O tema reality
show já foi virado pelo avesso em filmes e séries, quase se transformando num
sub-gênero. Quando pensávamos que o tema já estava esgotado, eis que surgiu a
web série “The Vault” (2011-2014) demonstrando que o tema ainda tem múltiplas
facetas para serem abordadas. No início “The Vault” parece uma espécie de "spin
off" do clássico “The Cube” (1997): jovens universitários estão na segunda fase
de um inédito reality show na qual cada participante está preso em uma sala
totalmente branca com objetos aparentemente arbitrários (relógios, bicicletas
ergométricas, aquários de peixes etc.). Todas as salas estão no interior de um
imenso cofre, totalmente isolado do mundo exterior. Os participantes devem resolver juntos o enigma em torno do propósito de todos aqueles objetos. “The
Vault” suscita uma reflexão sobre a função social dos atuais reality shows,
híbridos de processos seletivos corporativos: um mix de rito de passagem e
circo romano pós-moderno no qual cristãos agora são jogados contra leões do
próprio psiquismo humano. Série mais uma vez sugerida pelo nosso incansável leitor Felipe Resende.
Ao lado dos curta-metragens, o campo das Web
Séries tem se demonstrado como um ótimo campo de experimentação para cineastas.
Ao longo de três anos, a web série The Vault (2011-2014) mostrou como é
possível com um baixíssimo orçamento e ótimos roteiros, fazer uma instigante e
inteligente narrativa.
A dupla de criadores/diretores Aaron Han e
Mario Miscione cria um argumento que a princípio parece alguma espécie de spin off do clássico de terror e sci-fi
The Cube (1997) sobre prisioneiros vagando em um labirinto de salas assassinas.
No primeiro episódio logo percebemos que
ninguém morre e que na verdade os protagonistas estão em alguma espécie de
reality show televisivo. Na verdade, todos estão na segunda etapa da competição
na qual terão que solucionar um gigantesco quebra-cabeça, cada um isolado salas
todas brancas. Todos comunicando-se entre si mediados por outro competidor que
é o operador que faz as conexões entre os participantes através de um painel de
botões.
Ao contrário da etapa anterior, eliminatória,
nessa etapa de sete dias todos terão que coletivamente solucionar um enigma,
composto por dispositivos e objetos colocados aparentemente de forma aleatória
em cada sala: bicicleta ergométrica, relógios, aquários com peixes, um monte de
biscoitos chineses da sorte etc.
São jovens estudantes universitários, cada um
com sua camiseta que identifica a universidade, com exceção do “operador” com
um discreto moleton. E o detalhe fundamental: todas as salas estão no interior
de um imenso cofre (“The Vault”), totalmente incomunicável com o mundo
exterior, a não ser com breves contatos em áudio com a produção do programa.
“The Vault” e rito de passagem
O argumento da web série The Vault é arquetípico: o rito de passagem, presente em todas as
culturas no qual jovens tornam-se adultos – xamãs, heróis, guerreiros.
Enfrentar os próprios medos, limites físicos e mentais, em ritos que simbolizam
o ciclo da morte e renascimento.
Jovens universitários de prestigiosas
universidades norte-americanas, agora em um moderno rito de passagem: os
reality shows televisivos que emulam aqueles arbitrários testes elaborados por
psicólogos de RH em processos seletivos corporativos.
Se no passado os ritos de passagem tinham um
quê épico (enfrentar ameaças de situações reais), nos atuais assumem um caráter
arbitrário e manipulador: criar dilemas propositalmente desenhados para extrair
o pior da natureza humana. Como se fala em uma linha de diálogo em um dos
episódio de The Vault, o jogo parece simular a si mesmo como um complexo
enigma, quando tudo não passa de explorar lacunas de caráter de cada
participante: compaixão, empatia, coragem etc.
A web série
Situado em 2016, The Vault apresente um reality show saudado como um reality
inovador feito para ofuscar todos os outros. Os participantes estão presos em
um gigantesco cofre dividido em uma série de salas. Em sete dias terão que
coletivamente resolver um quebra-cabeças para ganhar uma enorme quanti em
dinheiro.
Todos despertam com vendas nos olhos, cada um
confinando em sua sala. Henry é a primeira pessoa a receber o “start” da
produção, que se encontra em uma sala com um fone de ouvido e um painel com
dezenas de botões. Através dele, conhecemos Omar, Anne, Eric, Ben e muitos
outros, com Henry tentando moderar as comunicações e tentando estabelecer um
diálogo para tentar compreender o porquê dos enigmáticos dispositivos e objetos
colocados em cada sala.
Eric rapidamente se torna a voz da razão para
Henry, oferecendo conselhos e mantendo-o no caminho certo. Enquanto isso, Anne
está presa na sua sala com mais de cem peixes para alimentar e com comida quase
insuficiente para mantê-los vivos.
Omar passa o seu tempo tentando encontrar
padrões em dezenas de relógios fixados na parede e Ben sente-se levemente
ofendido pela ironia politicamente incorreta da sua situação: ele é um oriental
preso em um sala com um pequeno monte de biscoitos da sorte.
Cada pessoa tem em cada quarto um
quebra-cabeça. E a soma de cada um deles parece se juntar em um enigma maior
que talvez tenha a ver com a própria natureza do Cofre – o que permite voltas e
revira voltas que prendem a atenção do espectador.
Reality shows e processos seletivos corporativos
Certamente a marca dos ritos de passagem
contemporâneos (massificados pelos reality shows televisivos e processos
seletivos corporativos) é a natureza simulatória dos testes, jogos, dilemas e
quebra-cabeças aplicados supostamente para selecionar o jovem o melhor perfil.
Em primeiro lugar, parece que o gênero
televisivo reality show e os processos seletivos corporativos se retroalimentam
com a gameficação, como vimos em postagem anterior sobre o filme El Método – clique aqui. Cada vez mais os ambientes
corporativos criam regras invisíveis que nada têm mais a ver com a capacitação
profissional – eufemismos como “inteligência emocional”, “espírito de equipe”,
“vestir a camisa” etc. São buscados sempre novos traços de personalidade,
traços emocionais, padrões de respostas diante de dilemas e assim por diante.
Dinâmicas de grupo que muitas vezes se
assemelham às tramas de reality shows da TV. A criação de roteiristas de TV e dos
psicólogos de Recursos Humanos parecem manter uma fina sintonia, com apenas uma
diferença: enquanto na TV os espectadores estão diante das telas, na empresas
os psicólogos estão atrás de vidros espelhados.
Assim como as chamadas “pegadinhas” que
animam os programas populares da TV, os games corporativos e dos reality shows
parecem criar situações para num primeiro momento pegar de surpresa o
candidato, para então conseguir arrancar os traços mais profundos da sombra do
psiquismo humano: o instinto de autopreservação, agressividade, perfídia,
frieza, calculismo, ausência de empatia etc.
O mal-estar da civilização e a Sombra
Se no passado, os ritos de passagem possuíam
um profundo senso comunitário, religioso e social (o simbolismo da morte e
renascimento como narrativas para destacar o heroísmo, esperança,
engenhosidade, coragem e destemor), ao contrário, na atualidade são
disruptivos.
Se Freud estiver certo em O Mal-Estar da Civilização, toda a
sociabilidade trata-se de sublimar o profundo mal-estar originado da dicotomia
entre os impulsos pulsionais e a civilização. O que mais tarde a psicologia
analítica de Jung denominaria como Sombra, o arquétipo sombrio do ego – a parte
violenta e primitiva na natureza humana.
A sociabilidade, portanto, seria o resultado
do esforço em sublimar esse império das pulsões na cultura, arte ciência e
religião. Ou, como defendia Jung, a Sombra pode exercer o aspecto positivo de
fornecer a energia responsável pela espontaneidade, criatividade, insight e a
emoção profunda. O papel civilizatório dos ritos de passagem sempre foi esse.
Porém, os ritos midiáticos e corporativos
atuais são perversos e disruptivos: não se trata mais de sublimar ou desviar a
energia para objetivos éticos e moralmente legítimos, mas de transformar em
show para ser quantificado e avaliado para uma performance ótima – a audiência
televisiva ou o lucro corporativo.
Claro que em The Vault os participantes lutam contra os piores sentimentos que
os jogos tentam suscitar – procuram fazer a compaixão e a empatia se sobrepor
ao egoísmo e conflitos estimulados pelos roteirista e produtores do reality
show para alavancar a audiência.
Mas aos poucos vamos descobrindo que a
solução do suposto enigma é o que menos importa – cada prosaico objeto ou
dispositivo colocado nas salas tem muito mais a ver com as fraquezas e temores
de cada um dos participantes.
The Vault é como se
assistíssemos a um circo romano pós-moderno no qual cristãos são jogados contra os
leões do próprio psiquismo humano.
Ficha Técnica
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Título: The Vault (web série)
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Diretor: Aaron Hann, Mario Miscione
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Roteiro: Aaron Hann, Mario Miscione
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Elenco: Shane
Spalione, Alexia Dox, Adam Spelbaum, Carlo Maghirang,
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Produção: Vault Media
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Distribuição: YouTube
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Ano: 2011-2014
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País: EUA
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