sábado, junho 05, 2021

Elon Musk se junta com o horror de Edgar Allan Poe no filme 'Oxigênio'



O conto de Edgar Allan Poe “O Enterro Prematuro” encontra-se com Elon Musk: o pânico mórbido em ser enterrado vivo encontra a redenção na comunhão tecnognóstica das nossas mentes com a nuvem da Inteligência Artificial, para alcançar a imortalidade. Esse é a produção original Netflix “Oxigênio” (2021), mais um filme sci-fi com a marca da ideologia Elon Musk. Uma mulher desperta no interior de uma câmara criogênica sem ter a menor lembrança de como parou lá. E muito menos sabe quem é. Ela precisa encontrar uma maneira de reconstruir sua memória e fazer as perguntas certas a uma inteligência artificial, antes de que o oxigênio se esgote.

Tafofobia: o pânico mórbido e psicopatológico de ser enterrado vivo em decorrência de um resultado incorreto de morte. Antes da era da medicina moderna esse tipo de pânico era frequente. A partir do século XVIII cresceu o mercado de “caixões de segurança” (com sinos, tubos, foles etc.) para que a pessoa erroneamente enterrada enviasse avisos de que estava viva e bombeasse ar para o interior do caixão.

O conto de Edgar Allan Poe “O Enterro Prematuro”, de 1844, descrevendo casos reais de pessoas que acordavam dentro dos seus próprios caixões, só serviu para alavancar ainda mais a indústria dos “caixões de segurança”.

Mas o conto de Poe mostrava que, apesar de toda a racionalidade da ciência do século XIX, a razão continuava inútil diante do imponderável e do acaso.

O conto foi adaptado ao cinema por Roger Corman em Premature Burial, 1962 (dentro de uma trilogia de adaptações de Poe), registrando a mudança de sensibilidade: agora, a tafofobia surge num conto noir típico do espírito do pós-guerra: relações humanas marcadas pelo cinismo e desconfiança – um golpe idealizado pela esposa para enterrar vivo o protagonista.

Outra adaptação no cinema foi Enterrado Vivo (Buried, 2010), de Rodrigo Cortés e estrelado por Ryan Reynolds. Agora a sensibilidade no século XXI é outra: como um motorista de caminhão terceirizado no Iraque, enterrado vivo por terroristas islâmicos, se vê em situações non sense decorrentes das engenharias administrativas e de comunicações – p. ex., em desespero enfrentando, pelo celular, as típicas situações de centrais de atendimento ao consumidor: disque um para..., disque dois para... Enquanto a bateria descarrega rapidamente.

Oxigênio (2021), co-produção França e EUA, dirigido por Alexandre Aja e estrelado por Mélaine Laurent (Bastardos Inglórios), é uma narrativa com ecos do conto de Poe ao explorar ainda de forma mais intensa a tafofobia, muito mais do que Enterrado Vivo.



Dessa vez o caixão foi substituído por uma câmara criogênica e o espírito do tempo é totalmente outro: filmado em julho de 2020, reflete claramente todos os tropos de um thriller da época de pandemia – o isolamento, perda, futuro incerto, o oxigênio que se esgota e uma pandemia que pode levar a humanidade à própria extinção.

Oxigênio também revela quanto a crise global da pandemia vem impulsionando a ideologia Elon Musk que atualmente impregna nove em cada dez produções de ficção científica – pelo menos no mainstream disponível nas plataformas de streaming como Netflix e Amazon Prime Video.

A ideologia Elon Musk pode ser sintetizada em três movimentos: 

(a) o planeta ou a humanidade estão à beira da extinção pelos cataclismos mais variados - ambiental, pandêmico, queda de asteroide, a ameaça das máquinas ou da Inteligência Artificial... às vezes Musk sugere que vivemos na Matrix e somos prisioneiros em um gigantesco videogame; 

(b) quem terá todas as soluções serão cientistas de fundações privadas, mantidas por bondosos e idealistas milionários, que de forma abnegada ajudarão a NASA, OTAN, Pentágono e agências espaciais europeias... russos e chineses estão fora, por razões óbvias; 

(c) além da Terra, devemos abandonar a própria linguagem que estrutura nossos pensamentos e fazermos um upgrade da mente humana através do “NeuralinK” (empresa de Musk que já atrai a atenção de gigantes como Facebook), criando uma interface bio-eletrônica definitiva entre mente humana e a “nuvem” da inteligência artificial – transferir os impulsos químicos dos nossos pensamentos diretamente em código binário. A utopia tecnognóstica.

Edgar Allan Poe encontra-se com Elon Musk em Oxigênio.




O Filme

Acompanhamos o desempenho impressionante de Mélanie Laurent que é o único personagem real do filme, que interage com a voz de uma IA, os flashbacks das suas memórias e eventuais conversas telefônicas mediadas pela IA de uma câmara criogênica.

Laurent interpreta Liz Hansen, uma médica e pesquisadora que desperta em uma câmara criogênica sem ter a menor lembrança de como chegou lá. Na verdade, suas memórias são inconsistentes, aumentando ainda mais a sua confusão. O que só em ampliada com as sensações tafofóbicas – alucinações de ratos invadindo a câmara, provenientes das memórias de alguma experiência terrível e indeterminada em laboratório com os roedores como cobaias.

No início, ela nem tem certeza de seu próprio nome, ou de sua formação profissional ou pessoal. Conforme essas memórias começam a se infiltrar, ela se comunica com um computador de bordo chamado MILO (voz de Mathieu Amalric), que às vezes soa como uma versão mais simpática do HAL-9000, principalmente quando faz projeções sobre as chances de sobrevivência de Hansen. A câmara está perdendo oxigênio rapidamente. Liz precisa descobrir quem ela é, por que está lá e como consertar sua situação de pesadelo. Não é muito diferente de Enterrado Vivo e 2001: Odisseia no Espaço.

O filme se desenrola como um mistério em que a vítima tem que fazer as perguntas certas para descobrir como salvar sua vida. Ela tem um supercomputador à disposição, o MILO, mas é um sistema que só responde - não pensa por si mesmo. Ela não pode simplesmente perguntar a MILO o que está acontecendo. Ela tem que fazer as perguntas certas para saber por que está ali e como pode escapar. 

Por que ninguém respondeu ao sinal de socorro do MILO? Por que ligações para casa e autoridades parecem não a levar a lugar algum? Por que ela nem consegue se lembrar de seu próprio passado, a não ser em imagens fugazes? 




Como o filme inteiro se passa no interior da câmara (a não ser pelas sequências de flashback), o diretor Alexandre Aja exige muito de Laurent. E a atriz não só corresponde como vai além - percorre toda uma gama de emoções, do medo à raiva, à tristeza e ao pânico fóbico. Laurent oferece o que será facilmente uma das melhores performances de 2021. Ela é perfeita em uma performance na qual basicamente só usa seu rosto e sua voz.

Imortalidade tecnognóstica – Alerta de Spoilers à frente

Desde que o cientista da NASA, Robert Jawstron declarou, em 1984, que “um dia um cientista será capaz de retirar o conteúdo da sua mente e transferi-lo para um computador”, ao lado da publicação, no mesmo ano, do livro “Necromancer” de William Gibson (marco do cyberpunk descrevendo a interface bioeletrônica através de implante neurais e microbiônicos), o sonho da imortalidade tecnognóstica tomou conta do imaginário tecnológico.  

Por trás das gigantes tecnológicas e de milionários como Elon Musk, há uma verdadeira “religião das máquinas” na qual o homem estaria livre da fragilidade carnal através de uma consciência descorporificada, demonstrando uma motivação mística cuja transcendência não seria mais espiritual, mas tecnológica.

O imaginário de projetos como a Neuralink, de Elon Musk, de vivermos em comunhão não mais com Deus mas com a nuvem de uma IA está explícito em Oxigênio. Talvez com uma proposta não tão radical quanto a tese da Singularidade, dominante no Vale do Silício – de fazermos um upload direto das nossas mentes para o céu da informação para vivermos a vida eterna.




Oxigênio é uma produção francesa. Por isso, talvez o roteirista Christie LeBlanc seja inspirado pelo ethos da cultura filosófica francesa, em particular da fenomenologia francesa de Merleau-Ponty, por exemplo. 

No filme, a humanidade está à beira da extinção por uma pandemia global. A grande descoberta da cientista criogênica Elizabeth Hansen é a transferência das memórias a clones que serão despachados para um exoplaneta distante.

As nossas memórias seriam nada mais do que impulsos químicos que ocorrem no corpo em reação às nossas experiências, codificadas na forma de “memória muscular”. Se um clone estimular músculos originais, as memórias serão despertadas – a consciência seria despertada em um novo corpo, garantindo a nossa imortalidade. Nossas memórias transformadas em dados seriam revertidas em experiência no corpo de um clone.

 Pelos menos Oxigênio difere de Musk e Jawstron em um ponto: a consciência não é descorporificada, mas precisa de um corpo para ser transformada em experiência e sentido. Sem a substancialidade corporal, nossa consciência não existiria: seria apenas dados armazenados num “polímero líquido e arquivados”, como descreve o filme.

Por isso, em Oxigênio o imaginário não tão “duro” ou “maquínico” quanto a ideologia da Singularidade do Vale do Silício: a consciência ainda precisará de um corpo porque, afinal, precisamos nos amar – como revela o final feliz do filme.

Porém, a ideologia Elon Musk está pulsando em Oxigênio: nossas vidas estão nas mãos dos cientistas e de grandes corporações que serão os provedores das nuvens de IA na qual alcançaremos a imortalidade. Como em todo discurso messiânico e religioso, estão por trás as novas formas de controle social.


 

Ficha Técnica 

Título: Oxigênio

Diretor: Alexandre Aja

Roteiro: Christie LeBlanc

Elenco: Mélanie Laurent, Mathieu Amalric

Produção: Getaway Films, Wild Bunch International Sales

Distribuição:  Netflix

Ano: 2021

País: França/EUA

 

 

Postagens Relacionadas


Com Neuralink, Elon Musk quer privatizar a mente humana com interface bio-eletrônica



“Senhor das Moscas”, Rousseau e Elon Musk vão para o espaço em “Voyagers”



Geografias interiores: cartografias e topografias da mente



Jaron Lanier e a religião das máquinas do Vale do Silício


 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review