O filme “Color Out of Space” (2019) mostra como o cinema do século XXI está fascinado pelo escritor de terror, fantástico e ficção científica HP Lovecraft. Principalmente pelos seus mundos tentaculares dominados pela monstruosidade híbrida e metamórfica e pelo seu horror cósmico – como um universo sem deuses é completamente indiferente à existência humana. Três quartos das adaptações cinematográficas das obras lovecraftianas estão no século XXI. Por que esse “hype” em torno de Lovecraft? A resposta pode estar no filme “Color Out of Space”: expressa o espírito de época e sensibilidade que dominam o cenário cultural do século XXI - o hibridismo, o pós-humano e o gnosticismo. Uma fazendo isolada é atingida por um meteorito que traz o horror indescritível diretamente das profundezas do cosmos, atingindo a família que mora lá e, possivelmente, o mundo.
O cinema do século XXI ama o horror do escritor gótico norte-americano HP Lovecraft (1890-1937). De 204 produções audiovisuais (entre longas, curtas e minisséries), 74% dos títulos estão nesse século. O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982) de John Carpenter (na verdade, um filme inspirado num conjunto de contos de Lovecraft), Re-Animator (1985) e From Beyond (1986), ambos de Stuart Gordon) são as melhores adaptações do século passado. Mas, assistindo-os hoje, temos a sensação de serem bem datados.
Mas foram exceções que se sobressaem a uma grande maioria de adaptações falhas ou irregulares.
O problema é que as obras de HP Lovecraft se concentram na descrição de horrores indescritíveis e grande parte do impacto das obras do escritor vem da imaginação dos leitores, sem limites ou restrições de, por exemplo, orçamentos como no cinema.
Para se adaptar com sucesso uma obra do escritor, o cineasta precisa ter ao seu dispor um orçamento ilimitado e tecnologia para realizar graficamente a imaginação ilimitada que consiga acompanhar as sugestões de HP Lovecraft.
Por exemplo, compare a adaptação terrível A Maldição – Raízes do Terror (The Curse, 1987) com o atual Color Out of Space (2019), ambos baseados no conto “A Cor que Caiu do Espaço”.
Mas além da tecnologia, efeitos especiais digitais e alto orçamento disponível nesse século para a imaginação de HP Lovecraft, há uma outra questão. Dessa vez simbólica, dentro daquilo que este Cinegnose chama de “Cineteratologia” – o estudo do simbolismo da monstruosidade: como as transformações dos ambientes sócio-culturais alteram as expressões da monstruosidade e a sensibilidade ao terror e o horror no cinema e audiovisual.
Color Out of Space, de Richard Stanley, é uma das melhores adaptações recentes de uma obra de HP Lovecraft. A monstruosidade representada por uma cor extraterrestre e indefinível que passa a dominar a natureza no entorno de um casarão remoto após a queda de um meteorito, está sintonizada com um tipo de sensibilidade que domina o cenário cultural do século XXI: o hibridismo e o pós-humano.
Em outras palavras: depois da monstruosidade clássica (marcada pelo mau, o feio e o disforme), passando pelos “monstros moles” (disformes, informes, metamórficos), agora o appeal do século XXI por HP Lovecraft vai privilegiar a monstruosidade híbrida, estéril, que somente pode se reproduzir por fagocitose ou mesmo cissiparidade.
É o chamado “horror cósmico”, característica que atravessa a obra do escritor norte-americano: a monstruosidade não se origina do mal no sentido moral (seres malignos, corrompidos, com objetivos torpes e mesquinhos), mas de uma absoluta indiferença do cosmos com a existência humana.
O que simboliza esse apreço do século XXI pela monstruosidade híbrida de Lovecraft? É o que esse humilde blogueiro tentará responder.
O Filme
Color Out of Space acompanha a família Gardner que recentemente abandonou a agitação dos grandes centros urbanos em busca de uma vida bucólica em um casarão remoto, perto de um lago em uma floresta profunda de Massachusetts. O pai Nathan (Nicolas Cage) está entusiasmado em se tornar fazendeiro e criar alpacas (para ele, “o animal do futuro”), embora percebemos que ele não tem o menor talento para isso.
A esposa chamada Thereza (Joely Richardson) está preocupada em se recuperar de uma recente mastectomia e manter sua clientela do setor financeiro através do trabalho home office. Enquanto isso, o filho mais velho Benny (Brendan Mayer) vive pelos cantos fumando maconha ; a filha adolescente Lavinia (Madeline Arthur) não está nada satisfeita com a mudança, tornando-se uma praticante de rituais Wicca com sua cópia do livro “O Necronomicon” (livro fictício criado por HP Lovecraft); e o pequeno Jack (Julian Hilliard) vaga pela casa brincando, por trás das grossas lentes de seus óculos.
Os Gardner não são hostis, mas fica claro que o isolamento deles está deixando todos malucos.
Essa estranheza só aumenta quando numa noite o céu se transforma assumindo um tom indescritível de fúcsia, até que um meteorito cai no jardim da frente. Embora o meteorito se desintegre pouco tempo depois, coisas estranhas começam a acontecer. Um lote de novas flores começa a crescer com uma estranha cor, a colheita de tomates (também com uma estranha aparência) chega semanas antes do previsto, telefones, computadores e televisores ficam constantemente distorcidos por um ruído de estática, tornando-os praticamente inúteis.
A própria família Gardner começa a agir de forma estranhamente impulsiva e ao mesmo tempo displicente. Nathan começa a agir de maneira mais tonta do que a habitual, tendo comportamento bipolar entre a euforia e a depressão; Theresa, aparentemente atordoada, corta a ponta de alguns dedos enquanto pica cenouras para o jantar; Jack está constantemente olhando e assobiando para um poço que afirma ter um "amigo" seu lá dentro.
Logo, tudo que é vivo na área (plantas e animais) começa a sofrer mutações de maneiras indescritíveis e aterrorizantes. Benny e Lavinia reconhecem que que há algo de ameaçador, mas se sentem impotentes de escapar das garras do que quer que esteja por trás de tudo. Afinal, para seus pais tudo está normal. Enquanto o caçula Jack fica catatônico, “brincando” com seu amigo secreto do poço.
O grande desafio do diretor é a questão da cor extraterrestre, protagonista central do conto de HP Lovecraft. No texto original, nunca essa cor é apropriadamente descrita: é referida apenas como uma tonalidade nunca antes vista no espectro das cores visíveis. Stanley consegue criar uma paleta de cores selvagens que honra as intenções de Lovecraft – tudo é banhado por cores que cria uma atmosfera do outro mundo.
E o destaque não poderia deixar de ser o incansável ator Nicolas Cage (nesse momento, o ator participa de seis filmes simultâneos em diversos estágios de produção a serem lançados nesse ano) que consegue figurar um tipo de loucura entre momentos de puro humor e outros de autêntica bizarrice e terror – principalmente no terceiro ato, em que Stanley traduz audiovisualmente o “horror cósmico” de Lovecraft.
Século lovecraftiano
Além dos fatores materialistas (tecnologia digital e alto orçamento), o fascínio do cinema atual por Lovecraft explica-se em primeiro lugar por esse “horror cósmico”.
Já discutimos em diversas postagens nesse Cinegnose que a partir de 1995 acompanhamos a ascensão do Gnosticismo pop no cinema hollywoodiano, principalmente pelo espírito do tempo de final de século (novas tecnologias e a criação de mundos virtuais digitais). Esse espírito é renovado no século XXI através do pós-humanismo que motiva o Vale do Silício e as gigantes de tecnologia com a noção de inteligência artificial traduzida por algoritmos.
O horror cósmico está totalmente alinhado com a filosofia gnóstica – a ideia de que Deus e o cosmos não nos amam, são indiferentes ou simplesmente querem nos destruir. Mas não por “maldade”, mas simplesmente porque podem.
Esse tipo de horror com sabor gnóstico está presente na franquia dos aliens de Ridley Scott ou mesmo em um filme como O Farol (2019), de Robert Eggers.
Cada monstruosidade reflete o seu espírito do tempo. A monstruosidade clássica de vampiros e Frankensteins expressavam a moralidade vitoriana em um capitalismo em que as coisas sólidas ainda não se desmanchavam no ar – por isso, monstros “duros”, mórficos.
No capitalismo líquido em que tudo (sociedade, moralidade, cultura, economia) se dilui nos fluxos dos capitais virtuais da financeirização, com efeito temos os monstros “moles”: metamórficos, virais (zumbis), disformes etc.
HP Lovecraft estava à frente do seu tempo. Na virada dos séculos XIX-XX, o escritor já imaginava mundos tentaculares em que entidades são um produto genético de hibridização de seres humanos.
A imaginação e o horror cósmico de Lovecraft estão aqui, no século XXI: a engenharia genética, manipulação do DNA, hibridização bio-eletrônica no pós-humano, armas biológicas produzidas em laboratórios (coronavírus?), clonagens etc.
O horror nas obras de Lovecraft é o nosso horror atual – aquele horror de tudo aquilo que fica fora das categorias sociais. No caso dos seres lovecraftianos, a subversão categorial está no fato de que suas criaturas vivem no interstício do animal/humano, do terrestre/aéreo/aquático.
A mesma ambiguidade que vivemos hoje, tão bem explorada em séries como Black Mirror: dispositivos eletrônicos com vozes humanas, originadas de algoritmos que parecem conhecer mais de nós do que nós mesmos – as fronteiras máquina/humano se perdendo na ambiguidade, criando a perspectiva do pós-humano dominado por entidades híbridas.
Ficha Técnica
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Título: Color Out of Space
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Diretor: Richard Stanley
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Roteiro: Scarlett Amaris baseado em conto de HP Lovecraft
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Elenco: Nicolas Cage, Joely Richardson, Madeleine Arthur, Julian Hilliard, Brendan Meyer, Elliot Knight
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Produção: Spectrevision, ACE Pictures Entertainment
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Distribuição: RLJE Films
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Ano: 2019
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País: EUA
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