Uma família viaja de carro na noite de véspera de Natal para se encontrar com os avós. Como em todo ano. Mas dessa vez, eles pegaram um atalho por uma estrada que cruza uma densa floresta e que parece não ter fim. Ou estão andando em algum um tipo de loop tempo-espaço, seguidos por um carro funerário antigo? Uma narrativa-clichê de muitos slasher movies. Mas o filme francês “Rota da Morte” (Dead End, 2003) não é um terror comum: se insere em produções do início de século XXI no qual os filmes gnósticos passam por uma guinada – dos CosmoGnósticos para os PsicoGnósticos. Protagonistas prisioneiros em mundos recriados pela própria tela mental de medos, culpas e sonhos, combinados com as memórias dos últimos instantes na vida. Filme sugerido pelo sempre certeiro colaborador Felipe Resende.
Era o ano de 2003, início de um novo século. Rota da Morte (Dead End, 2003) era mais um filme dentro de um período crucial para o Gnosticismo no cinema. O período clássico, iniciado por Dead Man (1995) chegava ao seu auge com a trilogia Matrix (1999-2003), depois de produções como Cidade das Sombras ( Dark City, 1998), Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) ou Show de Truman (1999).
Era o período CosmoGnóstico no qual Hollywood parecia viver um fervor metafísico - o protagonista encontra-se prisioneiro em realidades ilusórias artificialmente produzidas por máquinas, tecnologias, alienígenas ou corporações demiúrgicas.
Amnésia (2000) e Vanilla Sky (2001) dão o início de uma guinada para aquilo que chamamos filmes PsicoGnósticos - novamente vemos o protagonista como prisioneiro, mas dessa vez está no interior de uma prisão interior, seja psíquica, onírica ou na tela mental criada no limbo da pós-morte.
Rota da Morte é um filme que se situa dentro desse pico de narrativas PsicoGnósticas como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), A Passagem (Stay, 2005) e Um Sonho Dentro de um Sonho (Slipstream, 2007).
Plot clichê
Um filme de baixo orçamento (menos de um milhão de dólares), curta duração (84 minutos) é com um plotextremamente simples e clichê: uma família em uma viagem noturna de carro para festejar com parentes o Natal, perde-se ao pegar um atalho e passa a ser perseguida por uma misteriosa mulher vestida de branco e um velho carro funerário preto.
Claro, o espectador pensará: “já vi isso em algum lugar!”. Mas para nossa surpresa a narrativa evolui de um previsível slasher movie para o argumento PsicoGnóstico. Com a atmosfera dos clássicos episódios da série Além da Imaginação.
Por isso, é um filme difícil de ser analisado sem deixar de incorrer em spoilers. Aqueles leitores mais assíduos desse humilde blogueiro deverão se lembrar do filme mexicano El Incidente (2014), de Isaac Izban, sobre duas narrativas paralelas no qual acompanhamos prisioneiros em loop espaço-tempo, um numa escadaria e outro numa estrada.
Mas os espectadores mais veteranos em filmes de terror perceberão, a certa altura do filme, para onde a Rota da Morte vai conduzir aquela pobre família: para os mesmos elementos do filme A Passagem no qual o protagonista, após um acidente automobilístico fatal, vive num limbo entre vida e morte como um suicida amparado por um psicanalista. E como as memórias dos últimos instantes de vida são decisivos para a construção da tela mental que nos aprisiona. Não permitindo a gnose pós-morte.
O Filme
Basicamente o filme é uma combinação do episódio “The Hitch-Hiker” da série Além da Imaginação (1960) e a lenda urbana sobre dar uma carona para uma garota na estrada para ela desaparecer no banco de trás e, então, descobrirmos que morrera anos atrás. E com uma pitada da velha máxima da peça existencialista de Sartre “No Exit”: “o Inferno são os outros”, sobre um pequeno grupo de pessoas prisioneiras em uma sala por toda a eternidade.
Na véspera de Natal a família Harrington está viajando para a casa da vovó, como fazem religiosamente todo ano. Nos bancos da frente do carro estão o pai Frank (Ray Wise) ao volante, e ao lado a mãe Laura (Lin Shaye). No banco de trás vemos os irmãos Richard (Mick Cain) e Marion (Alexandra Holden), juntamente com seu namorado Brad (Billy Asher).
Sonolento e achando a viagem monótona, Frank decide pegar um atalho enquanto todos dormem – uma estrada estreita, escura e cercada por uma floresta fechada. Mas não tem jeito: Frank acaba pegando no sono por alguns instantes, tempo suficiente para quase colidir de frente com outro carro, frear violentamente e quase sair da estrada.
Todos acordam assustados, porém aliviados de que nada de mais grave aconteceu... ou não? Um bom espectador de filmes gnósticos já começa a ficar com uma pulga atrás da orelha.
A viagem continua, mas a estrada não tem placas e nem o mapa parece ajudar muito – a estrada parece que não existe na cartografia viária do Estado. Até se depararem com uma mulher toda vestida de branco (Amber Smith), carregando um bebê no colo. Ela nada responde e parece estar em estado de choque.
Dão carona a ela até uma pequena choupana de beira de estrada. Até que a garota desaparece, junto com o namorado de Marion, Brad. Para em seguida, desesperada, Marion ver um antigo carro fúnebre passar levando Brad que grita desesperado, batendo na janela traseira.
Para mais à frente ser encontrado, com o corpo totalmente despedaçado no meio da estrada.
Outro indício de alguma anomalia nessa narrativa: os comportamentos dos familiares que, mesmo diante das mortes terríveis que começam a perseguir cada membro (junto com o carro funerário que leva cada vítima antes de ser assassinada), são erráticos – simplesmente se expõem ainda mais tomando as decisões mais ilógicas e muitas vezes egoístas. O que pode a princípio irritar o espectador, achando que o roteirista está nos subestimando.
Muitas vezes, os personagens parecem indiferentes quando vemos cada membro afundando nos seus próprios vícios privados. Richard vai para a escuridão da floresta para fumar baseado e se masturbar vendo fotos da revista Playboy; a mãe chega ao orgasmo ao esfregar o cérebro exposto por um ferimento na cabeça; enquanto Frank enche a cara ao volante, ao lado da filha sobrevivente Marion, ironicamente uma estudante de Psicologia.
Todos os conflitos e revelações da vida conjugal dos pais afloram, entre uma morte bizarra e outra.
Até que surge a única placa indicativa para onde aquela estrada conduz: uma cidade chamada Marcott que, logicamente, não consta no mapa: será que aquilo é uma estrada secreta para treinamento militar? Marcott é algum tipo de instalação do exército?
O desfecho PsicoGnóstico – Alerta de Spoilers à frente
Tudo nos leva ao desfecho clássico de um filme PsicoGnóstico: Marion, a única sobrevivente, desperta em um hospital – o restante da família morreu no acidente. O choque provocado pela sonolência de Frank, um choque frontal no carro de uma mulher que levava um bebê...
A doutora que atente Marion no hospital chama-se Marcott. E o motorista que ligou para o resgaste após o acidente é um colecionador de carros antigos – ele guiava um carro preto muito semelhante a um veículo fúnebre...
Assim como, dois anos depois, o filme A Passagem iria abordar a tela mental que criamos no pós-morte que não só projeta todas nossas culpas, vícios, medos, desejos e sonhos. O significante ou, por assim dizer, o suporte para esse complexo emocional serão os fragmentos de memória dos últimos instantes antes da morte.
Se em A Passagem, o protagonista via o seu psicanalista trajando calças com a barra sempre curta (já que no acidente estava estendido no chão e via os paramédicos do resgate de baixo para cima), também Rota da Morte fará esse jogo com as memórias de curtíssimo prazo.
No caso de Rota da Morte, o nome da doutora, a imagem do carro escuro e a mulher morta com seu bebê são ressignificados, para criar uma segunda narrativa – a placa na estrada, o carro perseguidor. Como se ainda a família estivesse viva e superado a quase colisão, sem perceber que é prisioneira da própria mente num limbo entre vida e morte, prisão e libertação, ignorância e gnose.
Assim como nos sonhos, na morte encobrimos a realidade com a ilusão ao criar a própria tela mental na qual são projetados medos, culpas e fantasias, criando uma experiência imersiva e etérica com formas-pensamento que se materializam de forma convincente e, muitas vezes, assustadoras.
Sem lucidez (autoconsciência ou autodistanciamento), a tela mental cria um fluxo no qual o sonhador/recém-falecido perde a consciência por estar imerso e interagindo com as imagens e formas-pensamento, assim como se estivesse com algum dispositivo 3D ou em alguma sala de projeção em 4D ou 5D.
Prisioneiro da própria tela mental, o sonhador não consegue abrir-se conscientemente à realidade dos mundos para além dos sonhos – dimensões espirituais.
Em síntese, não alcança a gnose.
Ficha Técnica
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Título: Rota da Morte (Dead End)
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Diretor: Jean-Baptiste Andrea, Fabrice Canepa
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Roteiro: Jean-Baptiste Andrea, Fabrice Canepa
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Elenco: Ray Wise, Lin Shaye, Mick Cain, Alexandra Holden, Amber Smith, Billy Asher
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Produção: Sagittaire Films, Captain Movies
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Distribuição: Europa Filmes (DVD)
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Ano: 2003
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País: França
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