terça-feira, julho 17, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Como fazer um filme
sobre um tema tão revisitado e com tantas versões como viagem no tempo? Na
época estreando em longa-metragens, o espanhol Nacho Vigalondo, escreveu e
dirigiu o filme “Crimes Temporais” (Los Cronocrimenes, 2007) que dá uma
resposta criativa e inovadora ao gênero ao misturar o voyeurismo de Hitchcock
no clássico “Janela Indiscreta” com uma curiosa sacada metalinguística onde o
diretor faz o próprio cientista que perde o controle de uma experiência
temporal – cientista, roteirista e diretor, todos demiurgos prisioneiros de
limites análogos: na Física as leis da entropia e inércia; no roteiro, as
regras narrativas e a verossimilhança. Física e roteiro governados pelo mesmo
inimigo implacável: o Tempo.
Após ser indicado para o Oscar em 2004 com seu curta “7:35 De La Mañana”, o diretor e roteirista espanhol Nacho Vigalondo pôs em prática seu projeto de filmar um “roteiro
enlouquecido sobre viagens no tempo com muitos paradoxos temporais que jamais
imaginava que pudesse realizá-lo”. Uma estória intrincada sobre viagem no tempo
com escassos deslocamentos espaciais e temporais: deslocamentos ao passado de
uma hora com toda ação acontecendo dentro de um espaço limitado a um quilômetro.
Vigalondo inspirou-se em uma cena do filme “De Volta Para o
Futuro 2” (Back To The Future 2, 1989) onde Michael Fox tem que se esconder do
seu próprio “eu” futuro para montar um roteiro com três pistas narrativas (com
a possibilidade final de uma quarta!). Um homem de meia idade chamado Hector
(Karra Elejalde) muda-se com sua esposa Clara (Candela Férnandez) para uma casa
em uma região rural de Cantábria no norte da Espanha.
Enquanto estão às voltas com móveis, tintas e reformas,
Hector tem sua atenção despertada para um bosque. Pegando um binóculo no meio
das caixas da mudança, Hector concentra-se naquela área vizinha e descobre que
uma bela jovem está tirando a roupa por trás das árvores. Aproveitando que
Clara saiu de carro para comprar alimentos para o jantar, guiado pelo impulso
de curiosidade e atração sexual, Hector vai até o bosque para encontrar a
desconhecida mulher. Hector acaba encontrado-a deitada, nua e desfalecida até
ser atingido por um golpe no braço com uma tesoura desferida por uma estranha
figura com a cabeça envolvida por ataduras vestindo um pesado casaco negro.
A alusão ao "Problema do Gato Morto" na camiseta da jovem misteriosa: o paradoxo quântico de Schrödinger na viagem no tempo
A partir daí inicia-se uma perseguição que vai terminar numa
instalação de pesquisa científica onde encontrará um jovem cientista (interpretado
pelo próprio diretor Nacho Vigalondo) que tentará escondê-lo em uma estranha
máquina que o fará regredir no tempo acarretando terríveis consequências: uma
sucessão de paradoxos onde Hector terá que enfrentar efeitos exponenciais
incontroláveis – confrontar-se com Hector 2, Hector 3, e assim por diante após
retorno da curta regressão no tempo.
O que torna para o espectador a narrativa mais intrincada e
desafiadora é que no filme não há um relógio, nem sequer referenciais pontuais
de minutos em cada momento. Por outro lado, Vigalondo enfrentou o desafio de
lidar com o subgênero “viagem no tempo” com um público que parece já estar
“vacinado” do espanto depois de tantos filmes que já exploraram as
possibilidades do tema. Como contar mais uma estória sobre “viagens no tempo”
de maneira que esteja dois passos adiante do público e, ao mesmo tempo, que não
seja tão cerebral que o aborreça?
Uma pequena e sutil referência na camiseta da misteriosa
jovem do bosque nos prepara para a narrativa complexa que está por vir: uma
ilustração de um gato simultaneamente morto e vivo. É a alusão ao
paradoxo quântico chamado “O Problema do Gato Morto” de Schrödinger –
experimento imaginário onde em uma caixa coloca-se um gato, isótopo radioativo
e um dispositivo que libera o veneno pelo contador Geiger. Pela lógica
quântica, paradoxalmente o gato deverá estar morto e vivo simultaneamente.
Para vencer esse desafio de empreender uma narrativa
inovadora sobre viagem no tempo que seja ao mesmo tempo complexa e divertida,
Vigalondo conseguiu em “Crimes Temporais” realizar um curioso cruzamento entre
“Janela Indiscreta” de Hitchcock e uma inusitada sacada metalinguística ao
colocar o próprio diretor do filme como o cientista criador da máquina do
tempo.
O diretor e o
cientista como demiurgos
Em entrevista concedida no festival de Cinema Fantástico de
Sitges (Catalunha) em 2007, o diretor Vigalondo comentou sua participação no
filme dessa maneira: “[o personagem] é um cientista de merda, porque creio que
um diretor somente pode interpretar em suas próprias películas personagens de
merda. Mais do que um cientista, parece um menino que deixou a barba crescer
para parecer mais velho. Tem a ver com o próprio papel do diretor: esconder a
situação de que é na verdade um demiurgo vítima da sua própria criação” ("Entrevista a Nacho Vigalondo" El Blog Del Cine Español).
Interessante utilização por Vigalondo do termo “demiurgo”.
Não fosse a associação do termo à analogia do personagem do filme com a função
de diretor/roteirista, diríamos que Vigalondo estava tomando a palavra no seu
sentido mais comum como a de mero artífice e artesão. Isso porque tanto o
cientista quanto o diretor do filme exploram os limites de um elemento comum: o
Tempo.
A linguagem cinematográfica basicamente é edição e montagem,
isto é, recortar o tempo de permanência da imagem de forma expressiva e
significativa. Nesse sentido é manipular o tempo fazendo elipses, cortes,
saltos, flashbacks, flashfowards. Da mesma forma como o jovem cientista de
“Crimes Temporais”.
Porém, embora sejam artífices e manipuladores continuam escravos
do Tempo: na Física as leis da inércia e entropia; no roteiro/direção as leis
da narrativa e verossimilhança. O grande problema do roteirista é quebrar a
incredulidade do público, fazê-lo aceitar os pressupostos do universo da
narrativa e aceitar a verossimilhança da estória. Da mesma forma, tanto Hector
quanto o atrapalhado cientista tentam reconstruir o fio da narrativa perdida
evitando que o paradoxo temporal ocorra (que as diversas versões de Hector se encontrem
no mesmo plano temporal) o que poderia detonar uma catástrofe de dimensões
cósmicas, segundo os cânones dos filmes sobre vigem no tempo.
Dessa maneira, a escolha do termo “demiurgo” parece remeter
à tradição mitológica que começa em Platão e se desenvolve no Gnosticismo. Em
Platão o Demiurgo figura como o agente que organiza e modela a matéria caótica
de acordo com os modelos perfeitos e eternos do Mundo das Ideias. Porém fracassa
ao tornara realidade um mero simulacro, uma cópia imperfeita das formas ideais.
Diretor Nacho Vigalondo como o cientista: metalinguagem sobre o paralelo entre cinema e viagem no tempo
No Gnosticismo o Demiurgo assume uma dimensão mais trágica:
uma emanação que decaiu da Plenitude (o Pleroma) para as esferas inferiores
onde tenta torná-las semelhantes às dimensões superioras. O Demiurgo cria
ciclos de tempo como imitação pobre da eternidade atemporal. Porém, tudo o que
consegue é a progressão causal, isto é, a flecha do tempo caracterizada pela
inércia e entropia. Enlouquecido, inebriado pelo falso poder e aprisionando o
homem nesse cosmo para extrair dele as fagulhas de Luz remanescentes do
Pleroma, o Demiurgo não percebe que ele próprio é prisioneiro da imperfeição
desse cosmos físico que criou.
Todos os cientistas loucos da literatura e da história do
cinema devem suas origens a esse arquétipo derivado das mitologias gnósticas e
neo-platônicas: a crença de que o cosmos físico foi criado por um Demiurgo e
não por Deus. Quando a ciência prometéica (representada desde personagens como
Frankenstein até filmes como “Matrix” e “Show de Truman”) procura se igualar a Deus
ao tentar criar a vida ou manipular o continuum
tempo/espaço, na verdade inconscientemente está procurando imitar o Demiurgo,
incorrendo no mesmo destino trágico.
Através do buraco do
coelho
Também “Crimes Temporais” inova o gênero ao aproximar a
narrativa ao suspense quando faz uma clara referência ao filme “Janela
Indiscreta” de Hitchcock: crime e voyeurismo. Mas o curioso é que, embora a
atração sexual e a curiosidade perversa sejam o início de toda a trama, na verdade
toda a aventura do protagonista Hector está mais para a jornada de Alice: tudo
começa pela perseguição a um estranho coelho de colete em uma tediosa tarde
quente de verão, até cair num buraco que a levou ao País das Maravilhas.
Em
“Crimes Temporais” o coelho é a bela jovem que se desnuda em um bosque.
Crime e voyeurismo são pretextos para prender a atenção do
espectador a um crime que será apresentado repetidas vezes, sempre por um
ângulo ou um detalhe diferente na medida em que os paradoxos temporais se sucedem.
Tanto em “janela Indiscreta” quanto em “Crimes Temporais” os
protagonistas são punidos pela pulsão voyeurista, porém o final de Hector é
muito mais trágico e, ao mesmo tempo, surpreendente para o espectador que vê um
filme de ficção científica transitar para o gênero Fantástico.
Ficha Técnica
Título: Crimes Temporais (Los Cronocrimenes)
Diretor: Nacho Vigalondo
Roteiro: Nacho Vigalondo
Elenco: Karra Elejalde, Candela Férnandez, Bárbara Goenaga
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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