Baseado em livro homônimo de 2003, o filme “Cosmópolis” (2012) do diretor David
Cronenberg ganha atualidade com os movimentos antiglobalização como Occupy Wall
Street e o colapso do Euro: a bordo de uma limusine, que na verdade é uma
alegoria do ciberespaço, um jovem multimilionário do mercado financeiro cruza uma
Nova York caótica enquanto acompanha através das telas de computadores a
falência dos seus algoritmos que não conseguem prever a sua derrocada financeira.
Mais do que uma alegoria sobre uma geração que construiu uma arquitetura da
informação abstrata e desconectada da humanidade, Cronenberg discute a morte
dos novos deuses criados pelas tecnologias baseados na fé de que a matemática
estaria por trás tanto de espirais galácticas quanto das operações financeiras.
Deuses que esqueceram a principal falha cósmica: o tempo.
Eric Parker (Robert Pattinson), um multibilionário
príncipe do mundo financeiro com seus vinte e poucos anos, atrás de seus óculos
escuros, um rosto blasé e a bordo de uma limusine high tech, decide cruzar a cidade de Nova York para cortar o cabelo
em uma antiga barbearia que remonta a sua infância.
Porém, a cidade vive o caos com a visita do
presidente dos EUA. Um grupo de seguranças ao redor de Parker o alerta do
perigo eminente de sofrer um atentado. Na verdade, ele e o presidente dos EUA
parecem ser os alvos preferenciais em meio às ruas tomadas por protestos antiglobalização.
Todas as suas operações financeiras são monitoradas
a partir da limusine através de diversas telas. Parker acompanha com ansiedade
uma arriscada operação, uma aposta na queda da moeda chinesa, o Yuan. Ao longo
do difícil e congestionado trajeto até o barbeiro, Parker acompanhará a
valorização da moeda daquele país e a sua derrocada financeira pessoal até a
falência.
“Cosmópolis” é uma adaptação do livro homônimo de
2003 do escritor ítalo-americano Don DeLillo, uma história simbolicamente
lúgubre sobre um milionário alheio ao mundo no interior da sua limusine e que
se torna progressivamente humano ao perder um grande negócio. Sua jornada
começa quando ele fala timidamente ao chefe da segurança: “precisamos cortar o
cabelo”. Apesar dos alertas sobre as ameaças eminentes à sua vida, Parker está
resoluto em cruzar a cidade. Isso será o início de longos diálogos e reflexões
de Parker com os vários “convidados” que passarão pela limusine, conversas sobre
temas como a modernidade, juventude, morte e... exame de próstata, realizado no
interior do veículo com um médico on line:
ele descobre que a sua próstata está “assimétrica”.
Para onde
vão as limusines?
A chave de compreensão do espectador diante dos
diálogos prolixos do filme são duas questões recorrentes: por que, apesar das
conveniências tecnológicas da sua limusine, Parker insiste em cruzar a cidade
para cortar o cabelo enquanto um serviço pedido por telefone resolveria? Por
que Parker insiste na sua curiosidade em saber para onde vão à noite as
limusines que rodam a cidade o dia todo?
Essas duas questões que atravessam a narrativa de
“Cosmópolis” apontam para a principal limitação que minará todo ao poder de
ubiquidade e onisciência de Eric Parker: o tempo. Tanto o livro como o filme de
Cronenberg lida com o tempo como a principal “falha” cósmica contra a qual
qualquer demiurgo deverá lidar apesar de todo o seu poder.
Apesar de Parker definir a sua geração como “jovens
e inteligentes criados pelos lobos” e que “adoram informação onde tudo é doce e
iluminado” e “capazes de criar um mundo onde as pessoas comem e dormem à sombra
do que construímos”, o tempo é a entidade misteriosa, incompreensível, uma
falha no maravilhoso cosmos construído pela arquitetura da informação.
Apesar de Parker não viver mais no espaço, mas
habitar o tempo no interior de um veículo em constante movimento (alegoria do
ciberespaço) mediado por interfaces como as telas e os pára-brisa que
apresentam uma realidade exterior fragmentada e caótica, ele nada sabe sobre a
natureza do fluxo temporal.
Em uma forte alegoria gnóstica, Cronenberg nos
apresenta um demiurgo capaz de arquitetar um cosmos inteiro, mas que não
consegue compreender dois aspectos fundamentais do Tempo: a entropia (todos os
sistemas tendem a dissolução da energia e desestruturação) e a assimetria (essa
dissolução ocorre de forma turbulenta e descentralizada).
O paradoxal é que a assimetria e entropia podem ser
representadas matematicamente por meio de algoritmos e logaritmos. Nisso se
baseia toda fé no mercado financeiro de que números complexos possam prever
probabilisticamente tendências caoticamente exponenciais dos sistemas e tirar
lucro disso. Mas não se dão conta de que essas descrições matemáticas são muito
mais estéticas do que operacionais. Como descrito nas linhas de diálogos acima,
inspiram muito mais um prazer estético de que tudo é “doce e iluminado” e mesmo
de fé religiosa, do que uma operação econômica racional.
Eric Parker é um ser que pertence a uma outra
realidade, parece ter nascido em outro planeta. Sua jornada através da cidade é
uma tentativa de compreender esse mundo. Mas ele não consegue entender o Tempo
como ele realmente é. Ele vive de forma muito abstrata. Finanças, corretagem e
especulação são atividades desconectadas onde Parker é muito bem sucedido
graças a uma espécie de instinto, de algo muito misterioso com ajuda de algoritmos.
Assim como no livro, Cronenberg mostra como a abordagem dos dados financeiros
tende a projetar o protagonista para o futuro, mas ele nada sabe como viver o
presente.
As obsessões pela barbearia da infância e sobre o
destino das limusines que rodam a cidade, são os pequenos “rosebuds” de Eric
Parker: assim como no clássico “Cidadão Kane” (1941) de Orson Welles onde todo
o poder se exaure diante da entropia do tempo e tentamos nos agarrar em
pequenos índices de permanência na memória, o protagonista de Cosmópolis se
apega ao barbeiro da infância e ao prosaico itinerário das limusines de Nova
York.
O filme faz
uma irônica tirada gnóstica ao mostrar que toda a verdade sobre o enigma do
Tempo estava, afinal, no interior do protagonista: na assimetria da próstata.
O assassinato dos Demiurgos – aviso de spoilers adiante
“Cosmópolis” é um filme sobre um demiurgo que
representa toda uma geração capaz de construir um mundo sobre uma arquitetura
da informação desconectada e abstrata em relação à humanidade, e o acerto de
contas com o Tempo, a sua maior falha em um universo harmoniosamente planejado
para ser “doce e iluminado”. Mas o demiurgo Eric Parker terá que se defrontar
também com um dos representantes daqueles que “comem e dormem à sombra do que
construímos”.
Em uma sequência final antológica o ator Paul
Giamatti intepreta Breno Levin, ex-funcionário de Parker e sedento por
vingança: responsável pelas ameaças que estressaram os seguranças do jovem
milionário ao longo do filme, ele tem o ajuste de contas final cara a cara com
Parker em uma longa sequência de diálogo, com uma arma na mão e disposto a
matá-lo. Levin foi um analista de moedas especializado no Baht tailandês e
acreditou em todo sistema microcronometrado e em todos os números que apareciam
na sua tela em cada minuto da sua vida.
“Você tentou prever o Yuan baseado em padrões da natureza. A matemática dos anéis das árvores, sementes de girassol, anéis galácticos. Amei a harmonia entre os fatos da natureza. Você ensinou-me isso, criou uma forma sarcástica e precisa de análise... Mas esqueceu de uma coisa, uma pequena anomalia, a imperfeição”.
Desiludido diante de seu “Deus” desabafa: pensei
que você fosse me salvar!
“Cosmópolis” apresenta uma rebelião do ser humano
contra os deuses/demiurgos em diversos níveis de leitura que o espectador
poderá fazer: contra o presidente dos EUA que visita Nova York feito por
manifestantes antiglobalização que acompanhamos fragmentos através dos vidros
da limusine; o ressentimento e desejo de vingança de Breno Levin contra os
algoritmos financeiros do demiurgo Eric Parker; e, numa leitura mais
nietzschiana, a morte de Deus levada a cabo pelo próprio homem – quando o
cadáver de Deus começa a se tornar inegável com a falência do modelo
harmônico-simétrico-matemático que, na verdade, sempre foi uma secularização da
matriz teológica das antigas religiões.
O desabafo do ex-funcionário de Parker, Breno Levin
(“pensei que você fosse me salvar!”), talvez seja o próprio desencanto gnóstico
que está latente no mal-estar na cultura humana: a suspeita de que Deus esteja
perdido em sua própria criação, vítima de um Universo que ele próprio simulou sem
se ater à entropia e assimetria do Tempo.
Ficha Técnica
- Título: Cosmópolis
- Diretor: David Cronenberg
- Roteiro: David Cronenberg baseado em livro homônimo de Don DeLillo
- Elenco: Robert Pattinson, Sarah Gadon, Juliette Binoche, Paul Giamatti, Kevin Durand
- Produção: Alfama Films, Prospero Pictures
- Distribuição: Entertainment One
- Ano: 2012
- País: Canadá
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