Ao refletir sobre o tema da imortalidade, o roteirista Danny Rubin teve a idéia para o roteiro do filme cult "Feitiço do Tempo". A primeira vista o filme parece apenas mais uma comédia romântica, mas o inteligente roteiro vai colocar o protagonista numa espécie de imortalidade ao se ver prisioneiro de um bizarro fenômeno temporal. Com esse argumento Rubin bebe nas obscuras fontes das mitologias gnósticas sobre o Tempo e a Reencarnação.
O novo filme do diretor Duncan Jones, “Contra o Tempo” (Source Code, 2010), deu-nos a ideia dessa trilogia sobre o tema “tempo” no cinema. Com estreia prevista no Brasil para 17 de junho, as críticas descrevem esse filme como o resultado de um cruzamento entre o cult “Feitiço do Tempo” (Groundhog Day, 1993) e o mais recente “Deja Vu” (Deja Vu, 2006). No ano passado postamos uma analise do filme anterior de Duncan Jones “Lunar” (Moon, 2009) onde observamos que essa produção europeia possuía uma clássica narrativa gnóstica (veja links abaixo).
Como veremos na terceira postagem dessa trilogia, o filme “Contra o Tempo” dá continuidade aos elementos narrativos e simbólicos gnósticos do filme anterior só que, dessa vez, com um orçamento maior inerente a uma produção norte-americana. O que significa dizer que Duncan vai se aproximar do gnosticismo pop de Hollywood.
O fato de a crítica apontar os filmes “Feitiço do Tempo” e “Deja Vu” (filmes com diversos elementos gnósticos) como inspirações para o roteirista de “Contra o Tempo”, Ben Ripley, demonstra o claro sabor de gnosticismo pop desse filme.
Portanto, nessa primeira postagem da trilogia vamos analisar o filme “Feitiço do Tempo”. Na próxima postagem vamos abordar “Deja Vu” para, ao final, fechando essa trilogia, analisarmos o filme “Contra o Tempo” de Duncan Jones.
O Homem como prisioneiro do tempo
À primeira vista “Feitiço do Tempo” é apenas uma comédia romântica com várias exibições nas chamadas sessões da tarde na TV brasileira. Aos poucos foi tornando-se um filme cultuado, principalmente pela originalidade do roteiro de Danny Rubin, um dos roteiristas mais conceituados dos últimos 20 anos: ganhou numerosos prêmios e, em 2004, Rubin participou de um remake italiano de “Feitiço do Tempo”: “È Già Ieri”(“Stork Day”, o título em inglês).
Uma breve sinopse: um apresentador de boletins meteorológicos Phil Connors (Bill Murray) e a sua equipe (a otimista e iniciante produtora chamada Rita - Andie McDoowell - e um insolente operador de câmera - Chris Elliott) são enviados para a cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, para cobrir a festa anual do “Dia da Marmota”. Phil tem uma personalidade difícil, é arrogante, cínico, se acha talentoso demais para cobrir eventos provincianos como esse designado pela emissora. Ao sair da cidade, a equipe é apanhada por uma enorme tempestade de neve (que ele foi incapaz de prever) e fica não só preso na cidade como também no tempo. Toda vez que ele acorda pela manhã, é o mesmo dia, o dia da marmota tão odiado por ele. Phil tentará de tudo para escapar dessa cilada do tempo (inclusive vários suicídios), mas sempre acordará com o rádio-relógio tocando a mesma música e o locutor anunciando o Dia da Marmota.
Em uma entrevista Danny Rubin afirmou que o argumento do filme “O Feitiço do Tempo” surgiu enquanto refletia sobre a ideia de imortalidade e, mais especificamente, como uma pessoa poderia mudar através do tempo se fosse imortal: “Questionava se uma vida apenas seria o suficiente para alguém. Talvez necessitemos de mais.”, disse (veja em “Grounhog Day Screenwriter Danny Rubin Has Seen This All Before” em http://bigthink.com/ideas/20972).
O roteirista Danny Rubin |
Se não, vejamos: a primeira reação de Phil ao descobrir que estava aprisionado em um bizarro fenômeno temporal é de pânico e medo (assim como quando nascemos para esse mundo). Então, Phil é estranhamente atraído pela produtora (uma das pessoas que mais tratava com desdém) ao vê-la como alguém que poderia ajudá-lo. Depois Phil descobre que, afinal, é imortal e que todo o que fizer não terá consequências já que tudo recomeçará a partir do zero. Ele torna-se uma criança irresponsável, faz tudo que quer, não importando as consequências. É a fase infantil do ser humano.
Mais tarde, Phil entra na fase da razão: ele começa a aprender as regras do jogo e torna-se um manipulador já que consegue prever o “futuro” dos acontecimentos. Antecipa o que as pessoas dirão ou farão. Por isso, torna-se um sedutor. Acha que é um deus em seu pequeno cosmos, e tenta seduzir Rita, a mulher que na verdade ama desde o início. Tudo dá errado quando Rita desconfia da personalidade manipuladora de Phil.
Frustrado, todo o jogo se desmorona e perde a graça. Phil entra em depressão e tenta o suicídio diversas vezes, mas sempre volta ao início do mesmo dia: é o desespero gnóstico da “imortalidade” espiritual no cosmos físico. A morte não representa a libertação, pois a reencarnação nos faz retornar a esse mundo do qual somos prisioneiros (sobre o ponto de vista gnóstico da reencarnação veja links abaixo).
A melancolia de Phil leva-o à gnose: descobre que tudo o que deve aprender naquela situação não deve ser usado como fosse uma divindade manipuladora, mas sim como ensinamentos para melhorá-lo interiormente. Sua “vidência” é usada para ajudar as pessoas, aprende novos talentos (como tocar piano) até conseguir o amor de Rita ao conhecer o verdadeiro Phil, não mais aquele Phil arrogante dos boletins meteorológicos da emissora de TV.
O Tempo como falha
Para o Gnosticismo o tempo é uma falha desse cosmos físico corrompido em que somos prisioneiros. E a reencarnação é a estratégia para aprisionar a humanidade. O tempo nos dá a ilusão de continuidade, desenvolvimento, evolução e desdobramento. Mas, assim como Phil, somos prisioneiros em um único dia.
Phil priseoneiro em um microcosmo gnóstico da condição humana |
Ao refletir sobre a imortalidade no filme “O Feitiço do Tempo” Danny Rubin claramente está bebendo nessas águas das obscuras mitologias do Gnosticismo. Phil atravessa todas as fases do tempo cíclico da condição humana prisioneira no cosmos físico: nascimento, infância, razão, frustração e morte para reencarnar mais uma vez e repetir mais uma vez o ciclo.
O amor pela produtora Rita vai quebrar esse eterno retorno. O personagem feminino de Rita claramente ocupa o papel simbólico de Sophia que induzirá a gnose de Phil. Se na mitologia gnóstica Sophia (aeon da sabedoria) participa da construção desse cosmos para, secretamente, ajudar o homem a encontrar a salvação, no “Feitiço do Tempo”, como produtora de TV vai sutilmente ajudar Phil a encontrar a gnose.
Porém a gnose não é meramente uma reforma íntima ou um cultivo diletante ou autoindulgente. Mais do que isso, significa a ruptura com a ordem política, institucional ou social. Phil consegue romper o círculo vicioso do tempo e decide abandonar a carreira de estrela de uma emissora de TV. Decide estabelecer-se na outrora odiada Punxsutawney junto com sua amada Rita e viver uma vida simples e pacata.
Claro que não estamos querendo dizer que o roteirista Danny Rubin seja “gnóstico”. Talvez nem tenha lido nada a respeito. Mas se ao longo da história o Gnosticismo renasce diversas vezes, é certamente pelo sua natureza mítica ou arquetípica. Sua literatura fundamental é fragmentada e dispersa, mas seu imaginário continua forte influenciando os campos literários, artísticos e até científicos. Na atualidade, a mitologia gnóstica parece a que melhor define a subjetividade contemporânea.
Ficha Técnica
- Título: O Feitiço do Tempo (Groundhog Day)
- Diretor: Harold Ramis
- Roteiro: Danny Rubin
- Elenco: Bill Murray, Andie MacDowell, Chris Elliott
- Produção: Columbia Pictures Co.
- Distribuição: Columbia TriStar Films
- País: EUA
- Ano: 1993
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