sábado, novembro 10, 2012

Sintoma e verdade nos zumbis

Por que pessoas fingem-se de mortos que se arrastam pelos centros urbanos do mundo, famintas por cérebros e sangue dos vivos? Como interpretar um flash mob como o “Zombie Walk” onde centenas de pessoas se transformam em realísticos zumbis, há onze anos espalhando-se por diversas capitais do mundo? Desde as lendas afro-caribenhas de pessoas que retornam do mundo dos mortos como assustadoras sombras de si mesmas até a recorrência dos mortos vivos no cinema, o fascínio pelos zumbis já produziu uma razoável bibliografia de pesquisadores que chegam a vê-los como um objeto de estudo etnográfico. Mas é inegável que os mitos e lendas dos zumbis possuem uma dupla dimensão: de um lado são sintomas de crises sociais e, do outro, possuem um momento de verdade ao fazer nos lembrar da condição humana nesse mundo.

      O flash mob “Zombie Walk” vem nos últimos anos ganhado cada vez mais espaço na mídia e seus participantes aprimorando cada vez mais no realismo das maquiagens e máscaras, trôpegos arrastando suas fantasias lentamente através de centros urbanos pelo mundo. No evento surgido em 2001 na Califórnia e que rapidamente se espalhou pelo mundo, vemos centenas de humanos fingindo-se de mortos que apodrecem enquanto lançam olhares e gestos ameaçadores para os desavisados, como se quisessem comer uns aos outros. Por que queremos fazer tais coisas? Por que os zumbis ou mortos vivos acabaram se tornando uma fantasia cinemática tão recorrente a ponto de produzir uma razoável bibliografia de pesquisadores que chegam a tratá-los como objeto etnográfico?

      Se olharmos atentamente a história da lenda dos zumbis, suas origens e desenvolvimento até chegar no cinema e na mídia, perceberemos que ela claramente apresenta duas dimensões: como sintoma social (conflitos de raça e classes) e como arquétipo, isto é, como um simbolismo do inconsciente coletivo que se filia ao imaginário dos autômatos, fantoches e bonecos como representação da condição humana nesse planeta.

Zumbis e escravidão


    As lendas sobre zumbis foram criadas em culturas marcadas pela escravidão e colonialismo no Caribe. Folcloristas identificaram a ideia dos zumbis associadas à prática do vodu no Haiti onde toda uma tradição oral narra acontecimentos sobre pessoas que teriam sido trazidas de volta do mundo dos mortos como horríveis sombras de si mesmos. Muitas vezes esses zumbis estariam sob controle de um mestre, tornando-se autômatos sem vontade ou pensamento.

     Esse mito afro-caribenho surgido na época da escravidão começa na década de 1920 a se infiltrar lentamente nos EUA trazido pelos turistas brancos no Haiti e surgem ao poucos na literatura pulp fiction através de autores como H.P. Lovercraft. 

      A virada veio em 1932 com o filme “White Zombie” estrelado por Bela Lugosi sobre um colonialista branco no Haiti cuja usina de açúcar é operada por escravos zumbis. Abaixo temos a fantástica sequência da usina de açúcar repleto de escravos zumbis, onde vemos o protagonista, um fazendeiro no Haiti, recorrendo a Lugosi em busca de um soro para tornar a sua amada (noiva de outra homem) também num zumbi para que ela queira casar como ele. Esse foi o primeiro zumbi da história do cinema, totalmente relacionado com as origens na escravidão: os zumbis são escravos negros controlados por poderosos fazendeiros brancos.



     Esse mesmo plot associando zumbis e escravidão encontramos em “I Walked With a Zombie” (1943) onde mais uma vez encontramos um fazendeiro branco se apropriando das tradições vodu local para manter as pessoas sob controle na sua plantação. Há uma série de outros filmes com essa temática lançado em meados do século XX. Como “Revolt of Zombies” (1936) e “King of Zombies” (1941).

     Na década de 1960 com o revolucionário “The Night of Living Dead” de George Romero tudo mudou: nesse filme um protagonista negro tem que lidar com uma horda de zumbis.

     Observando o gráfico abaixo sobre o cruzamento entre a produção de filmes sobre zumbis anual e acontecimentos históricos, políticos e econômicos de cada período, é claramente observável os picos da presença dos zumbis nos cinemas no meio dos períodos de crise: durante a grande depressão econômica nos EUA, Segunda Guerra Mundial, o lançamento do satélite Sputnik pela URSS e o recrudescimento da Guerra Fria, Guerra do Vietnã e os protestos civis. Podemos interpretar os zumbis como um sintoma social ou os nossos alter-egos da crise da sociedade e da cultura na relação com o Outro – ameaça representada pela anomia, luta de classes, conflitos raciais, a ameaça externa etc.
Fonte: A History of Zombies in America
http://io9.com/5692719/a-history-of-zombies-in-america


     Podemos também observar que essa associação dos zumbis como escravos ou resultados de experiências ou acidentes produzidos por poderes irresponsáveis e arbitrários está presente até “Return of Living Dead” (1985) – nos anos 1970 temos até zumbis escravizados por nazistas em “Shock Waves” (1975).

     A partir da segunda metade da década de 1980, os zumbis passam a ser associados a doenças epidêmicas e a um problema de assepsia, controle sanitário ou de intervenção sanitária militar – quarentenas, isolamentos etc. Como podemos perceber no gráfico, coincide com a ascensão da epidemia da AIDS, recessões sistêmicas globais e a ameaça do terrorismo internacional – um inimigo invisível e inesperado. O zumbi assume, por isso, a forma de ameaça viral, epidêmica, com propagação exponencial e incontrolável. 

   Agora passa a ser mais destacado no visual zumbi pústulas, sangue, pedaços de carnes que se desprendem. O zumbi parece abandonar a suas origens na escravidão e colonialismo para ser associado agora ao imaginário da doença e contaminação.

     Se em “White Zombie” os zumbis-escravos eram produzidos a partir de uma poção de um fazendeiro explorador, hoje eles são auto-replicantes. Um exemplo podemos encontrar no filme espanhol “REC” (2007) onde os zumbi transformam-se em caso de vigilância santitária e um edifício em Madrid é isolado por um cordão policial enquanto um sanitarista-exorcista entra para controlar o mal.

     Talvez as exceções desse período atual sejam os filmes “Terra dos Mortos”( Land of the Dead, 2005 – onde um zumbi negro lidera um levante de mortos vivos contra um poderoso e corrupto Denis Hooper que explora igualmente vivos e mortos) e “Madrugada dos Mortos” (Dawn of Dead, 2004) que resgata a ideia do filme homônimo de George Romero de 1978 ao aproximar o apetite dos zumbis com o consumismo dos shopping centers (todos os zumbis se dirigem ao shopping porque “mentes confusas retornam ao último lugar que conheceram quando estavam vivos”). São filmes que resgatam as origens dos zumbis como sintomas da escravidão e racismo. As imagens atuais de zumbis como uma horda de famintos e adoecidos monstros trôpegos em um cenário pós-apocalipse neutralizam a crítica social contida nas lendas dos mortos vivos.

Zumbi como arquétipo

"O Gabinite do Dr. Caligari" (1920): o fascínio
por homens como autômatos ou marionetes
      Além do sintoma o zumbi tem o seu momento de verdade, isto é, seus mitos e lendas querem também nos dizer sobre a condição humana nesse mundo. Da crítica social à luta de classes e raças ele se tornam versões em carne putrefata de robôs rebeldes. Filmes como o expressionista alemão “O Gabinete do Dr. Caligari” de 1920 (onde um médico hipnotiza o jovem Cesare para induzi-lo a assassinatos) até os replicantes de “Blade Runner” demonstra o nosso fascínio por robôs, autômatos ou marionetes que se rebelam e lutam pela liberdade.

      Victoria Nelson em seu livro “The Secret Life of Puppets” demonstrou como na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus. Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs, ciborgues, andróides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano.

      Extrapolando essa tese de Victoria Nelson, podemos aplicá-la no estudo da recorrência cinemática dos mortos vivos. Ao contrário dos robôs, zumbis não têm lasers ou visão infra-vermelha para ajudá-los. Contam apenas com garra e dentes, assim como os seres humanos.

     O fascínio pelos zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles parecem inspirar, fazendo-nos recordar da nossa própria condição humana: nem vivos e nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte dele. A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal.

      A mitologia gnóstica vê a reencarnação como uma perversa estratégia do Demiurgo para nos manter aprisionados nesse mundo, sempre condenados a recomeçar do zero em uma espécie de “eterno-retorno”.

      Por isso, os zumbis parecem querer nos lembrar que jamais escaparemos do passado, de todas as histórias que nos causaram dor e que demonstram a nossa condição “estrangeira” em um cosmos hostil. 

Postagens relacionadas:

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review