domingo, janeiro 03, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Sob a fachada de uma respeitada família de um burocrata do governo
aposentado e uma professora primária em um dos bairros mais ricos de Buenos
Aires, estava um terrível segredo: no porão daquela casa escondiam-se vítimas
de sequestros, friamente assassinados após o pagamento de cada resgate
milionário. Baseado em caso real, o filme argentino “O Clã” de Pablo Trapero
retrata um tipo bem especial de maldade, bem diferente da hollywoodiana e
próxima da “transparência do Mal” retratada na literatura por Marquês de Sade e
no cinema por Pasolini – não mais a maldade como um ente que desvirtua e
corrompe, mas o Mal originado da própria racionalidade e da virtude: por trás
de uma grande fortuna, esconde-se sempre um grande crime.
Uma família
prepara-se para o jantar em uma casa em San Isidro, um dos bairros mais ricos
de Buenos Aires. O pai reza com a família antes de iniciar a refeição. À mesa, estão
as filhas adolescentes que nasceram em berço de ouro. A mãe, uma pacata
professora. E o filho primogênito é um bem sucedido atleta de rúgbi, presente
em capas de revistas esportivas nacionais e estrela da seleção argentina.
A perfeita imagem
de uma família estável, religiosa e bem sucedida. Se não estivéssemos em 1982,
em plena época da conturbada transição da ditadura para a democracia. O
patriarca é um ex-agente do serviço de inteligência da ditadura militar
argentina (1976-1983) que aproveita da experiência e contados adquiridos nas
sombras do poder para ter benefícios e proteção.
E no porão da
casa, um segredo que iria abalar a opinião pública da Argentina: sob o olhar
frio do chefe da família (Arquimedes Puccio) e a cumplicidade da mulher
(Epifania Puccio) e dos filhos, são escondidos empresários e seus familiares
sequestrados em troca de resgates milionários. E todos jamais são devolvidos –
feito o pagamento eram depois friamente assassinados.
Baseado em um caso
real que impactou a Argentina, o cineasta Pablo Trapero (Abutres, 2010 e Elefante
Branco, 2012) resolveu aceitar o desafio de revolver esse tema tabu da
história recente do país com o filme O
Clã. Os mais jovens não conhecem o caso Puccio. Desde o episódio, nenhum
livro ou algo que contasse a história foi publicado no país. Trapero teve que
conversar com juízes, familiares, vizinhos para levantar pistas sobre o que acontecia
dentro da casa e traçar o perfil de cada membro da família.
Ao trabalho genial
de câmera e edição de Trapeiro (a narrativa não linear, flash backs, montagens
paralelas e os passeios da câmera no interior da casa dos Puccio vão compondo a
atmosfera de uma estranha combinação de harmonia e tensão) associa-se a
assombrosa transformação do ator Guillermo Francella – conhecido por papeis
humorísticos como na série de TV El
Hombre De Tu Vida, em O Clã o
ator incorpora, inclusive fisicamente, a frieza e o cinismo assustador do
personagem, sem dar um sorriso sequer em todo o filme.
Esqueça o Mal hollywoodiano
Não há como
assistir ao filme O Clã sem deixar de
lembrar da emblemática frase de Honoré de Balzac: “Por trás de toda grande
fortuna esconde-se um crime”. Por trás de todo mérito podem estar escondidos
impunidade, acobertamento e proteção que perpetuam golpes.
Por trás do mérito
pode esconder-se o Mal. Como imaginar que no interior de uma casa do bairro da
burguesia de Buenos Aires morava a família mais violenta de criminosos da história
da Argentina?
Esqueça os vilões
psicóticos enlouquecidos ou caipiras selvagens de filmes hollywoodianos como O Massacre da Serra Elétrica. Em O Clã o Mal é de outra natureza, é a
própria transparência do Mal: frio, calculista, metódico, quase científico, sob
a aparência de normalidade familiar acima de qualquer suspeita. Uma aparência
também metodicamente planejada por toda a vida do patriarca Arquimedes Puccio.
Com o filme O Clã o cineasta Pablo Trapero entra
numa área cinza e sinistra que é o próprio underground do Iluminismo, discutido
desde a obra de Marques de Sade até chegarmos aos filmes de Pasolini, em
especial Saló ou Os 120 Dias de Sodoma
– o Mal transparente, aquilo que não pode ser explicado porque originado da
própria Razão e dos seus instrumentos que deveriam impedir a maldade de existir
– sobre o filme Saló, clique
aqui.
O Filme
Arquimedes Puccio
aproveita-se das suas antigas ligações com a ditadura militar para garantir o
acobertamento de todos os seus sequestros. Debaixo de uma chancela de
normalidade era ajudado pela esposa e dois dos cinco filhos o ajudavam
diretamente nos planos e ações de sequestro.
Alejandro Puccio,
o primogênito, é o mais atormentado em ajudar os planos do pai. Vive entre a
vida material confortável e atleta bem sucedido de rúgbi e a culpa em ser
obrigado a entregar conhecidos seus da alta sociedade de San Isidro ao pai para
serem sequestrados e, posteriormente, assassinados.
Tantos sequestros
e mortes são escondidos pelos amigos do alto escalão militar. Caso
transformem-se em algum escândalo na opinião pública, colocava-se a culpa em
grupos terroristas de esquerda. Mas nos anos 1980 a ditadura militar está no
ocaso e os amigos militares de Puccio estão perdendo as posições de maior poder
no Estado.
Puccio acredita
que tudo é apenas uma fase e logo os militares voltarão ao poder. Por isso, ele
continua os seus planos macabros, alheio às rápidas mudanças do cenário político
argentino.
A transparência do Mal
Com O Clã Pablo Trapeiro não apenas revirou
uma história que os argentinos parecem querer esquecer – assim como por trás de toda fortuna esconde-se
um crime, por trás de todo poder esconde-se o genocídio. Seja no Estado ditador
ou na sua face mais liberal, o poder é exercido através da violência, da frieza
e da indiferença criado pelo sistema conceitual da Razão política ou econômica.
Tanto Marquês de
Sade na literatura como Pasolini no cinema pressentiram essa transparência da
maldade: o Mal não é algo diabólico que surge do além e corrompe um sistema
racional. O Mal já está inscrito tanto na Razão como na Natureza pelo seu
caráter reversível – a paz produz a guerra, o remédio a doença, e a virtude a
corrupção - leia o conceito de "reversibilidade do Mal" do filósofo francês Jean Baudrillard - clique aqui.
No filme, Arquimedes
Puccio apresenta um álibi para perpetrar todos os crimes: para ele, todos os
ricaços que rouba e mata são desgraçados responsáveis pela crise político e
econômica argentina. Mas isso é apenas uma racionalização que esconde a própria
essência do Mal – Puccio transformou-se numa máquina fria e calculista de
punições. O sistema repressivo militar acabou, mas ele deve continuar
castigando. Para Puccio este é o preço para manter a normalidade das
instituições: o Estado, a tradição, a família.
O Mal não é a
antítese da Razão: é a sua reversibilidade natural. Para Puccio, assim como
para o próprio sistema como pressentiu Balzac, o conforto material, a fé na
religião, o sucesso do filho atleta e a paz no lar somente podem ser
construídos através de uma violência subterrânea. Se poucos ganham, a maioria
deve perder.
A perfeita reversibilidade entre Bem e Mal
Filmes como Veludo Azul (1986) ou mesmo a série Twin Peaks (1990) do cineasta David
Lynch perscrutaram esse paradoxo de sempre por trás da normalidade social e
econômica existirem criminosos, pervertidos, pequenos escroques e grandes
golpes. E como diagnostica essa produções cinematográficas, não há disfunção,
mas uma perfeita reversibilidade entre o Bem e o Mal.
Arquimedes Puccio
não é um serial killer maluco, um assassino possuído pela maldade ou algum
psicótico cuja loucura escondeu a Razão e a consciência. Como confessa a certa
altura no filme, tudo na sua vida foi friamente calculado e previsto para
construir uma aparência que o colocasse acima de qualquer suspeita: o sucesso do
filho Alejandro para aproximar-se dos clubes da alta sociedade argentina, a sua
forma metódica de vestir pijamas e ficar passando a vassoura na calçada em
frente a sua casa, a loja aberta para o filho vender material esportivo e
também lavar o dinheiro dos sequestros.
A prisão de
Arquimedes Puccio e sua família coincidiu com o fim da ditadura militar e a
democratização do país. Porém, a forma como a sociedade argentina quis esquecer
desse escândalo é um sintoma de que, afinal, suspeitamos que por trás da
fachada de normalidade das instituições e convenções sociais sempre se
esconderá um grande crime.
Ficha
Técnica
Título: O
Clã
Diretor: Pablo Trapero
Roteiro: Julian Loyola, Esteban Student
Elenco: Gillermo Francella, Antonia
Bengoechea, Peter Lanzani, Stefania Koessi
Produção: El Deseo, Matanza Cine, Televisión Federal (Telefe)
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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