Amor, casamento, rotina, tédio. Uma série sobre amor e a rotina da vida conjugal onde duas pessoas casadas e entediadas tentam não ser chatas uma com a outra. Até o momento em que essa tragédia banal se transforma numa questão cósmica entre a vida e o pós-morte. Essa é a série da Amazon “Forever” (2018-), uma estranha “quase-comédia” sobre pessoas absolutamente banais: e se você decidisse transformar a sua vida em tudo aquilo que será, como você continuaria encontrando alegria na banalidade familiar, dia após dia, ano após ano? Será que até mesmo depois da morte? E se o inferno for mesmo a repetição, como fala Stephen King, onde até mesmo os segredos do pós-morte são tão banais quanto a rotina entediante dos vivos?
“Todos estão tentando chegar no bar/ O nome do bar é chamado de Céu/ a banda do Céu toca minha música favorita/ O Céu é o lugar onde nada acontece/ Quando esse beijo terminar/ ele irá começar de novo/ Ele não será nada diferente/ ele será exatamente o mesmo/ É difícil imaginar que nada mais / Poderia ser mais excitante, poderia ser tão divertido”.
(“Heaven”, Talking Heads)
(“Heaven”, Talking Heads)
As imagens e conceitos em torno da morte e do morrer certamente estão profundamente moldados por nossos arquétipos e símbolos construídos por séculos pelas religiões e filosofias espiritualistas, místicas ou esotéricas.
Medo, terror, fascínio, curiosidade e mistério cercam esse momento da finitude quando finalmente tomamos consciência que nossa trajetória caminha para uma “conclusão” – são esses sentimentos que impulsionam esses símbolos e arquétipos por milênios.
Hoje, essa simbologia arquetípica se infiltra na Ciência, nas chamadas Experiência de Quase-Morte (EQM) – conjunto de experiências ou sensações associadas a situações de morte iminente: sensação de paz interior, de flutuar acima do corpo físico, visão de seres espirituais, viajar num túnel com intensa luz no fundo etc.
De qualquer forma imaginamos o morrer um momento grandioso, conclusivo, síntese, julgamento, passagem para uma dimensão mais grandiosa. Algo assim muito ligado aos sistemas escatológicos das religiões salvacionistas – de “Escatologia”, parte da Filosofia ou Teologia sobre o estudo do fim.
Mas, e se for ao contrário? A morte como um momento de extrema banalidade. Tão banal que, ao chegarmos do “outro lado”, ficaríamos de queixo caído com a descoberta de que todas as expectativas eram ilusórias. De que a morte é uma decepcionante continuação da rotina e problemas que julgávamos seriam deixados para trás. Nada de glorioso ou, muito menos, de punitivo como umbrais para os espíritas ou inferno para os católicos.
A série Amazon Forever (2018-) é uma quase comédia, ao mesmo tempo engraçada e estranha que no tempo que antecedeu seu lançamento foi cercada de mistério. Por muito tempo sem nome, apenas sabia-se apenas que seus co-criadores eram Alan Yang (Master of None) e Matt Hobbard (Um Maluco na TV – 30 Rock). O trailer revelava muito pouco sobre o tema. E quando chegaram os oito episódios da primeira temporada, as sinopses pouco relevam sobre a premissa da série.
De fato, a surpresa é um dos pontos fortes dessa série. Por isso, fazer uma análise de Forever é complicada porque está na fronteira da impossibilidade de não cometer spoilers. Principalmente sobre a premissa principal da série: amor, casamento, rotina e... morte e a vida após morrer.
Em tese é uma comédia sobre amor, a chatice da rotina conjugal e mudanças – se você decide transformar a sua vida em tudo aquilo que será, como você continuará encontrando alegria na banalidade familiar, dia após dia, ano após ano?
A dupla de protagonistas, Maya Rudolph e Fred Armisen (vindos do programa de humor Saturday Night Live) dão o tom de estranheza necessária: mesmo quando estão interpretando pessoas absolutamente normais, há algo de estranho em sua performances, como se anormalidade fosse apenas o cenário de algo surreal – as constantes reviravoltas emocionais do casal na série, nessa vida e na morte.
Mas principalmente a surrealidade e estranheza de Forever vem de uma premissa simples: e se a morte não for nada daquilo que imaginávamos?
A Série
Forever define o seu tom e os termos de casamento entre June (Maya Rudolph) e Oscar (Fred Armisen) logo na sequência inicial através de uma montagem da vida do casal sob a trilha de cool-jazz de Miles Davis: eles se encontram, se apaixonam, se casam e vão morar juntos, escovam os dentes, e vão pescar, pescar e pescar sempre na mesma cabana à beira do lago. Uma vida agridoce e sem graça, num efeito visual em travelling, sem mudar de direção assim como a própria vida modorrenta de June e Oscar.
É o ritmo da vida de um casal que parece que se aposentou prematuramente, embora ambos trabalhem: ele é dentista e ela trabalha num escritório corporativo.
Oscar adora cozinhar, mas faz sempre o mesmo cardápio falando sempre das mesmas férias na cabana à beira do lago. Ele evita discussões de relacionamentos com sua passividade agressiva; e ela está entediada, mas é incapaz de fugir dessa espécie de gaiola confortável permeadas por brincadeiras e debates infantis como, por exemplo, qual a melhor coisa para se fazer em 30 minutos?... o sexo entra na lista do “debate”. Mas ambos concordam: 30 minutos seria tempo demais...
De certa forma, June e Oscar têm idiossincrasias que se encaixam numa combinação perfeita, como os dois lados de uma moeda. Eles são acumuladores. Não de coisas, mas de pequenos rituais e manias que transformam a vida conjugal num transtorno obsessivo compulsivo.
A morte é o sismógrafo dos vivos – Alerta de spoilers à frente
Até o momento que June consegue convencer Oscar de mudar um pouco as coisas - passar as próximas férias numa estação de esqui. Essa será a guinada do tom de Forever quando as coisas caminharão para uma espécie de Matrix pós-morte, com irônicas alusões ao novo clássico Ghost: do Outro Lado da Vida, 1990.
Como um iniciante no esqui, Oscar tem um encontro mortal com uma árvore. O luto substitui o tédio de June, mas ela acaba encontrando um novo emprego e é energizada pela possibilidade de uma experiência completamente nova. Mas, outra vez, um acidente banal – dessa vez arrancando June da rotina de um típico subúrbio de classe média californiana.
Será que do “Outro Lado” June encontrará excitantes respostas para todos os segredos da humanidade. Não! Tudo continuará exatamente como deixou em sua vida: reencontra Oscar em um outro subúrbio ensolarado em que nunca chove. Ele segue a mesma rotina que recebe June de braços abertos... com o mesmo cardápio e a mesma cabana à beira do lago.
É claro, com algumas especificidades do mundo pós-morte: ocasionalmente, se deparam com os chamados “atuais” (os vivos) – ao invés de assombrá-los, são os vivos que os assombram.
Em postagem anterior discutíamos como as representações da vida pós-morte no cinema são um verdadeiro sismógrafo do que se passa entre os vivos aqui na Terra. As sucessivas mudanças das representações cinematográficas do céu e da morte ao longo das décadas parecem refletir ansiedades culturais, avanços tecnológicos e importantes fatos históricos – clique aqui.
Apesar das representações do céu e da morte se alterarem de acordo com o imaginário de cada época, uma fórmula básica se mantém, a partir da qual se criam diversas narrativas e variações: personagem principal morre, chega no “céu” (algum espaço intermediário entre a Terra e o céu, limbo, ante-sala celestial ou a própria plenitude celeste etc.) e é submetido a algum tipo de julgamento (revê sua própria vida, mentores ou entidades superioras o julgam, retorna para a vida para uma “segunda chance” etc.).
Desde Amor Além da Vida (What Dreams May Come, 1998), a existência pós-morte deixou de ser um local (céu ou inferno) para se tornar numa miríade de “céus”: a representação da existência pós-morte passou a ser mais “plástica” e solipsista - os céus são criados por projeções psicológicas dos personagens a partir dos seus sonhos, desejos e sentimentos.
Forever mantém essa naturaliza solipsista dos “céus” pós-modernos. A novidade é que não há mais nada de espetacular como em Amor Além da Vida - mundos plásticos criados pela culpa, desespero ou virtude, ou infernos ou paraísos íntimos.
Forever reduz tudo à banalidade, a uma linha de continuidade entre o mundo dos vivos e dos mortos: assim como entre os vivos reina o tédio e a monotonia do dia-a-dia, a morte não é uma libertação. Seja por recompensas, punições, bem ou mal. Há uma estúpida continuação, nada a aprender, nenhum Deus, anjos ou seres iluminados para nos julgar ou ajudar.
A série vai ao encontro de experiências pós-vida muito relatadas pela literatura espírita. Principalmente na série Nosso Lar, de André Luis e psicografada por Chico Xavier, há vários episódios em que pessoas despertam do outro lado acreditando ainda estarem vivas e tentam retomar suas rotinas como se nada tivesse acontecido. Claro, que sempre algum mentor espiritual entra em cena para explicar o que está acontecendo.
Em Forever, não há nada disso. Apenas uma espécie de matrix, um novo condomínio suburbano de classe média limpo e perfeito, onde cada um repete a sua rotina que acabou de deixar na Terra.
Sim, Forever é uma série sobre amor e a rotina da vida conjugal onde duas pessoas casadas e entediadas tentam não ser chatas uma com a outra. Porém, com o passar dos episódios, essa banalidade terrena da vida a dois é elevada a uma questão cósmica: e se não houver um outro lado? E se não houver redenção?
Como falava David Byrne dos Talking Heads, na música “Heaven”, e se no céu nada for diferente? For apenas um bar no qual toca sempre a mesma música e nada acontece?
Ficha Técnica
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Título: Forever (série)
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Criadores: Matt Hubbard, Alan Yang
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Roteiro: Matt Hubbard, Alan Yang
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Elenco: Maya Rudolph, Fred Armisen, Catherine Keener, Julia Ormond, Peter Weller
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Produção: Amazon Studios, NBC Universal Networks
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Distribuição: Amazon Prime Video
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Ano: 2019
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País: EUA
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