Embora o filme não aborde explicitamente temas gnósticos, "Um Sonho Dentro de Um Sonho" tem um "sabor gnóstico" ao adotar uma consciência auto-reflexiva não só da realidade como da própria linguagem cinematográfica. Ao fazer uma referência direta a um poema de Edgar Allan Poe, o filme se associa à tradição da "ironia romântica" que tematiza a angústia humana em ser prisioneiro da linguagem que não consegue apreender uma realidade que se perde no cruel fluxo do tempo.
Eric Wilson, em seu seminal livro sobre o “cinema gnóstico” “Secret Cinema: Gnostic Vision in Film” (onde defende o surgimento de um novo gênero cinematográfico, o “filme gnóstico"), classifica a presença do gnosticismo nos filmes em quatro categorias: os filmes propriamente gnósticos (filmes onde a cosmologia e teologia gnósticas são explícitas como em "Matrix" (Matrix, 1999) e Show de Truman (Truman Show, 1998), filmes Cabalísticos (onde a aspiração gnóstica por transcendência passa por robôs, próteses e servo-mecanismos – o filme "RoboCop" (RoboCop, 1987) seria um exemplo, filmes alquímicos (que descrevem como a vida emerge da morte, o espírito cresce a partir do corpo e a verdade surge a partir do caos – "Beleza Americana" (American Beauty, 1999), e "Homem Morto" (Dead Man, 1995) seriam exemplos dessa categoria.
Wilson fala também de filmes com “sabor gnóstico”, filmes que não abordam propriamente temas do gnosticismo, mas contêm o espírito ou a atitude gnóstica frente à realidade. Um questionamento, por assim dizer, metalinguístico frente o real: pode ser o real um plot dentro de um plot? Uma narrativa dentro de outra narrativa?
O Filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho” (Slipstream, 2007), estrelado, dirigido e escrito por Anthony Hopkins certamente se enquadra nessa categoria. O título em português não poderia ter sido mais feliz. Retirado de uma das linhas de diálogo do filme, é uma referência a um poema de Edgar Allan Poe "Dream Within a Dream", escrito quando ele tinha 18 anos, em 1827.
Tal como a literatura do Romantismo do século XIX, os principais temas desse filme são a consciência “meta” da vida e da própria arte e a angústia diante do fluxo do tempo. Assim como no poema de Poe onde protagonista não consegue segurar a areia dourada que se esvai entre os dedos (“Oh Deus como segurar/o que não posso agarrar?/Oh Deus não posso salvar/Um grão desse cruel mar?).
Hopkins é Felix Bonhoeffer, um roteirista que, próximo da terceira idade, é contratado para reescrever um filme de mistério. Na verdade, tentar solucionar problemas de enredo decorrentes de eventos inesperados na produção do filme. Felix começa a viver em dois mundos distintos que, ao longo do filme vão se confundindo: o real (a produção do filme e a elaboração do roteiro) e a sua mente (referências imagéticas da sua vida se mesclando com os personagens do roteiro que tenta escrever).
Com inspiração nitidamente Linchyana (como Cidade dos Sonhos de David Lynch que metalinguisticamente trata dos meandros de Hollywood), Felix se defronta com matadores de aluguel, candidatas a atriz e produtores de cinema, tipos suspeitos que, ao longo da narrativa, transitam entre a realidade e o mundo paralelo criado pelo roteiro que tenta redigir.
O filme é um quebra-cabeças. Com uma edição frenética, há trocas constante de coloração das imagens (preto e branco, sépia, colorido), troca-se a ordem das cenas, erros propositais de continuidade, troca-se o autor das falas etc. Na primeira metade do filme o espectador fica totalmente perdido diante de uma aparente colagem aleatória de cenas. Parece um filme que ainda não foi editado (esse parece ser o propósito, já que se trata da produção de um filme que não termina).
A Ironia Romântica
Certa vez, o escritor e pesquisador Stephan Hoeller afirmou que todo artista sério já era, sem saber, meio gnóstico. A sobrevivência e os constantes "revivals" do gnosticismo certamente se devem a esse caráter parasitário de uma certa consciência ou atitude gnóstica diante da existência. Uma espécie de consciência meta. No caso da arte, a intrusão da figura do autor na obra literária, isto é, o caráter auto-reflexivo, a consciência de jogo na obra e sobre a obra. Essa é a característica principal do Romantismo: a “ironia”:
... A ironia romântica (...) não se esgota na mera interrupção do fluxo narrativo com o narrador dirigindo-se ao leitor. É, muito além disso, um recurso que se destina a fomentar uma constante discussão e reflexão sobre literatura – um processo do qual o leitor forçosamente participa. Essa participação é alcançada na medida em que o escritor destrói a ilusão de verossimilhança e desnuda o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção do leitor para como o texto foi construído.( VOLOBUEF, K. Frestas e Arestas. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 1998, p.99.
Essa atitude ou consciência meta (auto-reflexiva) que vê tanto a realidade como a arte que tenta representar a realidade como "construct" (artificialismo), parece ser o tema dominante do filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”. Na medida em que o protagonista confunde o roteiro e todas as suas referência cinematográficas (como o clássico “Vampiro de Almas”) com a própria realidade (a produção de um filme), Felix, atônito, chega ao limite da auto-reflexão: será a vida um roteiro cinematográfico, onde, dentro dele, produzimos novos roteiro? Ou, ao contrário, produzimos roteiros para, artificialmente, representarmos uma realidade inatingível?
Essa é a angústia que perpassa não apenas o filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”, mas de todo o Romantismo do século XIX: a angústia de que perdemos uma relação plena com a realidade, uma desconfortável sensação de hiato entre homem/mundo, experiência/representação. O recurso da ironia literária (obras ficcionais com constantes auto-reflexões narrativas, trazendo incerteza tanto ao protagonista quanto ao leitor sobre qual o ponto de vista da estória que está sendo contada) é o reflexo de uma consciência gnóstica em relação à existência: a desconfiança de um artificialismo tanto da arte como da própria realidade que pretendemos representar.
O filme constantemente repete planos do protagonista atônito, olhos arregalados e boca aberta, impotente, vendo o fluxo dos acontecimentos, a edição frenética e a troca constante da voz narrativa. Felix tenta ao longo do filme, sem sucesso, entender ou capturar o fluxo do tempo. Angústia fundamental da arte: como uma representação estática pode apreender o fluxo do tempo? Tal como no poema de Poe, como segurar entre as mãos a areia dourada que cruelmente se esvai?
Das artes plásticas, passando pela fotografia e cinema, parece ser essa angústia fundamental que norteia as tecnologias das imagens. Porém, quando o cinema chega a sua maturidade artística e tecnológica, repete-se o mesmo fenômeno da literatura quando chegou ao seu ápice: a angústia da auto-reflexão, a consciência metalinguística das limitações da representação artística em apreender o fluxo do tempo e da realidade.
Mas essa consciência (ou INconsciência) gnóstica levanta uma suspeita mais profunda: e se esse próprio fluxo cruel do tempo for um artifício, um constructu no qual estamos aprisionados? Assim como Felix Bonhoeffer ou Edgar Allan Poe em seu poema, estaríamos presos nessa falha cósmica que é o fluxo do tempo?
Esse sabor gnóstico presente no filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”, esse encontro entre cinema e romantismo literário, faz-nos compreender o porquê da sobrevivência do questionamento gnóstico ao longo da história: para além dos questionamentos cosmológicos e teológicos feitos pelos seus pensadores, o Gnosticismo não consegue se limitar à bidimensionalidade do papel. Vai mais além, numa atitude constantemente renovada de ironia e auto-reflexão em relação à vida e à arte.
Abaixo, uma tradução livre do poema de Edgar Allan Poe:
Trailer de "Um Sonho Dentro de Um Sonho (Slipstream, 2007)"Um Sonho Dentro de Um Sonho"Edgar Allan Poe
Receba este beijo na testa
E agora estou lhe deixando
Confessar-me é o desejo
Você não está errado
Meus dias foram um sonho
Contudo se a esperança fosse embora
Numa noite ou em um dia
Numa visão ou em nenhuma
Restaria algo?
Tudo que nós vemos
Tudo que parecemos
Não é mais que um sonho dentro de um sonho, sonho...
Eu estou entre o rugido de uma costa
De ondas atormentadas ao mar
E eu seguro entre as minhas mãos
Grãos da areia dourada
Oh, como elas rastejam
Dos meus dedos ao profundo
Quando eu soluço, quando eu soluço
Oh Deus, como segurar
o que não posso agarrar ?
Oh, Deus não posso salvar
um grão desse cruel mar ?
Isso é tudo que vemos
Tudo que parecemos
Não é mais que um sonho dentro de um sonho, sonho...
Sonho, Sonho, Sonho...
Ficha Técnica:
- Filme: Um Sonho Dentro de Um Sonho (Slipstream)
- Direção: Anthony Hopkins
- Roteiro: Anthony Hopkins
- Elenco: Anthony Hopkins, Christian Slater, Jeffrey Tambor, John Turturro, Kevin McCarthy, Stella Arroyave
- Produção/Distribuição: Strand Releasing
- Ano: 2007
- País: EUA