O tautismo (autismo + tautologia) crônico da
TV Globo chegou a um nível bizarro e surreal com a “morte” de Dona Marisa
Letícia. Enquanto a emissora mostrava imagens de pesar e condolências (minuto
de silencio no Congresso e os pêsames de FHC a Lula), a Globo se apegava ao
“protocolo de morte encefálica” para adiar em 18 horas o anúncio do falecimento
e a palavra “morte”. Uma cobertura, no mínimo, anômala: em se tratando de
políticos, celebridades e artistas o "modus operandi" da grande imprensa diante
da morte sempre foi o sensacionalismo, ilações e especulações. Por que esse
inesperado comedimento, como se repórteres e apresentadores usassem luvas de
pelica enquanto pisavam em ovos? No dia 02 de fevereiro, Dona Marisa Letícia
estava supostamente morta. Para no dia seguinte a palavra “morte” ser anunciada
de forma protocolar. Para quê serviu esse pesar tautista da Globo? Algumas
hipóteses: (a) AVC político, (b) Lula vai ser preso, (c) Sebastianismo e
Eleições 2018, (d) Tática do diversionismo, (e) Corrente de Esperança.
Criado pelo pesquisador francês Lucien Sfez,
o conceito de “tautismo” (neologismo criado pela combinação das palavras
“tautologia”, do grego “tauto”, “o mesmo”, e “autismo”, auto, si mesmo) é
resultante de pesquisas sobre processos contemporâneos de comunicação. Processos
abstratos e estudados por áreas
especializadas como Teoria dos Sistemas ou Teoria da Informação que o leitor
mais leigo muitas vezes não consegue acompanhar - sobre o conceito clique aqui.
Em postagens recentes o Cinegnose vem procurando descrever esse fenômeno do tautismo na TV
Globo, principalmente no telejornalismo – objeto exemplar por ser ponto de
contato de um sistema fechado em si mesmo com a realidade exterior. Em geral,
as manifestações do tautismo são sutis, subliminares às vezes, exigindo do
pesquisador método e atenção.
Porém, dessa vez o tautismo crônico da
emissora foi direto e evidente. Poucas vezes esse humilde blogueiro testemunhou
uma manifestação tão explícita, bizarra e surreal do tautismo como na edição de
02/02 do Jornal Nacional.
Nos seus pouco mais de 2 minutos dedicados à
morte da esposa de Lula, Dona Marisa Letícia, enquanto um infográfico explicava
a evolução do AVC ao quadro irreversível de morte encefálica, os apresentadores
falavam em “ausência de fluxo cerebral”, “ausência de atividade cerebral”,
“ausência de circulação sanguínea” e a confirmação de doação de órgão pela
família.
Tal como o restante da grande mídia, o Jornal
Nacional evitou usar a palavra “morte”.
Ao mesmo tempo, as imagens mostravam a Câmara dos Deputados paralisando uma
sessão para fazer um minuto de silêncio para... a morte de Dona Marisa
Letícia?... ou para a “ausência de fluxo cerebral?
Uma foto mostra Fernando Henrique Cardoso
prestando condolências a Lula pela... morte?... ou pela “ausência de fluxo
cerebral” da esposa do seu opositor político?
O mais próximo de uma notícia sobre morte foi
a matéria do JN falar em “pêsames” dados pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia
e “notas de pesar” pelo presidente do senado Eunício Oliveira e a ex-presidenta
Dilma Rousseff. Mas a tautista Globo em nenhum momento admitiu que estava dando
a notícia sobre a “morte” de Marisa Letícia Lula da Silva.
A morte em cena no jornalismo
Por que? Segundo relato do veterano repórter
José Roberto Burnier, com a fachada do Hospital Sírio Libanês como fundo (o
velho clichê de enquadramento para conferir credibilidade ao que o repórter diz),
porque o protocolo oficial de constatação de morte cerebral só pode ser feito
18 horas depois da interrupção da sedação. Surpreendentemente, a Globo e toda a
grande mídia se apegaram no detalhe técnico de que os médicos não confirmaram a
morte, mas sim a “ausência de fluxo sanguíneo”.
No mínimo, a cobertura da Globo foi anômala.
Em décadas como jornalista e pesquisador de mídia, esse humilde blogueiro nunca
viu a grande imprensa se apegar a “protocolos”. Até então, detalhes apenas
conhecidos pelos médicos e desconhecidos do grande público... e dos
jornalistas.
Em se tratando de políticos, celebridades e
artistas, o sensacionalismo da morte sempre esteve em cena: Ayrton Senna, Lady
Di, Tancredo Neves, Getúlio Vargas etc., foram mortes tratadas sem rodeios ou
meios termos pela imprensa. Ilações, especulações e obituários antes da hora do
anúncio “técnico” sempre foram a regra.
Ayrton Senna: Globo seguiu protocolos? |
O que torna anômala a cobertura da Globo é
inesperado apego a “protocolos” da medicina, destoando do modus operandi histórico da grande imprensa. Talvez a Globo tenha
“tecnicamente” tomado a opção correta. Afinal, jornalista não declara morte. É
o médico que o faz e o jornalista apenas noticia.
Porém, na anômala cobertura o que se viu
foram repórteres e apresentadores com se vestissem luvas de pelica e pisassem
em ovos.
A matéria do JN criou uma situação bizarra: o
morto só morre quando o médico confirma que o cadáver morreu! O que as imagens
transmitiam eram pesares e rostos consternados. Enquanto a locução se apegava no
protocolo no qual, tecnicamente, Dona Marisa Letícia era uma morta-viva.
Por que essa tautista negação da morte? Por
que, de repente, baixou o espírito de Hipócrates na redação do telejornalismo
global? Ou será que foi o espírito de Getúlio Vargas? - aos amigos, tudo. Aos
inimigos a Lei (ou, no caso, protocolo).
O Cinegnose vai propor algumas hipóteses
desse súbito interesse tautista da Globo em protocolos médicos. Nesse caso, o
tautismo crônico da emissora poderia ter sido bem seletivo.
(a) AVC político
Hipótese do jornalista Paulo Henrique Amorim
– clique aqui. Para ele, o AVC de Dona Marisa
vai para a conta do juiz Sérgio Moro: a casa de Lula foi invadida pela PF de madrugada,
o colchão revirado em busca de dinheiro, passaporte ou qualquer coisa, os
filhos perseguidos e o marido levado em condução coercitiva. A pressão vivida
por Dona Marisa Letícia nos últimos tempos foi irresistível: além de Lula, ela própria foi
acusada por “crimes” como, por exemplo, comprar pedalinhos para os netos.
Portanto, todos os eufemismos foram uma
estratégia para desvincular a perseguição política ao AVC, evitando qualquer
tipo de compaixão para com a vítima e seus familiares.
(b) Lula vai ser preso
O juiz Sérgio Moro está próximo da decisão de
mandar prender Lula. Na eminência de ver concretizado seu objeto de desejo
político, a Globo não pode involuntariamente humanizar a imagem do futuro e
mais importante prisioneiro depois de anos de cobertura exaustiva da Lava
Jato.
E o que é pior: com a morte de Marisa
Letícia, criar empatia na opinião pública com o sofrimento de Lula. O fator reação
popular é uma das variáveis calculadas por Moro e sua força tarefa de Curitiba.
Sendo a TV Globo o cão Cérbero que guarda o inferno do bombardeio midiático
diário, seria um erro fatal e indesculpável.
Por isso, a cobertura deve ser a mais
anódina, sedante, paliativa e mais insignificante possível. Evitar que o drama
pessoal de Lula se transforme no pavio que seja aceso com a futura prisão.
(c) Sebastianismo e Eleições 2018
Assim como a Globo jamais fala da Fórmula
Indy (produto esportivo da emissora concorrente Band), também deve evitar
pautas positivas ou humanas do atual maior inimigo político – no passado era
Leonel Brizola. Principalmente com a proximidade das eleições presidenciais no
próximo ano.
Os analistas políticos da emissora, assim
como o juiz Sérgio Moro, sabem que Lula é a maior expressão moderna do
sebastianismo na política brasileira – mito que se arraigou no Nordeste com
Antônio Conselheiro no início do século XX e assumiu diversas modulações na
política brasileira. A crença de que a morte pode render uma dimensão
messiânica a um personagem.
Um exemplo recente foi a morte do candidato à
presidência Eduardo Campos pelo PSB (outro em acidente aéreo). A canonização post mortem do candidato revolucionou a
campanha, agigantando sua vice, Marina Silva, que se tornou um desafio mais
arriscado e inesperado para Dilma Rousseff.
Uma cobertura com viés mais humanizante da
morte de Marisa Letícia pela grande mídia poderia ser um tiro no pé: Lula
poderia se transformar no herói redimido pela dor da morte da sua própria
mulher. O espírito da mulher guerreira incorporado em Lula, o mito condutor da
Nação.
(d) Tática diversionista
Essa estratégia é comum nos telejornais da
emissora, mas agora parece que sua aplicação está intensificada nesse início de
2017.
Temas desconfortáveis para a Globo, obrigada
a cobrir porque, afinal, vivemos numa suposta democracia, são abordados de
maneira diluída, muitas vezes de maneira propositalmente confusa e
contraditória, para desviar a atenção. A tática do diversionismo é eficaz
porque, naturalmente, telespectadores possuem uma recepção muito mais dispersa
comparado com outros meios de comunicação – sobre isso clique aqui.
Por exemplo, o aumento das tarifas dos ônibus
em São Paulo foi suspensa em decisão liminar do Tribunal de Justiça. O Governo
do Estado ignorou e manteve aquilo que chamava de “redução de descontos” nas
tarifas (expressão diligentemente reproduzida como um mantra pelo SPTV da
Globo). Entre idas e vindas, suspensões e voltas dos reajustes, o noticiário simplesmente
abandonou a pauta.
Ou na oportuna morte de Teori Zavascki no
Triângulo das Bermudas da política brasileira em Paraty (sobre isso clique aqui) no qual as especulações sobre quem seria o próximo relator das delações
da Lava Jato STF desviaram a atenção das investigações sobre as causas do
acidente aéreo. Até que o andamento das investigações simplesmente desapareceu
da escalada dos telejornais.
O adiamento da palavra “morte” e o inusitado
apego aos protocolos médicos, diluíram o conteúdo político do falecimento da
Dona Marisa Letícia. Só na edição do dia seguinte do JN, Burnier, novamente com
a fachada do Sírio Libanês como fundo, foi autorizado pelos protocolos a
anunciar a palavra “morte” definitiva. Uma estranha morte em câmera lenta que
ocupou duas edições do telejornal.
No final, o obituário de Dona Marisa Letícia concluiu
a tática diversionista: um vídeo como uma espécie de versão à esquerda do
clichê “bela-recatada-do lar” da Era Temer – enquanto Lula “viajava” (para
quê?), Marisa Letícia ficava em casa “bordando, costurando e estampando
camisetas” (qual o propósito?)...
(e) Corrente de Esperança
Não sejamos tão negativos e implicantes com a
Globo. Vamos a uma hipótese Pollyana... Quem sabe que esse deliberado adiamento da morte de Dona Marisa Letícia
foi uma tentativa de criar uma corrente de fé e esperança de petistas e
simpatizantes em frente ao Sírio Libanês. Assim como os fãs de Leandro em
frente ao Hospital São Luiz em 1998, que passaram a noite com velas na mão
rezando pela cura do astro da música sertaneja diante das câmeras da Globo.
Porém, parece que não deu muito certo:
repórteres e câmeras de emissoras de TV foram escrachados por militantes
petistas enquanto o desinterino Temer entrava no hospital sob gritos de “assassino”.
Temer chegava para prestar condolências a Lula pela morte de Dona Marisa
Letícia... ou será que foi pela “ausência de fluxo cerebral”?...
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