Paira em todas as cenas do novo filme de M. Night Shyamalan o espírito de Rod Serling, da série cult “Além da Imaginação”. “Tempo” (Old, 2021) é um filme sobre doença, envelhecimento e mortalidade. Mas principalmente sobre a condição existencial da finitude num universo que implacavelmente caminha para a entropia e o fim. Tentamos esquecer isso com o hedonismo tecnológico e do entretenimento. Mas, e se caíssemos numa praia paradisíaca e isolada onde misteriosamente o tempo está fora de controle e tudo envelhece de forma acelerada? Então essa condição cósmica viria à nossa consciência como uma fratura exposta. Shyamalan é um dos poucos cineastas contemporâneos que tem um compromisso kamikaze com as próprias ideias: depois de filmes com uma série de plot twists iconoclastas, em “Tempo” o diretor chega ao estado da arte – vai do metafísico e gnóstico para a crítica social numa virada que mistura gêneros: do thriller e terror para a pura ficção científica, combinando conceitos de magnetismo e regeneração celular.
O leitor deve conhecer (ou pelo menos ouvido falar) do filme clássico O Anjo Exterminador (1962) do mestre do cinema surrealista Luís Buñuel. Esse filme acompanhava um grupo de pessoas ricas que se veem inexplicavelmente presas numa sala de estar, misteriosamente incapazes de escapar por conta própria, embora aparentemente nada as impeça – na verdade estão presas em suas psiques, vendo os relacionamentos e o verniz da civilização se desintegrarem lentamente.
Combinando esse insight de Buñuel com uma adaptação livre da HQ de Pierre Oscar e Frederick Peeters, chamada Sandcatsle, temos o último filme de M. Shyamalan, Tempo (Old, 2021). A sala de jantar de Buñuel é substituída por um resort, mais precisamente uma praia cercada de falésias na qual um grupo é prisioneiro de uma não explicada anomalia temporal onde todos estão envelhecendo rapidamente numa incontrolável aceleração do tempo.
Do demasiado humano que parece aprisionar os burgueses numa sala de estar, Shyamalan substitui por uma anomalia espaço-temporal que resume numa praia a cósmica anomalia da Criação: a entropia, a seta implacável do tempo – tudo o que é criado, um dia morrerá. A Finitude nos condena.
Como sempre, o título em português não reflete o tema do filme: não se trata do “tempo”, mas sobre o horror ao envelhecimento numa sociedade que nos vende saúde, prazer, juventude como um inesgotável estado de espírito. Isto é, desde que você tenha dinheiro para comprá-lo.
Esse deslocamento que Shyamalan faz do demasiado humano para a anomalia cósmica é essencialmente gnóstica: personagens prisioneiros não de si mesmos, mas de um constructo ou de alguma conspiração de algum demiurgo que não nos ama. Esse será o esperado plot twist, como em todos os filmes do diretor, desde O Sexto Sentido.
Em Tempo, toda a narrativa começa em um resort, onde os protagonistas são recebidos com toda pompa e luxo, na promessa de um final de semana em praias paradisíacas, sol, prazer e tudo o que o dinheiro pode adquirir. Um microcosmo de uma sociedade cujo mercado de consumo e tecnologias são mobilizados para que a morte e o envelhecimento sejam esquecidos sob uma ilusão do prazer e fruição.
Mas essa discussão metafísica começa pelo corporal e o tátil: o filme está cheio de corpos dobrados, quebrados e voltados contra si mesmos; a violência é projetada para entrar em nossa pele. O elenco do filme - liderado por Vicky Krieps e Gael García Bernal como um casal tentando salvar seu relacionamento em desintegração levando seus filhos para um feriado na ilha - passa a maior parte do tempo na tela vestindo maiôs, com seus corpos expostos ao horror corporal em diversas sequências.
Envelhecimento e doenças são como fraturas expostas, como se os protagonistas fossem confrontados com alguma espécie de trailer do que é a nossa existência nesse mundo: todos estão envelhecendo um ano a cada meia hora, crianças saltam para a adolescência diante de pais aterrorizados – como nos comportaríamos ao ver diante de nossos olhos a vida que teríamos numa versão acelerada?
Aquele grupo de pessoas não estão apenas querendo fugir da praia. Estão tentando escapar da própria condição humana de um universo condenado à própria entropia.
Ser velho não é, em si, pior ou melhor do que ser jovem. No entanto, a sensação de que o tempo está passando, de que a areia na ampulheta está caindo rapidamente, irá induzir a angústia existencial. Quando um dos personagens de Tempo lamenta, em certo ponto, que simplesmente não é justo que eles tenham perdido tantos marcos na vida por causa desta praia, eles não estão errados.
Não há como não nos identificarmos com essa angústia, após esse mais de um ano de pandemia pelo qual todos nós passamos.
O Filme
Acompanhamos Guy (Gael García Bernal) e Prisca (Vicky Krieps) como um casal tentando salvar seu relacionamento em desintegração levando seus pequenos filhos Trent (Rio Nolan) e Maddox (Alexa Swinton) para um feriado em um luxuoso resort.
No entanto, as coisas tomam um rumo drástico quando eles e vários outros personagens - Charles (Rufus Sewell) e sua família, Jarin (Ken Leung), Patricia (Nikki Amuka-Bird) e o rapper Mid-Size Sedan (Aaron Pierre) - são convidados a passar o dia em uma praia isolada. Logo descobrem que a praia e as falésias circundantes fazem com que envelheçam um ano a cada meia hora. E não há como escapar; se tentarem sair pelas cavernas pelas quais chegaram na praia, caem inconscientes; se tentarem nadar em volta dos penhascos para o outro lado, eles se afogam.
Tudo começa quando encontram um corpo boiando próximo à praia. Mas as coisas ficam realmente estranhas quando Trent e Maddox ficam significativamente mais velhos, saltando cerca de cinco anos em algumas horas, passando da fase pré-púbere para jovens adultos. Os adultos descobrem que cada meia hora nesta praia é como um ano fora dela.
À medida que as crianças envelhecem passando por todas as descobertas da adolescência (principalmente a sexualidade), os adultos enfrentam seus próprios problemas físicos, incluindo problemas de audição, visão, demência e um tumor que cresce de forma acelerada no corpo de Prisca. Eles poderão escapar da praia antes de completar 24 horas, isto é, 48 anos?
O horror corporal ao melhor estilo dos filmes de Cronenberg ronda as cenas, mas o que paira mesmo sobre todos é a atmosfera da série clássica Além da Imaginação, de Rod Sterling.
Como no filme que Shyamalan produziu e escreveu (Demônio - Evil, 2010 - no qual um conjunto de pessoas que nunca se viram estão presas em um elevador em que estranhos acontecimentos começam a acontecer naquele minúsculo espaço), em Tempo as pessoas tentam encontrar algum ponto em comum que dê sentido ao porquê estarem reunidos naquela situação insólita. Todas têm algum tipo de doença, seja física ou psiquiátrica crônica (um tumor, esquizofrenia, deficiência auditiva, sangramento nasal, epilepsia etc.).
Todas as guinadas da trama são estruturadas quase inteiramente em torno das revelações das vulnerabilidades dos vários personagens, as condições físicas e psicológicas preexistentes, agravadas pelos efeitos estranhos daquela praia, geralmente com consequências desastrosas. Shyamalan define seus personagens a partir dos seus defeitos, fazendo um inventário detalhado e impiedoso de todas as maneiras pelas quais nosso corpo pode nos trair.
Moral, ética e gnosticismo – alerta de spoilers à frente
Conceitos científicos como magnetismo e regeneração celular aprecem aqui e ali na narrativa, sugerindo alguma zona de penumbra de fronteiras entre a física e a biologia. Mas o toque gnóstico final que faltava surge no esperado plot twist: conceitos da física e biologia se encontram no demiurgo onipresente – a indústria farmacêutica.
Das várias pessoas que circulavam naquele resort, por que exatamente aquele grupo de pessoas foi convidado pelo gerente para visitar aquela praia exclusiva? Todos eles têm em comum os seus diagnósticos médicos. O gerente e seus funcionários pertencem a uma gigante farmacêutica: escolhem indivíduos para morrer, enviando-os para a praia onde a equipe pode observar como as drogas experimentais os afetam ao longo do tempo. Para a empresa Warren Warren, sacrificar alguns pelo bem de muitos supera as questões morais e éticas que cercam o trabalho dos cientistas.
Em Tempo há uma crítica às indústrias farmacêutica e médica, onde a vida das pessoas seria menos importante do que ganhar dinheiro. Os funcionários de Warren Warren argumentam que estão usando a anomalia espaço-tempo daquela praia para promover a medicina - testes de drogas que levariam anos para ser compreendido todos os efeitos agora podem ser feitos em um dia. No entanto, o custo que isso tem na vida das pessoas é enorme e isso sem incluir o fato de que os personagens não têm absolutamente nada a dizer sobre o assunto.
Os cientistas acreditam que o que estão fazendo é justo, mas quem terá acesso aos medicamentos que estão testando? Quem terá condições de ter um plano médico e os recursos para adquirir os caros remédios da Warren Warren. A quem o experimento está realmente beneficiando, senão os bolsos dos gerentes e CEOs farmacêuticos? O filme contempla as repercussões de tal tomada de decisão egoísta ao jogar com a vida das pessoas.
Em Tempo, dessa vez o tradicional plot twist do diretor é a passagem abrupta para a discussão metafísica do destino da condição humana (morte, envelhecimento, entropia) para a crítica social, moral e ética da forma como a indústria farmacêutica pode jogar com as vidas humanas.
No final, Shyamalan fecha a cosmogonia gnóstica: como um demiurgo se aproveita da falha da sua própria Criação (a entropia) para confinar a humanidade para extrair dela o seu “lucro” cósmico – a manutenção da Ordem.
Ficha Técnica |
Título: Tempo |
Diretor: M. Night Shyamalan |
Roteiro: M. Night Shyamalan, baseado na HQ “Sandcastle” |
Elenco: Gael Garcia Bernal, Vicky Krieps, Rufus Swell, Abbey Lee, Aaron Pierre |
Produção: Universal Pictures, Blinding Edge Pictures, Perfect World Pictures |
Distribuição: Universal Pictures |
Ano: 2021 |
País: EUA |