Em 1983 Sérgio Chapelin deixou a Globo para apresentar o “Show Sem
Limites” no SBT. Mas depois voltou ao telejornalismo global. Agora a migração
para o entretenimento não tem mais volta: tudo começou com Fausto Silva nos
anos 80 e atualmente a tendência cresce com Fátima Bernardes, Pedro Bial,
Patrícia Poeta, Britto Jr., Ana Paula Padrão, Zeca Camargo e o recente anúncio
da saída definitiva de Tiago Leifert do jornalismo esportivo para um programa
de entretenimento na TV Globo. Como explicar essa onda migratória? Maneira mais
fácil de ganhar dinheiro com merchandising? Mas também pode representar o sintoma de
um duplo fenômeno que assola um jornalismo terminal diante do crescimento das
tecnologias de convergência: o infotenimento (informação + entretenimento) e o
tautismo (tautologia + autismo).
Quando o
colombiano Juan Carlos Osorio chegou ao Brasil para ser o novo técnico do São
Paulo Futebol Clube, ao vivo o jornalista Tiago Leifert não se conteve : “vamos
fazer uma matéria especial com Osorio, ele é um personagem!”, disse o
apresentador do Globo Esporte, sobre um
técnico com o seu curioso método de entregar bilhetes aos jogadores, escritos
ora com caneta vermelha, ora com caneta azul... canetas que depois são enfiadas
em cada meia.
Essa é uma pequena
amostra do atual modus operandi do
jornalismo baseado não mais em relatos de acontecimentos, mas que agora está em
busca de casos e personagens como se editores e repórteres se assemelhassem a
roteiristas ou produtores de cinema.
Veremos também
como essa pequena amostra nos revela o porquê da tendência crescente de
jornalistas migrarem para os programas de entretenimento.
Leifert é o
exemplo mais recente - anunciou que vive seus últimos dias no jornalismo
esportivo para embarcar num programa de entretenimento nas manhãs de sábado,
junto com Patrícia Poeta, a ex-companheira de William Bonner na bancada do Jornal Nacional. Fátima Bernardes,
também egressa do telejornalismo global, completa três anos comandando outro
programa de entretenimento nas manhãs. Sem deixar de lembrarmos de Pedro Bial,
ex-correspondente internacional que passou a fazer crônicas ao vivo no reality
show Big Brother e, nas horas vagas,
escrever a biografia do próprio patrão.
E essa migração
não se resume apenas à TV Globo: Britto Jr (ex-jornalista global) foi para a Record
também para apresentar reality shows e programas femininos. Ana Paula Padrão
(também ex-global) abandonou a bancada de telejornal para apresentar o
reality-bullying gastronômico MasterChef
na Band. Ou ainda o caso mais antigo de Fausto Silva que depois de largar o
jornalismo esportivo, foi apresentar o Perdidos
na Noite em 1985 na TV Gazeta e depois passou pela Record e Band. Hoje
apresenta o Domingão do Faustão na
Globo desde 1990.
Por que essa recorrência
de jornalistas migrando para programas de entretenimento como um caminho sem
volta? Forma fácil de ganhar dinheiro com a possibilidade de merchandising?
Fugir das pressões inerentes a atual condição da grande mídia como principal
oposição ao Governo Federal? Gosto por desafios? Fugir da obrigação de fazer
perguntas impostas pelo Ali Kamel?
Jornalista como protagonista da “notícia”
Acreditamos que
possa ser tudo isso, mas há alguma coisa na evolução da TV que cada vez mais
facilita essa migração.
Certa vez o
dramaturgo Bertolt Brecht na sua obra Breve
Organum para o Teatro denunciou o “deplorável hábito” do teatro burguês
fazer com que o ator principal “estrele”, fazendo os outros atores servirem de
“escadinha” para ele. Com o duplo fenômeno que assola o telejornalismo atual (o
“infotenimento”- informação + entretenimento; e o tautismo – tautologia +
autismo), as diferenças entre caso e acontecimento, ficção e notícia estão
desaparecendo. Similarmente o que ocorre na indústria do entretenimento onde
atores principais “estrelam”, no jornalismo as “notícias” engendram sua própria
hierarquia.
Bertolt Brecht: o "deplorável hábito burguês da estrela" |
A superioridade do
apresentador está estruturada no próprio noticiário. Ele deixa de ser um mero
apresentador para ser o protagonista da informação. Como as estrelas de uma
produção teatral ou cinematográfica que transformam os coadjuvantes em escadas
das suas performances, como denunciou Brecht, os jornalistas procuram casos e
personagens que sirvam de apoio para uma espécie de informalidade
autoconsciente que domina o telejornalismo.
O teleprompter (TP) e a centralidade da
notícia em repórteres e apresentadores (o fim da locução em off e da estética
documental) foi o início dessa intensa metalinguagem que domina o
telejornalismo: no estúdio as mudanças de tom de voz, gestos, orquestração de
sorrisos, delicados movimentos de sobrancelhas e ênfases transformam o
jornalista em ator; e nas ruas o repórter transforma-se em diretor de cena,
procurando transformar a notícia em caso e o cidadão comum em personagem,
tentando encaixar os eventos a uma meta-narrativa já definido anteriormente nas
redações.
As reuniões de
pauta parecem cada vez mais se assemelhar à produção de scripts ou roteiros.
Narrativas ficcionais em busca de personagens. É a consequência de dois
sintomas: um da evolução do jornalismo (o infotenimento) e outro o sintoma da
proximidade do fim do próprio jornalismo das grandes mídias com as tecnologias
de convergência – o tautismo.
A auto-ilusão do tautismo
Em tempos de crise
diante do rápido crescimento das tecnologias de convergências (dispositivos
móveis e Internet) a grande mídia reage com uma espécie de negação ou auto-ilusão
que chamamos de tautismo: o mal dos sistemas complexos que criam um “fechamento
operacional” onde qualquer informação externa é traduzida por descrição que o
sistema faz de si mesmo – aprofundamento sobre esse conceito clique
aqui.
Esse fenômeno
começou com a hipertrofia das metalinguagens, a começar pela estruturação do
jornalismo em torno de estrelas que tornam-se os protagonistas da informação.
Tal como a estrela de Brecht, os personagens e os casos parecem trabalharem para
eles. Tornam-se escada para os jornalistas, confirmando seus roteiros de forma
tautológica.
Globo Esporte: metalinguagem com o próprio apresentador ocupa cada vez mais espaço sobre a notícia |
O caso do
telejornal Globo Esporte era evidente: em certas edições, mais da metade da
pauta girava em torno de apostas, pequenos desafios ou brincadeiras que o
apresentador propunha a jogadores de futebol nos centros de treinamento ou nas
suas próprias residências ao vivo ou em matérias gravadas.
Com isso, o mundo
ao redor com seus acontecimentos tornam-se apenas “casos” que apenas ocorrem
para serem televisionados, como ficou claro no tom da Retrospectiva Jornal
Nacional 50 Anos de Jornalismo. A TV torna-se tão autista que, como todo e
qualquer sistema, tenta manter o equilíbrio (homeostase), expurgando qualquer
possibilidade de crise, como demonstrou a opinião do diretor-geral da Globo
Carlos Schroder sobre os baixos índices da novela Babilônia: “algo na trama não
funcionou” – clique
aqui. Schroder não consegue perceber que a TV tal como conhecemos corre
rápida para o fim.
Esse tautismo
poderia estar na base da intensificação dessa corrente migratória de jornalistas
para o entretenimento. Movimento autofágico assim como os processos catabólicos
- sob condições extremas de fome, o corpo entra num processo de degradação e
começa a consumir seu próprio tecido muscular. Seria essa a condição atual da
grande mídia?
Semioticamente não existem mais diferenças entre "Vídeo Show" e "Jornal Nacional" |
Infotenimento: o prazer da “notícia”
Mas também essa
tendência migratória é uma decorrência natural da transformação do jornalismo
em “infotenimento”. Se no passado o jornalismo dividia as notícias em hardnews (o mundo “duro” da política e
economia) e os faits divers (notícias
frias e diversas), agora uma preocupação se impõe: não importa se as notícias
sejam boas ou más, se elas agridam ou não a sensibilidade ideológica ou individual
– a experiência do noticiário deve ser sempre agradável, proporcionar o prazer
do entretenimento. Vender a ideia de que os momentos dedicados à leitura ou
assistir a um telejornal tenham valido a pena.
Por exemplo,
assistir a um telejornal atualmente equivale
à mesma experiência de assistir a um programa como Vídeo Show: a produção de notícias parece ser um mundo de atividade
lúdica, onde todos parecem se divertir e o trabalho se transforma sempre em
brincadeira. A informalidade autoconsciente da bancada passa uma atmosfera de
amável camaradagem e qualquer percalço técnico arranca uma tempestade de risos.
Agora os
apresentadores caminham pelos estúdios, contracenam com chroma key e telões, sentam em cadeiras para entrevistas como
estivessem numa sala de estar e tentam criar formas de interação com
espectadores por meio de Twitter ou Waze. Chamam isso de “prestação de
serviços, mas cada vez mais os telejornais se assemelham a revistas televisivas
onde em um mesmo bloco podemos ir do riso ao choro, da indignação à emoção
pelos “relatos de superação”.
Semioticamente não
há mais diferenças entre as linguagens de um telejornal de hardnews, um programa metalinguístico como Vídeo Show ou uma revista televisiva como o Domingo Espetacular da Record.
Podemos chamar isso
de processo catabólico da lenta agonia da grande mídia.
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