Por que pessoas fingem-se de mortos que se arrastam pelos centros urbanos do mundo, famintas por cérebros e sangue dos vivos? Como interpretar um flash mob como o “Zombie Walk” onde centenas de pessoas se transformam em realísticos zumbis, há onze anos espalhando-se por diversas capitais do mundo? Desde as lendas afro-caribenhas de pessoas que retornam do mundo dos mortos como assustadoras sombras de si mesmas até a recorrência dos mortos vivos no cinema, o fascínio pelos zumbis já produziu uma razoável bibliografia de pesquisadores que chegam a vê-los como um objeto de estudo etnográfico. Mas é inegável que os mitos e lendas dos zumbis possuem uma dupla dimensão: de um lado são sintomas de crises sociais e, do outro, possuem um momento de verdade ao fazer nos lembrar da condição humana nesse mundo.
O flash mob “Zombie Walk” vem nos últimos anos ganhado cada
vez mais espaço na mídia e seus participantes aprimorando cada vez mais no
realismo das maquiagens e máscaras, trôpegos arrastando suas fantasias
lentamente através de centros urbanos pelo mundo. No evento surgido em 2001 na
Califórnia e que rapidamente se espalhou pelo mundo, vemos centenas de humanos
fingindo-se de mortos que apodrecem enquanto lançam olhares e gestos ameaçadores
para os desavisados, como se quisessem comer uns aos outros. Por que queremos
fazer tais coisas? Por que os zumbis ou mortos vivos acabaram se tornando uma
fantasia cinemática tão recorrente a ponto de produzir uma razoável
bibliografia de pesquisadores que chegam a tratá-los como objeto etnográfico?
Se olharmos atentamente a história da lenda dos zumbis, suas
origens e desenvolvimento até chegar no cinema e na mídia, perceberemos que ela
claramente apresenta duas dimensões: como sintoma social (conflitos de raça e
classes) e como arquétipo, isto é, como um simbolismo do inconsciente coletivo
que se filia ao imaginário dos autômatos, fantoches e bonecos como
representação da condição humana nesse planeta.
Zumbis e escravidão
As lendas sobre zumbis foram criadas em culturas marcadas
pela escravidão e colonialismo no Caribe. Folcloristas identificaram a ideia
dos zumbis associadas à prática do vodu no Haiti onde toda uma tradição oral
narra acontecimentos sobre pessoas que teriam sido trazidas de volta do mundo
dos mortos como horríveis sombras de si mesmos. Muitas vezes esses zumbis
estariam sob controle de um mestre, tornando-se autômatos sem vontade ou
pensamento.
Esse mito afro-caribenho surgido na época da escravidão começa
na década de 1920 a se infiltrar lentamente nos EUA trazido pelos turistas
brancos no Haiti e surgem ao poucos na literatura pulp fiction através de autores como H.P. Lovercraft.
A virada veio em 1932 com o filme “White Zombie” estrelado
por Bela Lugosi sobre um colonialista branco no Haiti cuja usina de açúcar é
operada por escravos zumbis. Abaixo temos a fantástica sequência da usina de
açúcar repleto de escravos zumbis, onde vemos o protagonista, um fazendeiro no
Haiti, recorrendo a Lugosi em busca de um soro para tornar a sua amada (noiva
de outra homem) também num zumbi para que ela queira casar como ele. Esse foi o
primeiro zumbi da história do cinema, totalmente relacionado com as origens na
escravidão: os zumbis são escravos negros controlados por poderosos fazendeiros
brancos.
Esse mesmo plot associando zumbis e escravidão encontramos
em “I Walked With a Zombie” (1943) onde mais uma vez encontramos um fazendeiro
branco se apropriando das tradições vodu local para manter as pessoas sob
controle na sua plantação. Há uma série de outros filmes com essa temática
lançado em meados do século XX. Como “Revolt of Zombies” (1936) e “King of
Zombies” (1941).
Na década de 1960 com o revolucionário “The Night of Living
Dead” de George Romero tudo mudou: nesse filme um protagonista negro tem que
lidar com uma horda de zumbis.
Observando o gráfico abaixo sobre o cruzamento entre a
produção de filmes sobre zumbis anual e acontecimentos históricos, políticos e
econômicos de cada período, é claramente observável os picos da presença dos
zumbis nos cinemas no meio dos períodos de crise: durante a grande depressão
econômica nos EUA, Segunda Guerra Mundial, o lançamento do satélite Sputnik
pela URSS e o recrudescimento da Guerra Fria, Guerra do Vietnã e os protestos
civis. Podemos interpretar os zumbis como um sintoma social ou os nossos
alter-egos da crise da sociedade e da cultura na relação com o Outro – ameaça
representada pela anomia, luta de classes, conflitos raciais, a ameaça externa
etc.
Fonte: A History of Zombies in America http://io9.com/5692719/a-history-of-zombies-in-america |
Podemos também observar que essa associação dos zumbis como
escravos ou resultados de experiências ou acidentes produzidos por poderes
irresponsáveis e arbitrários está presente até “Return of Living Dead” (1985) –
nos anos 1970 temos até zumbis escravizados por nazistas em “Shock Waves”
(1975).
A partir da segunda metade da década de 1980, os zumbis
passam a ser associados a doenças epidêmicas e a um problema de assepsia,
controle sanitário ou de intervenção sanitária militar – quarentenas,
isolamentos etc. Como podemos perceber no gráfico, coincide com a ascensão da
epidemia da AIDS, recessões sistêmicas globais e a ameaça do terrorismo
internacional – um inimigo invisível e inesperado. O zumbi assume, por isso, a
forma de ameaça viral, epidêmica, com propagação exponencial e incontrolável.
Agora passa a ser mais destacado no visual zumbi pústulas, sangue, pedaços de
carnes que se desprendem. O zumbi parece abandonar a suas origens na escravidão
e colonialismo para ser associado agora ao imaginário da doença e contaminação.
Se em “White Zombie” os zumbis-escravos eram produzidos a
partir de uma poção de um fazendeiro explorador, hoje eles são
auto-replicantes. Um exemplo podemos encontrar no filme espanhol “REC” (2007)
onde os zumbi transformam-se em caso de vigilância santitária e um edifício em
Madrid é isolado por um cordão policial enquanto um sanitarista-exorcista entra
para controlar o mal.
Talvez as exceções desse período atual sejam os filmes “Terra
dos Mortos”( Land of the Dead, 2005 – onde um zumbi negro lidera um levante de
mortos vivos contra um poderoso e corrupto Denis Hooper que explora igualmente
vivos e mortos) e “Madrugada dos Mortos” (Dawn of Dead, 2004) que resgata a ideia
do filme homônimo de George Romero de 1978 ao aproximar o apetite dos zumbis
com o consumismo dos shopping centers (todos os zumbis se dirigem ao shopping
porque “mentes confusas retornam ao último lugar que conheceram quando estavam
vivos”). São filmes que resgatam as origens dos zumbis como sintomas da
escravidão e racismo. As imagens atuais de zumbis como uma horda de famintos e
adoecidos monstros trôpegos em um cenário pós-apocalipse neutralizam a crítica
social contida nas lendas dos mortos vivos.
Zumbi como arquétipo
"O Gabinite do Dr. Caligari" (1920): o fascínio por homens como autômatos ou marionetes |
Victoria Nelson
em seu livro “The Secret Life of Puppets” demonstrou como na cultura popular do
século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento
do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma
cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus. Esse
fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria
a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como
nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as
marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs,
ciborgues, andróides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano.
Extrapolando essa
tese de Victoria Nelson, podemos aplicá-la no estudo da recorrência cinemática dos
mortos vivos. Ao contrário dos robôs, zumbis não têm lasers ou visão infra-vermelha
para ajudá-los. Contam apenas com garra e dentes, assim como os seres humanos.
O fascínio pelos
zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles parecem
inspirar, fazendo-nos recordar da nossa própria condição humana: nem vivos e
nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo
tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte
dele. A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta
metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a
morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse
mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal.
A mitologia
gnóstica vê a reencarnação como uma perversa estratégia do Demiurgo para nos
manter aprisionados nesse mundo, sempre condenados a recomeçar do zero em uma
espécie de “eterno-retorno”.
Por isso, os
zumbis parecem querer nos lembrar que jamais escaparemos do passado, de todas
as histórias que nos causaram dor e que demonstram a nossa condição “estrangeira”
em um cosmos hostil.
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