“Irreversível” (Irréversible, 2002) é brutal e cruel. Assim como o Tempo, no qual todo momento de felicidade depende de uma linha tênue que é corroída pela entropia na medida em que avançamos para o futuro. O diretor franco-argentino Gaspar Noé nos mostra como a vida seria insuportável sem a inocência da nossa ignorância sobre o Tempo – uma estória contada em ordem cronológica invertida: começamos pelas cenas brutais e selvagens para recuarmos para as cenas calorosas e divertidas de um casal apaixonado cujas vidas estão prestes a ser alteradas para sempre. Gaspar Noé desconstrói tanto o tempo da narrativa cinematográfica (que nos deixa desarmados diante das sequenciais iniciais), quanto a nossa inocência diante do Tempo: a ilusão do livre-arbítrio diante do Tempo que tudo destrói.
“O tempo destrói tudo”. Esse é o aforisma que perpassa todo o controvertido filme Irreversível(Irréversible, 2002) do diretor franco-argentino Gaspar Noé – Enter The Void e o recente Climax, ambos já analisados por este Cinegnose aqui e aqui.
O Tempo parece ser sempre o tema subjacente nas produções do diretor: suas narrativas sempre focam acontecimentos que ocorrem num curto período de tempo, fazendo o espectador viver uma experiência imersiva em que dilata e intensifica a percepção temporal – em Enter The Void, a jornada espiritual de um drug dealer em Tóquio após ser assassinado sob efeito de LSD; e no filme Climax, os acontecimentos em uma trupe de dança após a audição preparatória.
A manipulação do tempo é a própria essência da narrativa cinematográfica, desde a invenção da montagem paralela em O Grande Roubo do Trem (1903) – a alternância entre duas sequências que estão ocorrendo simultaneamente. Porém, o tempo hollywoodiano é linear no qual transforma o espectador no chamado “olho de Deus”, porque a montagem o faz pairar sobre a narrativa, muitas vezes tendo informações privilegiadas muito além do protagonista. Conseguindo antever o que acontecerá com o pobre herói.
Nesse sentido, a narrativa clássica hollywoodiana realmente destrói a experiência do tempo, ao garantir ao espectador um lugar privilegiado, como num olhar de sobrevoo que o mantém protegido das experiências do filme, sejam elas brutais, alegres ou eróticas – experiências que podem ser “excessivas”, potencialmente prejudicando a cotidianidade do espectador. As relações convencionais causa-efeito nos tranquilizam. Toda causa gera um efeito.
Mas não em Gaspar Noé. Em Irreversível, o diretor leva às últimas consequências a inversão narrativa de filmes como Betrayl (1983, sobre uma estória de amor que termina – ou começa – com traição) ou Amnésia(2000, que começa com a solução de um assassinato e rastreia o passado e a origem). As primeiras cenas já são as mais polêmicas do filme: os golpes sucessivos com um extintor que esmaga um rosto de um homem e a longa sequência de um sangrento estupro (oito minutos) – cenas com a câmera em longa sequência, sem cortes, como se fosse esquecida na cena.
Ainda não sabemos as causas de tanta violência. Somos pegos desarmados e tudo parece gratuito – na primeira exibição em Cannes, houve vômitos e abandonos da sala de exibição. Ao colocar a feiura no início, Noé nos obriga a pensar seriamente (e de forma reversa) nos motivos de tanta violência sexual envolvida. O filme não termina no estupro como clímax, mas nos manda para fora do cinema como algo fosse comunicado. A inexistência de causalidade não nos protege no olhar de sobrevoo da montagem – somos obrigados a ter uma relação imersiva e intensiva com as cenas para refletir os acontecimentos.
Mas em Irreversível há algo além da metalinguagem desconstrutivista da narrativa: o Tempo destrói tudo porque os momentos de felicidade parecem acontecer numa linha tênue, frágil. Nesse filme já há insights místicos que seriam desenvolvidos em Enter The Void: sonhos que podem ser premonitórios mas, pelos seus pesados simbolismos, mantêm-nos ignorantes em relação ao futuro – saber o futuro não seria uma benção, mas uma maldição. A vida seria insuportável sem a inocência da ignorância.
Dessa forma, Gaspar Noé não cai no clichê da “segunda chance” ao abordar o Tempo – e se os personagens fizessem outras escolhas? Em reverso, chegamos à conclusão que a entropia do tempo é irreversível, a “última jornada” como sugere em uma passagem ao focalizar um pôster de 2001 de Kubrick no início (ou o fim do filme) da jornada daqueles inocentes protagonistas.
O Filme – alerta de spoilers à frente
Temos dois filmes completamente diferentes em Irreversível.
Se fosse contada em ordem cronológica, tudo começaria com um casal muito apaixonado: Alex (Monica Bellucci) e Marcus (Vincent Cassel). Os vemos relaxados e brincalhões na cama, fazendo sexo e compartilhando momentos. Temos cenas de nudez franca e livre - Bellucci e Cassel eram casados na época em que o filme foi feito e, por isso, estão à vontade um com o outro.
Logo depois vão para uma festa, Alex usando um vestido que não faz mistérios sobre seu corpo perfeito. Veríamos um homem dando em cima dela. “Como um homem pode deixar sua amante sair em público vestida assim... será que ele gosta de ver os homens se interessarem por ela?”, poderíamos nos perguntar. Conhecemos o melhor amigo de Marcus, Pierre (Albert Dupontel), que já foi amante de Alex.
Em seguida, seguimos Alex enquanto ela entra sozinha em uma passagem subterrânea sob uma movimentada avenida. Tudo se torna trágico quando ela é abordada por Le Tenia (Jo Prestia), um cafetão que brutal e impiedosamente estupra e a espanca em uma tomada de câmera fixa que continua indefinidamente e nunca corta.
E então seguiríamos Marcus e Pierre em uma busca por La Tenia sedentos de vingança, o que os leva a um clube underground gay chamado “Rectum”, onde um homem confundido com La Tenia e é espancado brutalmente com um extintor, novamente em uma tomada fixa que continua sem piedade, desta vez com um câmera de mão que parece participar da surra.
Teríamos então uma narrativa simples, cuja relação causa e efeito nos empurraria para a condenação moral de jovens irresponsáveis que, depois de uma noite de festa, álcool e drogas, tiveram o que mereceram. O final brutal, violento e revoltante nos faria mobilizar todos os mecanismos psíquicos de racionalização e defesa para que, tranquilos, saíssemos do cinema para retornarmos à rotina das nossas vidas.
Mas na forma invertida, nada disso é possível. As cenas brutais de início, com planos em espiral como se estivéssemos mergulhando na intensividade da cena, não surgem como “recompensas” de um clímax tradicional. Cria um tipo de interesse diferente nas cenas anteriores: o estuprador é punido antes do crime (mais irônico é que puniram o homem errado...); nas cenas da festa, o vestido sexy de Alex a faz parecer vulnerável e em perigo e que parece ter tomado a decisão errada ao abandonar a festa; para descobrirmos que Alex não é apenas um ser sensual e desprotegido – mas uma lutadora feroz com alto instinto de sobrevivência.
Enquanto a cronologia comum daria a nós a racionalização necessária para um final chocante, a narrativa invertida (cujo filme começa com os créditos finais) nos faz refletir sobre o quão são frágeis os nossos momentos diante da entropia da seta do tempo.
Em entrevista, Gaspar Noé afirmou que leu em um livro no qual Kubrick dizia que adorava usar no começo de um filme algum elemento de um filme anterior. Curioso que em Irreversível, a cena final (ou o começo da trágica jornada de Alex) conecta-se com o final de Enter The Void, de seis anos depois: o filme encerra com a tradicional tomada em espiral do espírito do traficante assassinado em uma maternidade, como se preparasse para a próxima reencarnação.
Irreversível termina com tomada semelhante, dessa vez girando sobre a cabeça de Alex, deitada no gramado e lendo um livro em um parque ensolarado ao som da Sétima Sinfonia Op. 92 de Beethoven – certamente ela já está grávida (coisa que já descobrimos em reverso): será o espírito que reencarnará para sua “última jornada”? Será que Enter The Void, de 2009, fez uma alusão em reverso com o filme de 2002, Irreversível?
Ficha Técnica |
Título: Irreversível |
Diretor: Gaspar Noé |
Roteiro: Gaspar Noé |
Elenco: Monica Belucci, Vincent Cassel, Albert Dupontel, Jo Prestia |
Produção: 120 Films, Canal + |
Distribuição: Lions Gate Films |
Ano: 2002 |
País: EUA |