sábado, setembro 30, 2017
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Depois de explorar as mazelas do sexo e
da vida, a última fronteira da TV é a morte. Mas não a das vítimas, mas
daqueles que querem dar cabo das suas próprias vidas. Depois de décadas de
críticas e sátiras cinematográficas ao gênero televisivo do reality show, “Essa
é a Sua Morte” (2017) evoca a tendência atual do “Wokesploitation” – chamar a
atenção das injustiças da mídia e sociedade por meio da hiper-violência e muito
sangue, como na franquia “Uma Noite de Crime”. Mas é um reality show sobre
suicidas endividados através do viés “camp”, “trash” como fosse uma típica “soap
opera” norte-americana. Um filme que vai além da crítica ao reality show:
mostra a fase terminal da TV, agora obcecada em procurar de forma tautista “a
realidade do real” numa sociedade na qual a morte se tornou mais lucrativa do
que a vida, seja no sistema econômico quanto no político.
O gênero televisivo reality show já foi
desconstruído e virado ao avesso pelo cinema, desde o clássicos gnósticos Show de Truman e EdTV que suscitavam discussões espirituais e existenciais.
Porém, o século XXI a tendência foi a
desconstrução a partir do viés chamado “wokesploitation”: despertar a
consciência crítica do espectador para as injustiças da indústria do
entretenimento através da hiper-violência, sangue e tripas – forçar o
espectador a abrir os olhos. Mas, paradoxalmente, oferecendo ao mesmo tempo o
prazer voyeurista que é a essência do reality show.
Esta é a
Sua Morte (This is Your Death, aka The Show, 2017), dirigido pelo vilão
“Gus” da série Breaking Bad Giancarlo
Esposito, incorre nesse mesmo paradoxo. Entretanto, a novidade que Esposito nos
entrega é uma wokesploitation num
viés camp (estética baseada na ironia
kitsch, no exagero e numa proposital vulgaridade), trash, com uma linguagem de câmera e performance dos atores como
fosse uma grande soap opera – a
telenovela norte-americana. O que é reforçado pela estética da fotografia de
Paul Mitchnik, que passou a maior parte da sua carreira fazendo filmes para TV.
Como um filme camp, o próprio título do filme guarda uma ironia que talvez
somente aqueles que viveram o suficiente a história da TV vão perceber: o
título faz um trocadilho com um dos primeiros reality shows da primeira idade
de ouro da TV, o programa This Is Your
Life (1952-1961) – criado e apresentado por Ralph Edwards, foi o primeiro
programa de TV forjado para criar intimidade com o espectador. Celebridades ou
pessoas comuns (que de alguma forma contribuíram com sua comunidade) eram
surpreendidas no show ao vivo com uma apresentação dos detalhes das suas vidas,
contadas por parentes e amigos.
Esse trocadilho do título, ao lado da linha de
diálogo “eu quero mostrar a realidade do real!” confessada ansiosamente pelo
protagonista a certa altura do filme, mostra que Esta é a Sua Morte vai muito além da discussão do reality show –
Esposito pretende discutir o esgotamento atual do próprio formato da televisão,
pelo menos da TV aberta comandada pelos níveis de audiência.
A passagem de “This Is Your LIFE” para
“This Is Your DEATH” mostra o final tautista (tautologia + autismo) de uma
mídia que parece devorar a si mesma, tão autocentrada e incapaz de mostrar o
real de forma sincera e honesta que, depois de explorar a vida e o sexo
restaria a última fronteira: a morte – um reality show com pessoas dando cabo
da própria vida ao vivo.
E o sintoma de uma sociedade na qual a
morte se tornou mais lucrativa do que a vida, seja no sistema econômico quanto
no político.
O Filme
Os créditos iniciais do
filme são entrecortados com cenas de um desastre ocorrido no episódio final do
reality show Casei com um Milionário.
Restando duas finalistas, o milionário em questão escolhe uma delas para ser
sua esposa. Terminando com a vice-campeã rejeitada disparando uma arma contra o
homem antes de virar a arma para si mesma, matando-se ao vivo e em rede
nacional.
Para o galã apresentador
(propositalmente caricato com seu “gel-hair”) Adam Roger (Josh Duhamel), é o
momento da chamada para o despertar no dia seguinte da tragédia: no programa “Morning
Show EUA”, apresentado com um sorriso de porcelana por James Franco, Adam
desabafa ao vivo as afrontas dos jogos televisivos – colocar um contra o outro
pessoas endividadas edesesperadas para
a emissora ganhar audiência e muito dinheiro.
O que lembra bastante o
clássico de Sidney Lumet Network: Rede de
Intrigas (1976) no qual um apresentador de telejornal ameaça se matar ao
vivo gritando “Estou louco como o demônio, e não aguento mais isso!” – sobre o
filme clique aqui.
Depois desse desabafo ao
vivo, Adam se acha acabado para a TV, volta para casa e encontra sua irmã
Karina (Sarah Wayne Callies), uma assistente de enfermagem, dando-lhe os
parabéns pela atitude. Chamado pela executiva Ilana Katz (Famke Janssen) para
uma reunião no dia seguinte com a cúpula da emissora, Adam acredita que será
demitido e carreira na TV terminada.
Mas, para sua surpresa,
descobre que em vez de demitido é apresentado para uma nova produtora
chamada Sylvia (Caitlin Fitzgerald) para desenvolverem um novo reality show no
qual pessoas pobres e com intenções suicidas sejam encorajadas a dar cabo de si
mesmas ao vivo.
Um advogado dá o suporte jurídico
necessário: a rede não poderia ser responsabilizada, desde que provasse que não
estimulou aos atos suicidas – apenas disponibilizou os meios, sem disparar o
gatilho.
Inebriado pela sua tomada de
consciência, Adam pretende conciliar sua nova “consciência crítica” com os
propósitos de lucro dos executivos da rede: “não quero fazer um show que afirme
a morte. Quero que as pessoas morram por um propósito maior...”, racionaliza
Adam Roger em sua epifania.
Com o programa “Essa é a Sua
Morte”, Adam vira uma espécie de tele-evangelista da morte, com a missão de “acordar
a nação” mostrando pessoas desesperadas, endividadas ou com doenças terminais
trocando a sua vida por um futuro melhor para seus familiares – em um jogo
mórbido, os telespectadores fazem doações para o suicídio com melhor
performance.
Paralela a essa estória,
acompanhamos as desventuras de Mason Washington (interpretado pelo próprio Esposito),
faxineiro da emissora e vivendo de diversos bicos mal remunerados. Aos 55 anos,
já teve seus melhores dias, mas perdeu o emprego com a crise econômica. E hoje,
endividado, está prestes a perder sua casa para o banco e não consegue mais
sustentar sua família.
Fica óbvio que os destinos
de Mason e do tele-evangelista da morte Adam Roger ocasionalmente se chocarão.
Principalmente porque para Roger, a gincana dos suicídios acaba se
transformando em um fim em si mesmo: obcecado pela audiência para continuar
“despertando” o público para a realidade da nação, Roger vai inevitavelmente
ultrapassar a linha da legalidade.
Tautismo da Neotevê
“Mostrar a realidade do
real!”. Essa exortação angustiada de Adam Roger é o sintoma da fase terminal da
TV atual, a fase da metástase do que o pesquisador francês Lucien Sfez chamava
de “tautismo”: o fechamento operacional de um sistema autocentrado, tautológico
e isolado do mundo exterior – SFEZ, Lucien, Crítica
da Comunicação, Loyola, 1994.
Depois da primeira fase
áurea (dos tempos do Esta é a Sua
Vida) no qual a TV pretendia ser uma janela aberta para o mundo, sua
hipertrofia midiática fez se converter em “Neotevê” (Umberto Eco) – uma
televisão mais preocupada em falar de si mesma com muita metalinguagem e making of – clique aqui.
Esta
é a Sua Morte mostra a atual fase
terminal: após tanta metalinguagem e de apresentar para o público o artifício
por trás de câmeras e apresentadores, tardiamente a TV volta a lembrar que
existe um mundo exterior, no deserto do real. Porém, o tautismo já está em
metástase: a “realidade do real” está condenada a ser convertida pela realidade
aumentada do show e entretenimento televisivos.
Mas por que a realidade
aumentada através da morte? Em uma das linhas de diálogo de Adam Roger ainda
consciente (antes de ser absorvido pela lógica mercadológica do show) dispara: “todos estão lucrando com a miséria dos outros... As igrejas lucram,
os bancos lucram, as companhias de fast food lucram... jornalistas como você
lucram!”.
Sistema tanático
Giancarlo Esposito e a dupla de roteiristas Noah Pink e Kenny Yakkel estão atentos de que a morte não está apenas no sensacionalismo televisivo. Há um
sistema tanático em funcionamento na sociedade, no qual a TV é mais uma peça da
engrenagem.
Uma sociedade essencialmente
tanática (de Thanato, na mitologia grega a personificação da morte que reinava
no mundo inferior dos mortos) como denunciava o pesquisador alemão Herbert
Marcuse no seu livro clássico Eros e
Civilização – uma sociedade dominada pela pulsão de morte, impulso
instintivo que busca a morte e destruição.
Uma sociedade baseada em um
modo de produção essencialmente mortal e negativo: o endividamento produz
continuamente riqueza para o sistema financeiro, o dinheiro (riqueza)
substituído pelo crédito (capacidade de endividamento), morte e violência como
produtos de entretenimento, incitamento da violência urbana para justificar
sistemas policiais repressivos.
Política e Economia pensados
na sua forma mais negativa, mas não em um sentido moral – em sentido de um viés
tanático na sua forma invertida: riqueza é endividamento, para manter a paz são
necessários guerra e terror, prazer é morte, entretenimento é simular a
excitante proximidade da morte, sexo é estupro ritualizado na mídia, e assim
por diante.
Muito das críticas negativas
feitas a Esta é a Sua Morte talvez
estejam nessa proposital ausência de foco narrativo: ao contrário de Show de Truman (uma crítica filosoficamente séria ao gênero televisivo), Esposito nos mostra uma narrativa ambígua
entre o tom da ironia camp, a
estética de soap opera e insights sérios e críticos sobre a TV e
além.
Ao negar aquilo que mostra
(é simultaneamente wokesploitation e crítica a wokesploitation), Esposito nos
coloca na mesma situação do espectador na série Breaking Bad: tudo pode parecer moralmente negativo (a busca da
redenção familiar pelo protagonista por meio do tráfico de drogas), mas pelo
menos nos mostra que a “realidade do real” não é tão maniqueísta ao ponto de podermos facilmente condenar apenas a mídia, seus executivos e apresentadores.
Thanato e o Mal estão no
próprio funcionamento aparentemente ético e moralmente aceitável da sociedade
inteira.
Ficha Técnica
Título:Esta é a Sua Morte
Diretor:Giancarlo Esposito
Roteiro:Noah Pink, Kenny Yakkel
Elenco: James Franco, Josh Duhamel, Fanke Jamssen, Sarah Wayne Callies,
Giancarlo Esposito, Caitlin Fitzgerald
Produção: Dobre Films, Lighthouse Pictures
Distribuição:The Film Arcade, Lionsgate Home
Entertainment
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Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
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Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>