Hipo-utopia: diferentes das distopias que imaginam mundos futuros totalitários com tecnologias e sociedades tão inéditas que se diferem das atuais, nas hipo-utopias vemos as tendências e mazelas atuais projetadas no futuro de forma hiperbólica. É o caso do filme austríaco “Rubikon” (2022) no qual vemos um futuro que é uma versão degradada e perversa do mundo que conhecemos. Em 2056 países e governos foram extintos, e cada região da Terra foi tomado e dividido entre corporações gigantes, cada qual com seu exército. Ricos escapam de uma atmosfera terrestre que virou tóxica enquanto a maioria luta para não morrer. Em uma estação espacial privada na órbita terrestre cientistas cultivam algas que produzem oxigênio. Dilema moral: entregam a descoberta para a empresa e salvam uma sociedade perversa ou assistem de camarote a erradicação da raça humana da superfície terrestre.
O nosso planeta está correndo o risco de não mais conseguir enxergar o Universo. Neste momento, astrônomos de todo o mundo estão preocupados com a iniciativa do Starlink, da empresa Space X de Elon Musk, cujo objetivo é conectar todo o planeta com internet banda larga por meio de dezenas de milhares de satélites.
Segundo a comunidade científica, essa rede de satélites não somente pode interferir nos comprimentos de ondas de rádio dos equipamentos científicos, como também tais objetos estão se apresentado no céu mais brilhantes do que o esperado. Estão ameaçando ofuscar telescópios e equipamentos, o que inviabilizaria a própria ciência astronômica.
A Comissão Federal de Comunicações deu permissão à empresa de Musk para operar com o limite de 30 mil satélites, quantidade oito vezes superior ao número que atualmente está em órbita.
Esse é apenas um pequeno exemplo de como a privatização da tecnociência pode resultar num processo de hipertelia: o vanish point tecnológico no qual os sistemas chegam a tal ponto de complexidade que se tornam inúteis – a racionalidade empresarial ou privada começa a colocar em xeque a própria Ciência como um todo – sobre esse conceito clique aqui.
Esse é um traço da tecnologia pós-moderna: no plano micro (ou privado) é racional, em contraponto à irracionalidade do todo.
O drama de ficção-científica lo-fi Rubikon (2022) é um filme sintonizado com o espírito de época atual: ambientado em 2056 que se desenrola no confinamento de uma estação espacial. No futuro países e governos foram extintos, e cada região da Terra foi tomado e dividido entre corporações gigantes.
As condições ambientais tornaram-se frágeis e tóxicas, e apenas os ricos vivem em cúpulas de ar que foram construídas para filtrar a atmosfera contaminada. As corporações têm seus exércitos particulares e, no caso de conflito territorial, os exércitos corporativos lutam entre si. As missões espaciais falharam, o que significava que a vida além da Terra não era mais uma possibilidade. A última estação espacial, de propriedade da Nibra Corporation, tem uma base de pesquisa dedicada a encontrar uma solução para a deterioração das condições ambientais.
Um cientista russo consegue desenvolver uma cultura de algas produtoras de oxigênio e, imediatamente, a empresa manda um soldado em missão de espionagem para se inteirar da descoberta – habilmente o cientista tenta esconder a descoberta dos interesses privatistas da empresa.
Porém, algo vai muito mal na superfície: uma inesperada reação ambiental em cadeia cria uma densa nuvem marrom asfixiante, cobrindo todo o planeta. Os poucos sobreviventes (os ricos) estão em bunkers. Mas o oxigênio está acabando. E a última esperança está na velha estação espacial chamada “Rubikon”.
Lembrando os roteiros de antigas séries como Star Trek e Twilight Zone, Rubikon é um drama com muito mais linhas de diálogos do que ação – acompanhamos as implicações dos dilemas éticos e morais dos diálogos entre os três astronautas que ficaram na estação. Dilemas que sempre envolvem os conflitos entre os interesses privados da Nibra Corporation e os interesses da própria espécie humana.
Em tempos de Grande Reset Global do Capitalismo, Rubikon faz especulações sombrias sobre um futuro em que finalmente o Capital se desprende das amarras do Estado e das Nações para impor sua própria lógica: será que a catástrofe ambiental foi uma forma de limpar da Terra o maior contingente populacional desnecessário (os excluídos que nem para serem explorados servem) possível? Com o fim da esperança da viagem espacial, garantir para a elite toda a abundância da Natureza que, no final, sempre se renova de crises e catástrofes.
O Filme
Rubikon acompanha três protagonistas – Hannah (Julia Franz Richter), Gavin (George Blagden) e Dimitri (Mark Ivanir) – que têm em mãos a grande descoberta sobre as algas. Deverão decidir quem vive e quem morre na relativa segurança de sua estação espacial clautrofóbica.
A escritora/diretora Leni Lauritsch e a co-roteirista Jessica Linde estabelecem imediatamente que tipo de história estão contando quando apresentam Hannah e Gavin aos membros da tripulação da Rubikon, particularmente o mal-humorado Dimitri e seu filho sensível Danilo (Konstantin Frolov).
A presença de Hannah e Gavin imediatamente coloca os russos no limite, porque eles representam a Nibra Corporation, o patrão ausente da estação espacial. Poderíamos então supor o pior sobre Hannah e Gavin, já que, em Rubikon, o futuro é determinado pelas corporações. Mas esses dois personagens ostensivamente não são exatamente privilegiados corporativos: Hannah é uma mão de obra barata da empresa, uma soldada, às vezes fria, com suas próprias ambições e problemas de abandono familiar; e Gavin é um químico carrancudo de uma família rica e poderosa, mas que renega a condição de elite participando de movimentos de protesto ambientalista.
Dimitri e Danilo ainda precisam aprender a confiar neles antes que a trama de Rubikon possa realmente começar. Até então, Hannah e Gavin abrem caminho para o microcosmo da estação Rubikon. Eles obedecem ou ignoram as perguntas de Dimitri e de seu filho, muitas das quais se resumem a: a quem você está servindo e por que você está realmente aqui?
Segue-se então um drama espacial bem executado - uma cápsula de fuga mal-sucedida, uma tentativa de suicídio, um jogo de cartas bêbado que logo acaba dirimindo os conflitos e reunindo todos. Até receberem um sinal de socorro da Terra, que os obriga a decidir o que fazer com as culturas de algas da nave: salvar os poucos sobreviventes nos bunkers corporativos na Terra ou ficarem na estação como os últimos sobreviventes da espécie.
Rubikon é mais exemplo de uma narrativa hipo-utópica: diferentes das distopias que imaginam mundos futuros totalitários com tecnologias e sociedades tão inéditas que se diferem das atuais, ao contrário, nas hipo-utopias vemos as tendências e mazelas atuais projetadas no futuro de forma hiperbólica. Em Rubikon vemos praticamente um futuro que é uma versão degradada e perversa do mundo que conhecemos: não há governos, o que implica que os direitos humanos e benefícios sociais estão fora de cogitação.
Os ricos prosperam, enquanto os pobres procuram comida. As pessoas são de propriedade de corporações, e a classe privilegiada vive suas vidas alegres nos domos aéreos. Os soldados são responsáveis por manter a classe de elite segura, mesmo que isso signifique perder suas próprias vidas. O sistema foi projetado para atender a poucos.
A soldada Hanna é um exemplo desse hipercapitalismo do futuro: um chip foi inserido no pescoço de cada soldado para mantê-los sob controle e a empresa monitorar seus movimentos. As mulheres soldados deveriam permanecer estéreis até o fim do serviço e, para isso, eram induzidas com hormônios. Hannah viveu sua vida seguindo instruções para coletar mais e mais pontos de crédito na tentativa de sobreviver.
Portanto, o dilema moral se coloca para a tripulação da Rubikon: será que vale mesmo à pena salvar CEOs e ricaços em seus bunkers na Terra? E participar de um suposto plano de eliminação de pobres desnecessários para o sistema? Ou transformar a estação espacial em seu novo lar permanente, assistindo de camarote a espécie humana ser erradicada da face da Terra?
Ficha Técnica |
Título: Rubikon |
Diretor: Magdalena Lauritsch |
Roteiro: Magdalena Lauritsch, Jessica Lind |
Elenco: Julia Franz Richter, George Blagden, Mark Ivanir, Nicholas Monu, Kostantin Frolov |
Produção: Samsara Filmproduktion, Graf Film |
Distribuição: IFC Midnight |
Ano: 2022 |
País: Áustria |