O tema da viagem no tempo no cinema certamente é aquele em cujo pressuposto está uma das grandes discussões da Filosofia: livre-arbítrio X determinismo, a esperança de que através da tecnologia o homem vencerá a entropia da seta do Tempo. Mas com o auxílio luxuoso do horror cósmico de HP Lovecraft, o filme “Intersect” (2020) encerra de vez essa esperança. Se a viagem do tempo moderna é quântica (múltiplas dimensões e timelines) ela se aproxima da mitologia Gnóstica dos “muitos céus” - em cada um deles, entidades malévolas chamadas “Arcontes” mantêm o homem na ilusão para aprisiona-lo no mundo material. Em “Intersect”, um grupo de jovens cientistas cria uma máquina do tempo. Para confirmar a mitologia gnóstica dos Arcontes: somos manipulados por forças invisíveis interdimensionais.
Em postagem anterior quando analisávamos o filme Color Out of Space (adaptação de obra do escritor de horror e fantástico HP Lovecraft), discutíamos como esse escritor gótico norte-americano caiu nas graças do cinema do século XXI – das 204 produções audiovisuais (entre longas, curtas e minisséries) 74% dos títulos estão nesse século – clique aqui.
Para este Cinegnose, as monstruosidades (o seu “horror cósmico”) de Lovecraft expressa o espírito do nosso tempo – cada monstruosidade, da literatura ao cinema, reflete o seu tempo. Dos monstros “duros” e mórficos da moralidade vitoriana do velho capitalismo (dráculas e frankensteins), Lovecraft descreve o Mal que mais se adequa ao espírito do novo capitalismo – dos fluxos virtuais da financeirização, cujos fenômenos econômicos se assemelham mais a dinâmica caótica de gases e fluidos do que a velha contabilidade matemática.
À frente do seu tempo, Lovecraft imaginou a monstruosidade metamórfica de criaturas híbridas entre animal e o humano. Assim como a hibridização atual eletrônico-neural promete o Pós-humano.
Mais do que imaginação estética, Lovecraft conseguiu expressar o Mal por trás dessa monstruosidade – o Horror Cósmico: a ideia gnóstica de que vivemos em um Universo indiferente. E o que é pior: criado e controlado por alguém (ou algo) que não nos ama. Não porque o Universo e seu criado sejam “maus”. Fazem simplesmente porque podem. Esse conceito está em filmes atuais, de Prometheus de Ridley Scott a O Farol, de Robert Eggers.
Talvez o último subgênero que restava para o horror de Lovecraft penetrar fosse o da viagem no tempo. Um tema que lida principalmente com a possibilidade do livre-arbítrio – desafiar a entropia do tempo-espaço, voltar para trás ou avançar para o futuro, criar uma segunda chance. Nem que tenha que enfrentar efeitos borboleta exponenciais.
Temos então o filme indie Intersect (2020), no qual três jovens cientistas criam uma máquina do tempo ainda muito experimental e precária. Capaz de transportar pequenos objetos, ainda enfrenta a instabilidade molecular orgânica – simplesmente, pequenos camundongos se dissolvem na viagem de volta... imagine então o que aconteceria com seres humanos.
São três nerds desajustados que passaram suas vidas tendo experiências de perdas, até serem resgatados por um professor com o dom de descobrir jovens gênios. Porém, o sucesso de finalmente transferir um pequeno roedor no tempo, traz junto algo indesejado: o horror lovecraftiano – há entidades interdimensionais (como sempre, metamórficas e com a indiferença cósmica em relação aos humanos, peculiar na obra de Lovecraft) que estão observando aquele incipiente desafio humano ao tempo-espaço.
E suas intenções não parecem nada boas.
Do horror cósmico da descoberta da indiferença do Universo com a existência humana, Intersectacrescenta mais um toque gnóstico: a Cosmologia basilidiana (do pensador gnóstico Basilides de Alexandria, entre 117 e 138 DC) de um universo estruturado em muitos “céus”, fazendo um paralelo atual com as teoria da Física quântica dos Mundos em Choque ou a hipótese dos Muitos Mundos de Hugh Everett em 1957.
Descobrir outros mundos dimensionais ao manipular o tempo-espaço não abrirá as fronteiras do livre-arbítrio. Pelo contrário, apenas descobriremos o quanto nossa existência é manipulada por uma rede pluridimensional.
O Filme
Intersect é um filme paradoxal: vemos pouca ou mesmo nenhuma viagem no tempo: tudo é apenas sugerido – objetos e camundongos desaparecem e reaparecem através de um aparelho que lembra o portal do filme Stargate (1994). Só que com bem menos orçamento. Porém, a verdadeira viagem no tempo está na própria narrativa.
O escritor e diretor Gus Holwerda descreve Intersect como “um filme de quebra-cabeças, composto com flashbacks dentro de flashbacks. Na verdade, só depois dos créditos finais, o espectador começa a pensar em como as peças vão se encaixando perfeitamente.
O filme tem uma narrativa não linear. Começa com um acontecimento terrível ocorrendo e que não é totalmente compreendido pelo espectador – alguém entrou com uma bomba nas dependências do prédio de “Ciências Temporais” e mantém alguém do grupo de pesquisas como refém.
O filme então recua no tempo várias vezes, mostrando sequências que contêm eventos que ocorreram antes dos eventos vistos anteriormente. Por isso, Intersect contém uma estrutura narrativa semelhante a Memento(2000) de Christopher Nolan.
Ao utilizar essa forma de contar histórias, a narrativa força o espectador a pegar as pistas certas nas cenas que vem logo depois, a fim de compreender totalmente as cenas que testemunharam antes.
A história começa mostrando os três protagonistas (Ryan – Jason Spisak; Nate – Abe Ruthless; Caitlin – Leeann Dearing) como cientistas de sucesso que retornam no tempo em sucessivos flashbacks no qual acompanhamos suas experiências de perdas e lutas para alcançar seus objetivos.
Chegando até a infância, para eventualmente descobrirmos como foi inserida nas suas mentes o insight da viagem no tempo que concretizarão no futuro.
Nas sequências em que acompanhamos a infância dos protagonistas, o tom do thriller de ficção científica muda significativamente, transformando-se em uma história sobre romance escolar e bullying. Mas é também o momento em que o horror lovecraftiano começa a ganhar sentido em Intersect.
Livre-arbítrio X Determinismo – alerta de spoilers à frente
Surge Bill Marshall (James Morrinson), professor da Universidade Miskatonic – a universidade imaginária de obras do escritor HP Lovecraft. Bill é um professor especializado em buscar jovens talentos, genialidades socialmente disfuncionais, mas que possam dar grandes contribuições científicas.
O jovem Ryan é perseguido pela gang de brutamontes liderado pelo valentão Abner (Jose Rosete). Entre as fugas dos bullyings de Abner, Ryan aterrorizado vê estranhas criaturas em uma viela, escondidas atrás de lixeiras urbanas – entidades sinistras interdimensionais que mais parecem insetos gigantes. Parecem observá-lo. Até que Nate, vindo do futuro numa sequência que acompanhamos no início do filme, surge desesperado exortando-o a não fazer a máquina do tempo no futuro!
Depois de uma noite comemoração e bebedeira, sem os seus companheiros saberem, Nate resolveu ser o primeiro humano a viajar no tempo, além dos camundongos. Desde então, está preso no tempo, procurando pelo seu amigo Ryan, para reencontrá-lo na infância. E parece ter descoberto que há alguma força sinistra interdimensional que manipula os seres humanos através de certas aberturas no tempo-espaço. E máquina do tempo no futuro criada por aqueles jovens nerds pode estar facilitando as coisas.
Aqui, o diretor e roteirista Gus Holwerda aproxima-se bastante da mitologia gnóstica. Não só pela Cosmologia basilidiana, mas também pela mitologia que envolve a existência de seres criados juntamente com o mundo material e subordinada ao Demiurgo como “regentes”, “magistrados” ou “chefes” dos diferentes “céus” (ou dimensões, no caso da Física). Na mitologia gnóstica, são seres, em geral, hostis e malévolos. Basilides falava em 365 arcontes, um para cada “céu”. Também são descritos como anjos maliciosos criados pelo Demiurgo para auxiliá-lo, por meio das armas do mal e da ilusão, a manter o homem aprisionado no interior dos círculos da matéria.
Inisidiosos, alimentam a ilusão do livre-arbítrio, como se o homem agisse dentro dos seus próprios desígnios e ideais. Mas lembrando o conceito de “meme” do biólogo e escritor inglês Richard Dawkins (que, aliás, participa no filme dando a voz à inteligência artificial da máquina do tempo), nós não temos ideias, são elas que nos têm como “memes” ou formas virais que nos transformam em hospedeiros.
As sinistras entidades interdimensionais inserem secretamente insights em nossas mentes para manipular o destino.
Dessa maneira, a grande novidade de Intersect é trazer esse niilismo lovecraftiano em um subgênero que trata desse que é um dos grandes temas filosóficos: livre-arbítrio X determinismo. É esse antagonismo que pulsa no tema da viagem no tempo, e a esperança de que, através da tecnologia, o livre-arbítrio supere a seta entrópica do tempo.
Mas com o luxuoso auxílio de HP Lovrecraft, Intersect destrói essa pretensão.
Ficha Técnica |
Título: Intersect |
Diretor: Gus Holwerda |
Roteiro: Gus Holwerda |
Elenco: James Morrison, Jason Spisak, Abe Ruthless, Leeann Dearing, Jose Rosete |
Produção: Black Chalk |
Distribuição: 1091 Media |
Ano: 2020 |
País: EUA |