que
desapareço”, afirma Leila) anda na corda bamba enquanto Hank, de forma
desengonçada, tenta mostrar a “sinfonia da realidade” para sua ilusão.
E o ferro-velho fica nas cercanias de Las Vegas, diante do
deserto de Nevada, ou seja, diante do vazio e a desolação da realidade. “Bem
vindo ao deserto do real”, como diria Morpheus em “Matrix”.
Dessa maneira chegamos ao segundo nível da narrativa de “O
Fundo do Coração”: o mundo já é uma ilusão. Os protagonistas trabalham e vivem
em Las Vegas. A certa altura Hank confessa para seu amigo Moe (Harry Dean Stanton) o quanto as luzes
de Las Vegas o incomodam. Elas parecem tornar tudo “fake” e as pessoas em meras ilusões.
Se Coppola em recente entrevista falou que “O Fundo do
Coração” estava à frente do seu tempo e que “influenciou a música e o vídeo e
algumas inovações que usamos hoje para produzi-los” (veja “Viva Las Vegas!
Francis Ford Coppola on One From The Heart” disponível em http://www.digitalbits.com/articles/interviews/ffcoppola/ffcoppolainterview.html),
talvez o seu fracasso de crítica e de público à época se deva a uma
sensibilidade atual que ainda o público não possuía naquela época: a desconfiança gnóstica de
que a realidade é uma ilusão fabricada, uma sensibilidade cuja origem está na
proliferação das tecnologias de produção de imagens, digitalização e virtualização
do real.
O Mundo da Ilusão
Chegamos aqui ao terceiro nível da narrativa: o mundo imaginário da ilusão.
Em seu livro “Simulacros e Simulações”, o pensador francês
Jean Baudrillard afirmava que Disneylândia era um modelo perfeito para todos os
simulacros por produzir um imaginário “débil e infantilizado para, por meio da
ilusão, salvaguardar a miragem do real”
“O imaginário da Disneylândia não é nem verdadeiro nem falso,
é uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do
real. Daí a debilidade deste imaginário, a sua degenerescência infantil. O
mundo quer-se infantil para fazer crer que os adultos estão noutra parte, no
mundo ‘real’, e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda
parte, e é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são crianças para
iludir a sua infantilidade real”. (BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e
Simulações. Lisboa:
Relógio d’Água, 1991, p. 21).
Em outros termos, cidades como Las Vegas e parques temáticos
como Disneylândia existem para acreditarmos que ainda existe uma distinção
entre ilusão e realidade, entre uma nota de dólar verdadeira e uma falsa.
Portanto, para criar um falso contraste, os sonhos e fantasias
devem ser infantis, escapistas, hiperbólicos.
A base dos sonhos de Frannie são as fotografias dos cartões
postais da agência de turismo onde trabalha. Vê a possibilidade da realização
dos seus sonhos através do “pianista e cantor” Ray (Raul Julia) que, na verdade, não
passa de um garçom com fantasias de grandeza. Ray é o estereótipo do “latin lover” que promove
lugares paradisíacos e românticos nos folhetos turísticos.
Enquanto isso, Hank é seduzido por Leila saída da “imagerie”
do circo, uma personagem hiperbólica envolta em neon, glitter e dançando em
gigantescas taças de Martini deliberadamente cenográficas. “Se piscar eu
desapareço”, diz Leila que, repentinamente, some da narrativa quando Hank cai em si. Sonhos
escapistas, frágeis, débeis, vazios como bolhas de sabão, incapazes de se
confrontar com a realidade.
No final, sonhos que produzem conformismo: infantilizados e
escapistas, são derrotados por uma realidade que, embora seja uma miragem tal
qual os sonhos, é capaz de produzir derrota e resignação. Por isso, o filme
termina de forma melancólica, “fake”, como uma espécie de retorno à ordem, um “caia
na real” para preparar o espectador para quando as luzes do cinema acenderem.
Ficha Técnica
Título: O Fundo do Coração (One From the Heart)
Diretor: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola e Armyan Bernstein
Elenco: Terry Garr, Frederic Forrest, Raul Julia, Nastassja Kinski
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Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>