sábado, dezembro 02, 2023

'A Queda da Casa de Usher': Allan Poe e o acerto de contas cármico com a elite predatória


Com a proximidade das festas de final de ano, a área do cinema e audiovisual é tomada por contos morais otimistas sobre mudanças pessoais e reavaliações do significado da vida. Então, vá contra a corrente e encare uma série sobre execuções da justiça cármica dentro do universo do escritor gótico norte-americano Edgar Allan Poe. É a produção Netflix “A Queda da Casa de Usher” (2023), uma adaptação da obra escritor trazida para a era da Big Farma sobre a ascensão e o declínio de uma família americana bilionária cuja origem do império está num analgésico opiáceo que vicia e destrói a vida de milhões – obviamente inspirado no escândalo atual da Purdue Farma da família Sackler, responsável pela epidemia de opioides nos EUA com o analgésico OxyCotin. Os herdeiros Usher começam a morrer misteriosamente. Apontando para um tipo de escrutínio para além da Justiça terrestre: o horror metafísico dos fantasmas do consciência e do passado que vêm fazer o acerto de contas com a elite predatória.

Bohemian Club é um clube exclusivo masculino fundado em 1872 localizado em Monte Rio, Califórnia. Todo verão, no mês de julho, seus membros (2.500 no total, membros da elite financeira, midiática e política global) participam de um “acampamento” onde se programam dentro de uma intensa pauta constituída por palestras sobre conjuntura mundial, lazer e um estranho ritual conhecido como “Cremation of Care” feito sob os pés da estátua de uma coruja com 12 metros de altura. Em todos os aspectos, emulando um ritual babilônico pagão, num evento fechado onde câmeras ou celulares são proibidos.

“Cremation of Care” é um show musical, pirotécnico e teatral cujo texto, pronunciado pela Coruja através do sistema de som, faz uma alegoria do banimento de todas as preocupações e culpas da consciência dessa elite, como relata Porter Garnett no livro The Bohemian Jinks: A Trealise. Queimam aos pés da Coruja, numa pira incendiária, um boneco em forma humana como estivessem se livrando dos fantasmas da consciência.

Uma elite que parece consciente de todo mal planetário gerado pelo tripé composto pelas finanças, armas e farmoquímica: guerras, envenenamento em massa por agrotóxicos e fármacos, o abismo da desigualdade e a destruição ambiental pelo modo de vida dos 1% mais ricos do planeta. 

A série Netflix A Queda da Casa de Usher (2023) é uma orgia literária sobre a morte, colocando em primeiro plano esses fantasmas que eventualmente assaltam a consciência dos membros daqueles que decidem a vida e a morte de milhões.

A série é uma adaptação da obra homônima do clássico gótico americano do escritor Edgar Allan Poe, trazido para a era da Big Farma sobre a ascensão e o declínio de uma família americana bilionária cuja origem do império está na mina de ouro que representou um analgésico opiáceo chamado Ligodone feito pela Fortunato Pharma - viciando e destruindo a vida de milhões. 

A adaptação da obra de Poe é obviamente inspirada no escândalo atual da Purdue Farma da família Sackler, responsável pela epidemia de opioides nos EUA com o analgésico OxyCotin, resultando numa escalada de ações judiciais de governos locais e estaduais contra a empresa, além da irremediável destruição de milhares de vidas.

Uma história de oito episódios sobre vingança, poder, traição e muito sangue, criado por Mike Flanagan a partir de uma vertiginosa colagem de alusões às obras que compõe o universo do escritor gótico: “A Máscara da Morte Escarlate”, “O Corvo”, “O Poço e o Pêndulo”, “A Narrativa de Arthur Gordon Pym” entre outras. São verdadeiros “ovos de Páscoa” para os fãs de Edgar Allan Poe.

Ao mesmo tempo que a família Usher sofre o escrutínio do público sob um julgamento liderado pelo advogado Dupin (nome recorrente em personagens das obras de Poe), os herdeiros começam a morrer misteriosamente. Apontando para um outro tipo de escrutínio: o do horror metafísico dos fantasmas da consciência que vem fazer o acerto de contas, acompanhado de uma mulher sinistra com laços estreitos no passado com os Usher e presença recorrente em todos os acontecimentos.



Com a proximidade das festas do final de ano, a forma como os fantasmas do passado assalta a consciência do magnata Roderick Usher (Bruce Greenwood) lembra um clássico conto moralista de Charles Dickens “Um Cântico de Natal” (“Christmas Carol”) de 1843: a estória de Ebenezer Scrooge, velho ranzinza e sovina que passou a vida inteira juntando uma fortuna, desprezando qualquer contato com as pessoas. Na noite de Natal recebe a visita de três fantasmas que o assombram, mostrando visões do passado, do presente e do futuro da sua vida, levando-o a uma transformação íntima e reavaliando o significado da vida.

Mas em A Queda da Casa de Usher esse tom moralista desaparece. Roderick tem visões de fantasmas monstruosos, decorrentes de opções conscientes tomadas na vida, ao lado da sua maquiavélica irmã gêmea Madeline (Mary McDonell).

Inexoravelmente, os Usher vão ter que confrontar com as consequências das execuções cármicas da fortuna que conduz ao desfortúnio. 

Roderick e Madeline não terão nenhum ritual como o “Cremation of Care” para expiar a culpa e arrependimento. E muito menos algum confessionário católico para pedir o perdão divino. Apenas a fria e precisa execução de uma justiça cósmica que transpassa a obra de Edgar Allan Poe e que tanto fascinou outro autor do gótico norte-americano: H.P. Lovecraft.

A Série

A Queda da Casa de Usher se passa simultaneamente no passado, presente e futuro: como os irmãos gêmeos Roderick e Madeline assumem de forma sangrenta o controle da Fortunato Farma em 1980 – lembrando a velha máxima de Balzac: “Por detrás de uma grande fortuna há um crime”; o processo atual contra a Fortunato Farma, liderado pelo Procurador-Geral Auguste Dupin (Carl Lumbly); e, no futuro, quando Roderick Usher convida, numa noite tempestuosa, Dupin para confessar toda a verdade sobre a história criminosa e violenta de sua família – e, principalmente, o porquê da morte em série dos seus filhos.



Ao abrir a série, os fãs são apresentados a Roderick Usher (Bruce Greenwood), o CEO acinzentado da Fortunato Pharma — um enorme conglomerado farmacêutico com uma droga de assinatura que é equivalente ao opioide altamente viciante OxyContin. Embora ele tenha tudo ao seu alcance, Roderick está profundamente angustiado. Todos os seis filhos morreram recentemente, deixando Roderick, sua irmã gêmea Madeline (Mary McDonnell), sua neta, Lenore (Kyliegh Curran), sua nova noiva Juno (Ruth Codd) e o capanga “conserta-tudo” Arthur Pym (um Mark Hamill irreconhecível) como os membros restantes do império Usher.

Assustado com a aparição de uma mulher misteriosa e com dons sobrenaturais (Carla Gugino) durante o funeral final de seus filhos, Roderick convoca o procurador Auguste Dupin para sua casa abandonada da infância para oferecer uma confissão de seus variados crimes. 

Dupin passou décadas de sua carreira tentando incriminar os Ushers, mas nunca conseguiu sequer indiciá-los. Ansioso para ouvir o que tem a dizer, Dupin se senta frente a frente com Roderick para ouvi-lo a contar a história de sua vida - começando com sua infância e terminando com as mortes chocantes de seus filhos. 

Os filhos de Roderick, Frederick (Henry Thomas), e sua filha, Tamerlane (Samantha Sloyan), são os irmãos mais velhos, nascidos do casamento do CEO com sua primeira esposa, Annabel Lee (Katie Parker). Depois, há os bastardos Usher: o mentor de relações públicas Camille (Kate Siegel), o magnata dos videogames Napoleon (Rahul Kohli), a ambiciosa e eticamente questionável cientista Victorine (T'Nia Miller), às voltas com fraudes nas pesquisas para favorecer a Fortunato Farma, e o mais jovem, o amante de festas com drogas e orgias Prospero (Sauriyan Sapkota). Os quatro mais novos nasceram da frivolidade sexual de Roderick depois de assumir o império Fortunato.

Divididos em oito capítulos, os seis episódios do meio de A Queda da Casa de Usher, cada um nomeado por um conto aterrorizante de Poe, ilustram as terríveis mortes de cada um dos filhos Usher.



O Capitalismo viciante

O interessante é que a série não se limita à descrição da execução cármica dos Usher. Aqui e ali nas linhas de diálogo há verdadeiras pérolas de como uma elite predatória consegue, através dos mecanismos do Capitalismo, manipular a opinião pública e maximizar os seus lucros às custas da socialização das perdas.

Uma dessas pérolas é o miniconto de como tornar limões e limonadas rentáveis no Capitalismo:

Dupin - Quando a vida te dá limões, faça limonada?

Roderick – Não! Primeiro, faça uma campanha multimídia para convencer as pessoas de que os limões estão escassos... Só funciona se você estocar limões, controlar o abastecimento e usar a mídia. Limões são o único modo de dizer "eu te amo", um acessório indispensável para noivados e aniversários. Fora com as rosas! Que venham os limões. Anúncios dizendo que ela não vai mais transar se não tiver limões. Traga a De Beers. Braceletes de limão edição limitada, diamantes chamados gotas de limão. Faça a Apple chamar o novo sistema operacional de OS-Lemôn. Com um acento no "o" (...) Cobre 40% a mais por limões orgânicos... Encha o Capitólio de lobistas, faça uma Kardashian chupar um limão num filme erótico. Use hashtags. Algo não é "legal", "maneiro" ou "incrível", e sim "limão". "Viu aquele filme?" "Foi à quele show? Foi limão pra caralho!" ... Crie um código genético que fará o limão se parecer com um seio e tenha uma patente do gene da sequência do DNA do seio-limão. (...) Sente-se, recolha os milhões e, depois, quando tiver terminado e tiver vendido seu império por alguns bilhões de dólares... SÓ ENTÃO VOCÊ FAZ A PORRA DA LIMONADA!

Uma brilhante exposição cínica dos mecanismos de mercado para simular escassez física (estocagem) e imaginária (mídia e propaganda) para criar um alto valor agregado – o limão vira mais do que um limão... vira algo cool, sedutor, moda, tendência etc.



Através de linhas de diálogo cínicas como essa, Roderick eloquentemente revela como foi sua ascensão ao topo de Fortunato e, em seguida, revela como cada um de seus filhos morreu em detalhes cruéis. 

Ele conta sua obsessão em empurrar para a sociedade uma droga altamente viciante e comercializá-la fraudulentamente, quase ecoando a ascensão da vida real da família Sackler, que administrava a Purdue Farma e que se tornaram os principais responsáveis na atual epidemia de opioides nos EUA. 

Por sua vez, Dupin — cuja história com os Ushers vai muito além dos tribunais — tenta desvendar o mistério no centro da história de Roderick: porque a linhagem Usher parece estar se extinguindo rapidamente.

Dessa maneira A Queda da Casa de Usher se alinha a tendência no cinema e audiovisual nos últimos anos de não perdoar os 1% da população obscenamente mais ricos do planeta: Parasita, O Cardápio, Glass Onion: Um Mistério Knives Out, Triângulo da Tristeza, a série Sucession entre outros.

Como explicar que essa tendência? Talvez porque crie o prazer catártico da vingança misturado com um entretenimento voyeurista. Na Queda da Casa de Usher, pelo menos, temos um prazer a mais: a imersão no universo gótico de Edgar Allan Poe.


 

Ficha Técnica

 

Título: A Queda da Casa de Usher

Criação: Mike Flanagan

Roteiro:  Mike Flanagan, Rebecca Klingel

Elenco: Bruce Greenwood, Mary McDonnell, Carla Gugino, Carl Lumbly, Mark Hamill, Ruth Codd, T’Nia Miller, Rahul Kohli

Produção: Intrepid Pictures

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: EUA

 

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