segunda-feira, maio 27, 2019

Parques de diversões, espelhos e a morte no filme "Nós"

O filme “Nós” (Us, 2019) de Jordan Peele (“Corra!”) é um complexo de mitologias (milenares e modernas) e crítica social. Para começar, o diretor pediu aos atores assistirem a dez filmes (entre eles “O Iluminado”, “Deixe Ela Entrar” e “Além da Imaginação”) para compreenderem o argumento da produção e a verdadeira avalanche de alusões fílmicas. Crítica social se mistura com um complexo mitológico: do simbolismo demiúrgico dos parques de diversões ao medo milenar pelos duplos e espelhos. Cada imagem em “Nós” é uma pista para tentarmos entender por que duplicatas assassinas de uma família põem em perigo a vida dos seus “originais”. Peele sugere visões múltiplas, num misto da distopia de George Orwell, o ocultismo de Lewis Carroll e a crítica social de James Baldwin.

Há algo de aterrorizante por trás de parques temáticos ou parques de diversão. Na superfície, são lugares de alegria, encontros, brincadeiras e espetáculos. Porém, na mitologia moderna, tanto no cinema quanto na literatura, esses lugares de entretenimento escondem o horror e o estranho.
De Jurassic Park à série Westworld, ou de filmes como o clássico do expressionismo alemão Gabinete do Dr. Caligari (1920) a Scape from Tomorrow (2013), o horror sempre aparece por problemas técnicos, acidentes, zumbis, palhaços assassinos ou conspirações que surgem de submundos escondidos sob as atrações fascinantes de um parque de diversões. 
Quais as origens dessa mitologia tão revisitada pelos filmes de terror? Talvez porque suas origens estão lá nos parques de variedade e circos do século XIX nos quais eram expostas aberrações humanas, zoológicas, além de shows de mágicos, ocultistas e médiuns. Ou talvez porque seriam uma espécie de interstício da sociedade (uma “interzone”, como se referia o escritor William Burroughs em “Naked Lunch”), entre o mundo sério do trabalho e a vida onírica dos sonhos.
Porém, há também algo de demiúrgico nesses parques: jogos, lazer e entretenimento como negócio lucrativo. E sabemos que no jogo e na diversão a banca sempre ganha. Por isso, a metáfora do protagonista enredado em conspirações e armadilhas que a princípio aparentam serem brinquedos inocentes.
O filme Nós (Us, 2019) do diretor, escritor e produtor Jordan Peele não é apenas mais um filme de terror que revisita essa mitologia moderna. Primeiro, porque o sucesso comercial do seu filme de estreia (Corra! rendeu algo em torno de 300 milhões de dólares) deu a Peele a liberdade para produzir inúmeros projetos autorais como Infiltrado na Klan de Spike Lee, a série documental Lorena e a série País de Lovercraft, série prevista pela HBO.


Dez filmes

Nós é outro projeto autoral. De início, Jordan Peele fez os atores que protagonizam a produção assistirem a dez filmes de terror nos quais se inspirou em uma série de alusões na narrativa: Dead Again, O Iluminado, The Babadook, Corrente do Mal, o terror sul-coreanoA Tale of Two Sisters, Os Pássaros, Violência Gratuita, Martrys, Deixe Ela Entrar O Sexto Sentido.
Porém, o ponto de partida do argumento de Nós está num antigo episódio da série Além da Imaginação de 1960 intitulado “Imagem do Espelho”: uma mulher tenta convencer um homem que está sendo perseguida pelo seu duplo exato, até que seja tarde demais. Em Nós, uma família é sitiada por assassinos doppelgängers. 
“Todo o meu trabalho aponta para essa ideia de explorar o lado sombrio da humanidade... eu amo os seres humanos como monstros, como o horror”, diz Jordan Peele numa entrevista para o jornal Independent – clique aqui.
Para tanto, Nós mergulha numa avalanche de alusões àqueles dez filmes de terror e de mitologias milenares e modernas: além do parque de diversões, o medo diante do duplo e do espelho, o significado ocultista do coelho de Alice de Carroll, a distopia de “1984” de Orwell. E, mais uma vez como em Corra!, a crítica social inspirada no romancista e dramaturgo negro James Baldwin.


O Filme

Nós inicia com um quebra-cabeças de informações aparentemente desconexas. O filme abre com um lettering afirmando que existem milhares de milhas de túneis sob os Estados Unidos, muitos dos quais não têm “nenhum propósito conhecido”. Corta! Então vemos um parque de diversões à beira-mar em Santa Cruz, em 1986. Enquanto o pai está distraído em um estande de jogo, vemos a sua pequena filha andando pelo parque até descer na praia e encontrar a instalação chamada “Floresta de Merlin” com uma exortação na placa: “Encontre-se!”.
A menina entra numa espécie de labirinto de espelhos, assoviando nervosamente uma música, até ouvir alguém assoviando a mesma melodia. Ela para diante de um espelho e descobre que há algo mais além do seu reflexo...  
Mais um corte. A câmera enquadra um coelho branco e vai afastando. Em seguida vislumbramos uma vasta parede de gaiolas, cada um com o seu próprio espécime leporino.
Outro corte. Agora estamos na atualidade e acompanhamos a próspera família Wilson que vai para Santa Cruz passar as férias na sua casa de praia. Essa sequência é quebrada por um flashback de 1986 quando aquela menina que estava perdida diante dos espelhos retornou para casa e está muda, em estado de choque. Esta é a conexão com Adelaide Wilson (Lupita Nyong’o) que no passado era aquela menina que passou por alguma estranha experiência, e que agora é uma mãe nervosa. Compreensível, porque ela está voltando para as proximidades daquele parque que foi a cena do trauma de 30 anos atrás. 


Ela é casada com Gabe Wilson (Winston Duke), com seus filhos Zora (Shahadi Joseph) e Jason (Evan Alex). A primeira crítica social é que vemos uma família negra de classe média cujo pai mantém uma atitude competitiva e consumista velada com seus amigos ricos brancos, os Tylers: Kitty (Elizabeth Moss) e Josh (Tim Heidecker), que também estão na sua casa de férias nas proximidades. 
Tudo muda nessa vida afluente quando, à noite, na garagem da casa dos Wilsons, surgem duplicatas exatas (porém, com aparências sinistras) querendo forçar a entrada. Eles têm algum propósito, vestidos de macacão vermelho (ecos de série A Casa de Papel?) e empunhando tesouras ameaçadoras. Certamente, para perfurar suas vítimas homólogas.
A certa altura, a duplicata de Adelaide (que é a líder da invasão) chama aquele evento de “desligamento”. Mais enigmas que o espectador terá que desvendar.
Aos poucos, vamos percebendo que aquele não é um acontecimento isolado. Os Tylers também estão sendo vítimas das suas próprias duplicatas que invadem sua casa, produzindo uma chacina. 
Há algum tipo de evento em escala aparentemente global, no qual duplicatas estão procurando seus “originais” para buscar justiça ou simplesmente vingança, empunhando tesouras e um olhar ensandecido...


Crítica social e mitologias

E descobriremos que esse evento apocalíptico de alguma forma está conectado com aquela cena traumática do estranho labirinto de espelhos de 1986.
O filme Nós concilia crítica social com mitologia. O complexo mítico está no misterioso parque de diversões, cujo simbolismo é potencializado pelo labirinto de espelhos. Ao longo da história o espelho criou ao seu redor uma constelação de simbolismos: reflexo da própria alma, passagem para outros mundos, indutor de visões do futuro, má sorte ao ser quebrado ou, como sugere no Feng Shui, ao usá-lo em ambientes para criar a impressão visual de expansão no qual energias da casa são expandidas e redirecionadas.
Mas também há um imaginário maligno: a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi considerado um evento misterioso, muitas vezes o próprio prenúncio da morte. 
Mas Jordan Peele vai além: aqui o duplo transforma-se em dualidade: os duplos seriam como nossas sombras, no sentido da psicologia analítica de Jung – o lado escuro da psique, nossos sentimentos mais primitivos e egoístas. Os duplos de Nós retornam, porque foram esquecidos nos túneis de algum submundo. 


O parque de diversões demiúrgico – alerta de spoilers à frente

Mas Peele encaixa nesse simbolismo arquetípico a crítica dos EUA atuais: a dualidade política e de crenças no país da Era Trump. Como afirma o diretor, “pode ser o ‘nós’ a família, o ‘nós’ a cidade, o ‘nós’ o país ou o ‘nós’ a humanidade”. Como responde o duplo de Adelaide ao ser indagada “quem são vocês?”. “Somos americanos!”, responde o duplo com um olhar sinistro.
O quebra-cabeças de Nós ganha sentido somente ao final, quando Peele dá pleno propósito demiúrgico ao parque de diversões, na melhor tradição gnóstica: os duplos vivendo em um mundo paralelo e subterrâneo como fossem nossas marionetes para controlar os “originais” que vivem na superfície.
Na melhor tradição gnóstica de Dr. Caligari: parques de diversões controlados por demiurgos com finalidades nada boas. Daí o misto de fascínio e terror por espelhos, duplos, autômatos, marionetes, replicantes ou robôs: o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus. 
Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs, ciborgues, androides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano.
Mas Nós joga com o terror fundamental: o questionamento das nossas identidades ou a sua própria perda. Situação aterrorizante, já que a única coisa que podemos contar nesse universo é com as nossas próprias consciências.



Ficha Técnica 


Título: Nós 
DiretorJordan Peele
Roteiro:  Jordan Peele
Elenco:  Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Evan Alex, Shahadi Joseph
Produção: Monkeypaw Productions, Perfect World Pictures
Distribuição: Universal Pictures
Ano: 2019
País: EUA, China, Japão

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