Embora inspirado em um conto do gnóstico escritor Philip K. Dick, o filme “Os Agentes do Destino” (The Adjustment Bureau, 2011) ignora o principal elemento da narrativa original: o horror metafísico do protagonista ao descobrir que o tecido da realidade se abriu e que, por trás, há um jogo cósmico onde somos meros fantoches.O resultado é o conservadorismo que elimina o que há de mais importante na religião: a experiência "numinosa".
Desde a década de 80, Hollywood passou a ter um súbito interesse na obra do escritor de ficção-científica norte-americano Philip K. Dick. A partir do filme Blade Runner – O Caçador de Andróides (Blade Runner, 1982) baseado no livro “Do Androids Dream of Eletric Sheep?”, seguiram-se uma série de filmes inspirados em contos e livros do autor como o filme “O Pagamento” (“Paycheck”, 2003 – baseado no conto “Paycheck”), “Minority Report” (2002, baseado no conto “The Minority Report”) e “O Homem Duplo”(A Scanner Darkly, 2006 – baseado em livro homônimo).
O interesse pela obra de K. Dick (tão marcada pela paranoia e pela exploração gnóstica de realidades alucinógenas, a luta do indivíduo contra autoridades cósmicas superiores e o questionamento da moralidade convencional) demonstrou o interesse hollywoodiano em promover nas telas comerciais um gnosticismo pop, cujo auge foi a trilogia “Matrix”.
Todos os exemplos citados acima de adaptações da obra de K. Dick, foram bem sucedidas em manter o cerne gnóstico das suas especulações (o autor se autodenominava como “gnóstico”): a natureza artificial daquilo que entendemos como realidade e a luta do homem contra autoridades ou divindades cósmicas que não nos amam e tentam nos aprisionar numa gigantesca conspiração. Não é o caso desse filme “Os Agentes do Destino” que, embora mantenha a atmosfera paranoica e os personagens “agentes do destino” (referência aos chamados “arcontes” na mitologia gnóstica), elimina o que há de estruturante na obra de K. Dick: o horror metafísico diante da descoberta de uma conspiração cósmica que há por trás do tecido da realidade.
O conto original de Philip K. Dick publicado em 1954 |
Mas, antes de tudo, vamos a uma breve sinopse do filme. “Os Agentes do Destino” é baseado em um pequeno conto de K. Dick ("Adjustment Team") publicado pela primeira vez na revista “Orbit Science Fiction” de Setembro-Outubro de 1954. David Norris (Matt Damon) faz um jovem candidato democrata ao senado por Nova York onde tudo corre bem a vitória parece certa até que um tabloide publica fotos embaraçosas dele em uma festa nos tempos de universidade. Isso torpedeia sua campanha e, antes de admitir sua derrota em discurso oficial, conhece Elise (Emily Blunt), uma bailarina. Esse amor à primeira vista fará David ficar obcecado por ela e, tal qual a estória de Alice, acabará entrando num buraco do coelho e conhecendo uma bizarra realidade.
Nesse meio tempo, um grupo de estranhos homens compenetrados e elegantemente trajados em ternos e chapéus caminha numa cobertura de um prédio e observa a vista panorâmica de Nova York. São os “agentes do destino” cuja missão é corrigir pequenos desvios criados pelo acaso e fazer as vidas das pessoas mais importantes seguirem o trajeto previsto nos planos decididos pelo “Presidente” (o filme sugere ser o próprio Deus criador).
Um desses agentes se descuida em sua missão de atrasar David em cinco minutos para uma reunião na sua empresa. Ele chega à sala de reuniões pontualmente e encontra, surpreso, todos imobilizados (na verdade todos do prédio estão) como se o tempo estivesse parado e estranhos homens em ternos cinzas e pretos com bizarros equipamentos fazendo uma espécie de programação mental naqueles que participariam da reunião. David corre e é seguido pelos estranhos homens, até ser preso e todo o propósito dos agentes do destino ser explicado para ele: estão na Terra desde a antiguidade, fazendo ajustes para que sejam criadas cadeias de eventos que ajudem o planeta evoluir. Somente em dois momentos deixaram o homem livre para decidir, o que resultou em catástrofes: a peste negra na Idade Média e as duas guerras mundiais no século XX. Então, decidiram não mais conceder livre-arbítrio para a humanidade.
E o que é pior para David: seu amor por Elise é impossível, pois prejudicará a cadeia de eventos necessária para fazê-lo chegar à presidência e mudar o mundo (para melhor?). Portanto, a partir desse ponto David Norris viverá o dilema entre predestinação e livre-arbítrio. De início ele aceitará o desígnio cósmico, mas o acaso estranhamento os fará se reencontrar de novo para, dessa vez, David lutar pelo seu amor.
Os agentes ameaçam David de “reinicialização” (apagar sua identidade e memórias) caso denuncie a existência deles ou não obedeça a suas ordens.
O Horror Metafísico
O que surpreende negativamente nesse filme é que a narrativa simplesmente elimina do conto original de K. Dick o horror metafísico do protagonista, isto é, aquele sentimento do “numinoso” tal como descrito por Jung: “misterium tremendum et fascinas”, o elemento repulsivo do medo e tremor combinado com o que atrai e fascina. A base da experiência religiosa ou da gnose.
É surpreendente que David, após ter passado pela experiência de ter atravessado um lapso de tempo/espaço onde os agentes atuam, testemunhado a ação de ajustamento e conhecido os propósitos cósmicos deles, volte para a realidade e toque sua vida como empresário e político como se nada tivesse acontecido. Tal experiência numinosa, no mínimo, causaria uma desestabilização psíquica e paranoia. Uma experiência mística desse porte certamente o faria perder o interesse por uma realidade que, saberia, ser artificial e buscaria caminhos mais místicos ou religiosos para dar sentido a vida.
No conto de K. Dick o protagonista Ed Fletcher é um assalariado que chega atrasado ao seu emprego e testemunha, aterrorizado, a ação dos “ajustadores” em uma brecha de tempo/espaço onde tudo fica momentaneamente “desenergizado” e pessoas e objetos de desfazem em cinzas em meio a uma névoa mortícia. Descobre que toda a sua vida - sua realidade - foi misteriosamente reajustada por estranhos personagens. “Eu vi o tecido da realidade se abrindo”, fala aterrorizado Fletcher.
Esse horror metafísico gnóstico diante da descoberta da verdadeira natureza do “tecido da realidade” é eliminado do filme pelo conhecido clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”. Da mesma forma como David, após a experiência fílmica os espectadores voltarão para as suas vidas também como se nada tivesse acontecido. Toda a narrativa pretensamente gnóstica não é capaz de criar uma experiência numinosa que abale nossa rotina cotidiana.
Arcontes altruístas?
Esse horror metafísico de Fletcher no conto original de K. Dick é que põem o questionamento ético e moral na ação dos ajustadores. Em “Adjustment Team” o propósito deles é criar uma cadeia de eventos que diminuísse a tensão entre EUA e União Soviética (o conto foi escrito no contexto da Guerra Fria).
No filme “Agentes do Destino”, a preocupação dos agentes é quanto aos problemas ecológicos do planeta. A inexistência do horror metafísico do protagonista neutraliza qualquer discussão ética ou moral sobre a intromissão dos agentes na humanidade.
Em perspectiva, fica claro no filme o papel altruísta dos agentes que deram à humanidade o Renascimento, o Iluminismo, a Razão e a Ciência e, quando deixaram a humanidade andar sobre suas próprias pernas, ocorreram só catástrofes.
“Por 600 anos ensinamos vocês a controlar os impulsos com a Razão. Em 1910 nos afastamos e em questão de 50 anos vocês nos deram a I Guerra Mundial, a Grande Depressão, o Fascismo e o Holocausto. Levaram o mundo à beira da destruição com a crise dos mísseis em Cuba. Àquela altura decidimos intervir de novo”, explica o agente para David.
Se em K. Dick os ajustadores são Arcontes (personagens míticos gnósticos cuja função é a de regentes do Demiurgo que o auxiliam a manter a humanidade prisioneira), aqui são anjos secularizados (em elegantes ternos sob medida) que tentam nos ajudar, enquanto a humanidade é decadente e imperfeita (impulsiva e pecadora). O filme “Agentes do Destino” esvazia a crítica gnóstica e regride a narrativa de K. Dick ao simplismo do conservadorismo religioso.
A discussão sobre predestinação versus livre arbítrio na luta de David em manter o seu amor por Elise é mera cortina de fumaça dessa regressão religiosa sobre uma obra gnóstica de K. Dick.
As linhas de diálogo finais do agente dissidente Harry Mitchell (Anthony Mackie) que tenta ajudar David a reencontrar Elise é de uma platitude típica do discurso da literatura de autoajuda mesclado com o conservadorismo religioso. A moral é esta: “enquanto não souberem superar os obstáculos e usar o livre-arbítrio como um dom, talvez, um dia, não escreveremos o Plano, vocês o farão. Acho que esse é o verdadeiro Plano do Presidente”, exorta Mitchell.
Em síntese, toda intervenção dos agentes é uma espécie de jogo cósmico criado pelo “Presidente” (Deus?) jogando com nossas vidas arbitrariamente para que aprendamos, na marra, o que nossas imperfeições não nos deixam ver. O melhor antídoto contra esse conservadorismo religioso hollywoodiano é lembrar do monólogo gnóstico final do personagem Milton (Al Pacino) no filme “O Advogado do Diabo” (Devil’s Advocate, 1997) :
“Deixem-me dar uma pequena informação pessoal sobre Deus. Deus gosta de observar . É um brincalhão. Ele dá ao homem os instintos mais incontroláveis e depois o que faz? Para o seu prazer pessoal, numa cósmica e particular sessão de risadas, ele estabelece as regras... vejam mas não toquem... toquem mas não provem... provem mas não engulam... e enquanto isso o que faz ele? Se rola de tanto rir!”Ficha Técnica
- Título: Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau)
- Diretor: George Nolfi
- Roteiro: George Nolfi baseado no conto "Team Adjustment" de Philip K. Dick
- Elenco: Matt Damon, Emily Blunt, Michael Kelly, Anthony Mackie
- Produção: Universal Pictures e Media Rights Capital
- Distribuição: United International Pictures (UIP)
- Duração: 106 min
- Ano: 2011
- País: EUA
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