Em seu livro “Minima Moralia”, o filósofo Theodor Adorno tentava entender em termos psicológicos o porquê de as pessoas experimentarem a ausência de medo em grandes choques. Ao contrário das experiências em escala individual onde o medo está presente, nas grandes catástrofes inesperadas em escala coletiva muitas vezes as pessoas relatam que, surpreendentemente, ficaram livres do medo.
Em grandes catástrofes coletivas é como se o terror generalizado não se voltasse especificamente contra ela mas afetasse os habitantes de uma cidade, como membros de uma grande associação. Para Adorno, é como se, assim como o corpo, o organismo psíquico estivesse ajustado tão somente a vivências de uma ordem de grandeza que corresponda à escala individual. Fora dessa escala, é como se experimentássemos apatia e frieza diante de um perigo ou tragédia incomensurável – leia ADORNO, Theodor, Mínima Moralia – clique aqui.
É exatamente sobre essa intuição de Adorno que trata o filme francês A Noite Devorou o Mundo (La Nuit a Dévoré le Monde, 2018), um olhar inovador no universo dos inúmeros filmes e séries sobre zumbis. Que pode ser sintetizado na declaração do protagonista a certa altura do filme: “Morto é a norma agora. Eu sou aquele que não é normal”, referindo-se a todos ao redor terem misteriosamente se tornado zumbis da noite para o dia,. Menos ele.
Ao contrário dos filmes sobre apocalipse zumbi nos quais o foco recai sobre o coletivo (hordas de zumbis, perseguições e lutas épicas pela sobrevivência), em A Noite Devorou o Mundo a narrativa acompanha o isolamento do protagonista, a progressiva normalização psíquica da catástrofe e, por fim, a solidão.
Nunca subestimemos a capacidade a capacidade dos franceses de encontrar um significado profundo em algo tão recorrente no cinema quanto as invasões zumbis. Por exemplo, no final da década de 1960, foi um crítico da célebre revista “Cahiers du Cinéma” que conseguiu enxergar um profundo subtexto social e político que os americanos negligenciaram no seminal “A Noite dos Mortos Vivos, de George Romero – racismo, preconceito e luta de classes: um protagonista negro tinha que lidar com uma horda de zumbis.
É também na França que também temos um outro olhar criativo para o tema: é o filme (e mais tarde série de TV) Les Revenants (2004): Mortos retornam inexplicavelmente do além-túmulo em uma pequena cidade. Eles não querem comer cérebros e nem matar. Voltam calados, como memórias vivas e indesejáveis, com um subtexto político sobre o problema dos refugiados e imigrantes na Europa.
A noite Devorou o Mundo utiliza todos os tropos familiares e faz referências a muitos filmes famosos do gênero. Porém, muda o foco da narrativa para se concentrar na vida interior do protagonista diante de uma catástrofe incomensurável.
Aliás, o filme prima por um minimalismo abrangente. Nada sabemos das razões por que da noite para o dia o apocalipse zumbi se abateu sobre Paris – ou será no mundo? Não sabemos. E o próprio protagonista é apresentado a nós como um mistério que o público deve decifrar por meio das suas ações. Apenas acompanhamos a lenta normalização psíquica diante da catástrofe e a transformação de tudo numa rotina ritualística solitária.
O Filme
Sam (Anders Danielsen Lie) relutantemente comparece a uma festa no apartamento de sua ex-namorada chamada Fanny (Sigrid Bouaziz) em Paris com a única intenção de pegar de volta uma caixa de fitas que ela inadvertidamente pegou quando eles se separaram. Após muitos drinks na festa à espera de que ela falasse com ele e um ferimento acidental na cabeça depois de um encontrão com um participante da festa, ele adormece no escritório nos fundos do apartamento.
Sam acorda no dia seguinte, para abrir a porta do escritório e, atônito, encontrar o apartamento com móveis virados, sangue manchando as paredes e, quando ele finalmente encontra sua ex, metade do rosto dela foi arrancada, enquanto a outra metade se lança para mordê-lo.
Espiando pelas janelas, Sam percebe que as ruas abaixo não são seguras. Enquanto dormia, ocorreu algum evento misterioso apocalíptico que tornou a população numa horda de zumbis crescentes ou poucos sobreviventes sob ataque dos mortos-vivos.
Então ele se encastela dentro do prédio, recolhendo comida e armas de apartamentos abandonados, trancando com segurança em seus apartamentos os mortos-vivos remanescentes.
Ao perceber que ele é o único sobrevivente no prédio no qual fica o apartamento de sua ex-namorada, Sam sobe até o telhado para inspecionar a cidade e procurar ajuda e uma saída. Para seu horror, qualquer sobrevivente que ele vê é rapidamente perseguido pelos mortos-vivos e o prédio fica muito longe dos apartamentos vizinhos para pular.
Desesperado por suprimentos, envolvido pelas crescentes hordas e apenas com sua inteligência para mantê-lo vivo, o que começou como uma noite para recuperar seu passado se transforma em uma jornada para restaurar seu futuro.
Baseado no romance homônimo de Pit Agarmen, é um filme de zumbi incomum, pois se concentra em apenas um homem, que escolhe não ser um herói, mas apenas se esconder do mundo apodrecido e faminto lá fora. O plano de Sam parece míope, mas o mantém vivo.
Ainda assim, com o passar dos dias, a sobrevivência é insuficiente. Para evitar a solidão e a angústia, Sam recorre a suas velhas fitas cassete para se sentir confortável. Ele cria música usando coisas abandonadas, como brinquedos, um gravador, copos e uma esponja úmida. Encontra um kit de bateria em um apartamento e passa a fazer solos, cujo som acaba sempre atraindo mais zumbis à porta do prédio.
Um morto-vivo que ficou preso num velho elevador de gaiola do prédio acaba virando seu animal de estimação com o qual estabelece conversas solitárias para espantar a solidão que o atormenta implacavelmente. Como fez na festa, Sam se isolou do mundo, isolando-se em uma existência de risco mínimo e sem pessoas.
É como se a escala da catástrofe fosse tão gigantesca que o terror e medo passam a ser substituído, primeiro, por uma curiosa euforia. Tal no filme Esqueceram de Mim, no qual o menino Kevin fica eufórico ao ter a casa só para ele. Depois para a ritualização do cotidiano, criando uma também curiosa rotina.
Até a ficha aos poucos começar a cair de que sua estratégia de sobrevivência terá um prazo de validade relativamente curto. E a solidão passa a dar lugar a uma perigosa mistura de alucinação com realidade, com trágicas consequências.
É interessante perceber a atualidade de A Noite Devorou o Mundo. Após assistir ao filme, esse humilde blogueiro acreditava que era mais uma produção do cinema da pandemia, tal a atualidade. Até descobrir a data da produção: 2018.
A narrativa praticamente é uma metáfora da condição de isolamento social e os zumbis como os contaminados dos quais devemos nos afastar.
Outra curiosidade do filme é a opção do diretor em sumir totalmente com os meios de comunicação para reforçar ainda mais a solidão do protagonista e o mistério em torno do porquê do apocalipse zumbi. Simplesmente não há TVs, rádios, telefones ou celulares no prédio de Sam transformado em fortaleza. Não há nenhuma forma de comunicação com o mundo exterior ou alguma mídia para buscar informações sobre os acontecimentos.
Essa é a grande virtude de A Noite Devorou o Mundo: um ensaio sobre o psiquismo individual diante de uma catástrofe incomensurável, lembrando as reflexões de Adorno na sua “Minima Moralia”.
Ficha Técnica |
Título: A Noite Devorou o Mundo |
Diretor: Dominique Rocher |
Roteiro: Pit Agarmen, Jérémie Guez, Guillaume Lemans |
Elenco: Anders Danielsen Lie, Sigrid Bouaziz, Golshifteh Farahani |
Produção: Haut et Court, Canal+ |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2018 |
País: França |
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