Amor, cultura dos aplicativos e milhagens no filme 'Matrimilhas'

Dos cálculos das milhagens do cartão de crédito à cultura dos aplicativos, cada vez mais as métricas estão tomando conta não só da vida pública. Também da privada, como, por exemplo, nos aplicativos de relacionamentos. A comédia argentina da Netflix “Matrimilhas” (Matrimillas, 2022) leva essa tendência às últimas consequências quando um casal tenta salvar o seu casamento em crise. A solução para reacender a chama do relacionamento só poderia ser encontrada em três elementos que compõe o imaginário da classe média atual: a cultura dos aplicativos, as milhagens do cartão de crédito e o negócio das criptomoedas – um App que promete esquentar o amor entre casais através do acúmulo de milhagens na medida em que cada uma satisfaça o parceiro. Através dos algoritmos, o amor se transforma num game interesseiro.

Sabemos que a comédia é muito mais do que um gênero. Enquanto desmistificadora da realidade, ela tem instrumentos como o cinismo, a ironia, a parodia e o sarcasmo. Tão poderosos como a ferramenta crítica da Filosofia e a Psicanálise.

Desde o cinismo da tradição filosófica de Diógenes e Pirro do período helenístico, o humor transformou-se numa arma crítica para desmontar as três formas de falsidade que sustentam os poderes e a sociedade: a mentira (a má fé), a ilusão (a falsidade ontológica do mundo) e a ideologia (a instrumentalização da ilusão para finalidades políticas).

Porém, tudo isso parece ter se perdido quando a comédia passou para o outro lado do balcão. Quando se tornou “cinismo esclarecido”, como conceitua o filósofo alemão Peter Sloterdijk: o cínico integrado aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou diretores) que mantêm um auto-distanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmo e ao que faz (“é o que tem prá hoje”, dizem), uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios.

Do humor autodepreciativo da primeira fase de Woody Allen ao gênero stand up que faz a plateia rir de si mesma, vê-se essa tendência “esclarecida” do humor – rir de realidades contra as quais, sabemos, nada podemos fazer.

Nesse século parece que estamos vendo uma outra função regressiva do humor, desde que passou para o outro lado do balcão: a do “alívio cômico” – aloprar tendências inevitáveis para torná-las mais suportáveis e aceitas. Principalmente as tendências tecnológicas e suas consequências.

Da tragicomédia Ela (2013) à comédia escrachada Jexi, um Celular Sem Filtro (2019), acompanhamos essa tendência de nos fazer rir sobre tendências tecnológicas que não têm mais volta. Como fosse algum tipo de alívio cômico para melhor aceitá-las.

A comédia argentina Matrimilhas (Matrimillas, 2022) é um exemplo flagrante disso. É uma peculiar produção da Netflix escrita por Gabriel Korenfeld e Rocio Blanco e dirigida por Sebastián de Caro. Luisana Lopilato e Juan Minujín estrelam como Belén e Federico, um casal que se inscreveu em uma maneira bastante não convencional de reacender seu relacionamento. 

O filme começa como qualquer filme de romance que se preze deveria - com um encontro aleatório em que Federico convida Belén para sair depois de seu carro arrancar a porta dela em um acidente.

Matrimilhas parte de um tema clássico de comédias românticas: um casal que vê sua vida conjugal esfriar com a rotina cotidiana de trabalho e dos problemas com filhos adolescentes. O filme nos mostra um típico casal da classe média argentina: ele, um dentista frustrado que na verdade almeja se tornar um chefe de cozinha; ela, proprietária de um pequeno negócio de brinquedos artesanais em uma pacata rua de Buenos Aires.

Um cotidiano fartamente regado a vinhos nos encontros com outros casais de amigos em restaurantes e em casa. Mas as coisas entre eles não vão nada bem: ele cada vez mais prefere se encontrar com os amigos que formam uma espécie de confraria gastronômica amadora. E ela, às voltas com o mal humor adolescente dos filhos e ter que fazer jantar e lavar a louça depois de um dia inteiro de trabalho.

Não fosse o excelente conceito da qual parte Matrimilhas, o filme argentino seria um típico filme romântico de “sessão da tarde” da TV  - a solução para reacender a chama do relacionamento só poderia ser encontrada em três elementos que compõe o imaginário da classe média atual: a cultura dos aplicativos, as milhagens do cartão de crédito e o negócio das criptomoedas como uma espécie de jogo de apostas.

Nesses três elementos estão presentes métricas e algoritmos. De como eles estão se tornando tão onipresentes não somente no trabalho para torná-lo produtivo. Começam a avançar para a vida privada. Principalmente numa sociedade obcecada pela felicidade – felicidade se transforma numa questão quantitativa de performance e produtividade.

É o que vemos na cultura dos aplicativos, que promete a solução de qualquer coisa: de apps para espantar pernilongos a... salvar o casamento, como em Matrimilhas.

O Filme

O dia a dia não está nada bem para Federico e Belén: ele é muito descontraído e constantemente faz promessas que não pode cumprir porque continua esquecendo delas. Ela gostaria de ser tão descontraída quanto o marido, mas coisas como as contas para pagar atrapalham. Claro, ele pode passar as terças-feiras à noite cozinhando com seus amigos enquanto ela tem que se contentar com massas malcozidas que faz às pressas no jantar para os filhos.

Quando Belén tenta expressar suas frustrações, Federico a acusa de ser uma chateação antes de fazer promessas mais vazias. Fica claro desde os primeiros minutos que a vida conjugal deles está descarrilhando.

Uma noite, o casal se encontra para jantar com a irmã de Belén, Nati (Carla Pandolfi), e seu marido, German (Javier Pedersoli), um casal conhecido por suas constantes brigas. No entanto, Belén e Federico ficam surpresos ao ver os dois incapazes de manter as mãos longe um do outro e se beijarem a todo momento. 

Ansiosos para encontrar a mesma felicidade conjugal, Belén e Federico acabam aceitando a recomendação dada pelos amigos e param em uma empresa chamada “Equilibrium” que promete consertar seu relacionamento. Como? Com um par de smartwatches que monitoram seu relacionamento no que eles chamam de “milhas de casamento” – “Fazemos do ‘felizes para sempre’ uma realidade”, informa o slogan da empresa.

Um aplicativo que escaneia informações biométricas enquanto o algoritmo atribui milhas a que cada um faz: fazer algo legal para o cônjuge, como café da manhã na cama, ganha milhas enquanto fazer algo que o cônjuge não aprovaria, diminui os pontos. 

Mas para quê acumular milhas? Com elas você poderá fazer coisas que realmente interessam: viajar a sós com os amigos, sair com as amigas em festas loucas e despedidas de solteira. 

Para Federico, as milhas são a oportunidade de participar com os amigos de uma competição culinária em Cancun. Então, em vez de ter uma discussão de relacionamento com a esposa, Federico vê nas métricas do aplicativo a saída mais fácil, legitimada pelas milhagens. Sem desgastes emocionais.

Mas a amiga de Belén faz o alerta mais sensato: “este método é assustador. Ele te dá milhas por cada boa ação que fizer por ele. Você se tornou uma escrava do amor. É doentio. Só está provando o quanto os relacionamentos são tristes e miseráveis”.

Como a promotora da Equilibrium fala cinicamente: “as milhas são como criptomoedas emocionais”.

O conceito do filme é instigante: a gameficação do casamento e a metrificação dos relacionamentos através de um aplicativo. Porém, apesar da ótima química dos atores protagonistas, o excelente argumento é desenvolvido de uma maneira pobre e inconsequente - peças da narrativa e personagens são introduzidos em diferentes pontos do tempo de execução antes de serem abandonadas sem cerimônia e deixadas sem solução. 

Desde o início, o filme deixa claro que os dois protagonistas lutam para se comunicar um com o outro, mas essa questão em particular é encoberta e nunca abordada. Afinal, a proposta do filme é apenas criar um grande alívio cômico para um tema existencial potencialmente complexo: a metrificação cada vez maior de cada aspecto da nossa vida, por meio de aplicativos, planilhas etc.

Ainda se aprofundarmos o argumento de Matrimilhas, encontraremos uma surpreendente conexão do filme com o argumento de Laranja Mecânica de Kubrick e o “Método Ludovico” de condicionamento comportamental, em que transformava delinquentes de pessoas más em “boas”.

Tanto o Método quanto o App de Matrimilhas abordam o conceito pavloviano de “reforço positivo”: se o paciente corresponder ao condicionamento pretendido, será gratificado. Assim como a clássica experiência de condicionamento do cão de Pavlov.

Assim como no filme clássico, Federico e Belén estão se amando não como de fato estivessem. Mas como meio para alcançar um fim. Assim como Alex não fica “bom” – a maldade continua na sua mente, porém inibida pelo reforço do condicionamento.

Milhagem em cartão de crédito nada mais é do que a estratégia de reforço positivo do behaviorismo: o consumidor é recompensado por corresponder àquilo que a empresa financeira quer – a fidelidade ao produto.

Matrimilhas nos faz rir de algo que parece inevitável. De como a sociedade está se transformando numa gigantesca experiência pavloviana de condicionamento.

 

 

Ficha Técnica

Título: Matrimilhas

Diretor: Sebastián De Caro

Roteiro:  Gabriel Korenfeld, Rocio Blanco

Elenco:   Luisana Lopilato, Juan Minujin, Andrea Rincón

Produção: Buffalo Films, Tielles Media

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: Argentina

   

 

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