Trinta anos vivendo a rotina de a cada noite se hospedar em um hotel fazendo críticas para guias de turismo. Vivendo numa torre de marfim de quartos de luxo, minibar e toalhas sempre limpas, Ludwig tem uma vida monótona que acabou se confundindo com o próprio trabalho. Mas algo se perdeu: a experiência de ser apenas um turista e saber que um dia voltará para sua casa. Mas onde está o lar de Ludwig? Ele tornou-se uma espécie de exilado de si mesmo. Esse é o curta “Home Suite Home” (2015) do holandês Jeroen Houben que dá mais uma contribuição à mitologia que o cinema construiu em torno de hotéis, do Overlook de “O Iluminado” de Kubrick ao “Grande Hotel Budapeste” de Wes Anderson. Dessa vez, o hotel como um microcosmo da gnóstica condição humana de exílio.
“Massas de homens levam uma vida inteira em
desespero silencioso”, disse certa vez o filósofo e poeta norte-americano Henry
Thoreau. Foi inspirado nessa frase que o diretor holandês Jeroen Houben
produziu o curta Home Suite Home
(2015), uma tragicomédia sobre a existência de um inspetor/crítico de hotéis.
O protagonista Ludwig
há 30 anos viaja pelo mundo, todas as noites hospedado em um hotel diferente.
Em um gravador ele registra suas impressões, críticas e acertos de cada hotel.
O que para todo mundo são apenas resorts de luxo, para Ludwig é a sua realidade
cotidiana: o minibar, os pequenos sabonetes, as toalhas sempre limpas, a
chamada telefônica da portaria para acordá-lo etc. Em sua espécie de vida em
uma torre de marfim, Ludwig atravessou anos de uma monótona rotina, sempre
fazendo críticas ácidas sobre cardápios, vinhos e serviços de quarto.
O curta começa com uma
interessante digressão sobre a função dos quadros nas paredes, como “janelas
abertas para o mundo”, pequenos momentos congelados no tempo por onde podemos
dar uma breve escapada da nossa rotina. Percebemos que Ludwig vive um desespero
silencioso que parece mitigar fazendo críticas irônicas e tornando-se cada vez
mais exigente em cada hotel onde se hospeda.
Mas tudo começa a
mudar em um hotel em Paris: ele conhece uma jovem colega de profissão 20 anos
mais jovem, Stella. Jovem e espirituosa, trará à tona um Ludwig romântico do
passado, quando ainda se sentia como um turista longe de casa.
Hotéis no cinema
Do isolado hotel
Overlook do filme O Iluminado de
Kubrick à grandiosidade decadente do Grande
Hotel Budapeste de Wes Anderson, o cinema tem uma longa tradição de
narrativas centradas nessas residências transitórias para turistas. No cinema,
deixam de ser meros hotéis, para se tornarem um microcosmo da condição humana.
Por isso Home Suite Home é um título com irônico trocadilho:
Ludwig sente-se como um estrangeiro em ambientes aparentemente familiares. Seu
“lar doce lar” não está em nenhum hotel mas ao mesmo tempo são as suítes onde pernoita. Mas o seu verdadeiro lar ficou em algum lugar que foi perdido nos
30 anos de trabalho sobre crítica de hotéis.
O curta tem um
evidente tema gnóstico: a jovem Stella (Sophia?) que o despertará da sua
condição de um silencioso desesperado que esqueceu onde está o seu verdadeiro
lar. Ludwig quer voltar a sentir a condição de turista, aquele que é viajante
mas sabe que, um dia, retornará para o seu verdadeiro lar.
Hotéis são bem
elaboradas cenografias que tentam reconstituir o charme e requinte de épocas
que se passaram. Mesmo os resorts contemporâneos pretendem trazer para o mundo
real as imagens paradisíacas de filmes e cartões postais. Por isso, a vida de
Ludwig se assemelha a de Truman no filme O
Show de Truman, onde Jim Carrey vivia um prisioneiro alheio a uma
gigantesca cenografia que o cercava.
O Estrangeiro
Talvez a condição de
Ludwig seja ainda pior: sua profissão é avaliar os efeitos e serviços
cenográficos dos hotéis. Como Truman, ele não trabalha, mas vive 24 horas uma
vida que se confunde com o próprio trabalho. Mas ao contrário de Truman, Ludwig
tem consciência disso e acaba se acomodando à gaiola dourada. Seu breve
escapismo está nos quadros das paredes ou na ironia das críticas ácidas a
cartas de vinhos e cardápios dos restaurantes.
Ludwig é o típico
personagem gnóstico do Estrangeiro: aquele que vive em ambientes familiares,
mas que, por algum motivo, sente o mal estar do estranhamento e da alienação.
De crítico ele anseia
retornar à condição de turista. É claro que essa condição na atual indústria do
turismo não possui nenhum valor crítico. O próprio turista se torna prisioneiro
do pacote adquirido na agência de turismo e também do impulso de querer ir para
lugares que apenas confirmem as fotos do guia que já carrega. Reforçado, na atualidade, pela
necessidade da sensação de imersão nos “lugares turísticos” com as
indefectíveis selfies.
Ludwig anseia pela
condição de se tornar, por assim dizer, um turista gnóstico: aquele que viaja
por esse mundo, mas sabe que não pertence a ele. Seu lar doce lar não é uma suíte, está em outro
lugar.
Talvez seja por isso
que, mesmo depois de viajarmos para lugares sensacionais e exóticos, nos
sentimos felizes ao retornar para o nosso lar. Como apresenta uma linha do
diálogo do curta “você nunca saberá o que procura”.
Talvez Dorothy no
filme O Mágico de Oz tenha razão quando diz: “não há lugar melhor do que o
nosso lar”. Essa sensação após uma viagem sempre trás essa reminiscência
nostálgica gnóstica – o fato de sempre estarmos com saudades de algo. E é essa
sensação que a bela Stella/Sophia ajudará a despertar no protagonista Ludwig.