segunda-feira, novembro 14, 2016

"Enter The Void", drogas e o Livro Tibetano dos Mortos


Um cineasta ateu que não crê em reencarnação faz um filme inspirado no “Livro Tibetano dos Mortos”. Essa é a principal virtude de “Viagem Alucinante” (“Enter The Void”, 2009) do diretor argentino Gaspar Noé. Dessa maneira, o diretor consegue demarcar a diferença entre filmes religiosos e doutrinários daqueles que nos desafiam a pensar. “Enter The Void” é tão extremo, sincero e desafiador como a produção anterior “Irreversível” (2002): as visões flutuantes sobre Tóquio a partir da alma do protagonista que foi mortalmente baleado sob efeito da droga DMT, acompanhando os três níveis de consciência pós-morte tais como descritas no livro tibetano. Neon e profusão de luzes de uma Tóquio que mais parece uma máquina de pinball vão acompanhar uma jornada espiritual de autoconhecimento em meio a sexo e violência.

Na história do cinema, os melhores filmes religiosos foram paradoxalmente feitos por ateus. Um exemplo é o filme Diário de um Pároco de Aldeia (Journal d’un Curé de Campagne, 1951) de Robert Bresson. Baseado em livro de um autor católico, o ateu Bresson conseguiu expressar a batalha existencial de um protagonista com sua fé em um dos melhores filmes religiosos do cinema.

Certamente se fosse feito por um católico, o filme seria apologético e doutrinário, voltando-se contra a própria propagação da fé.

O mesmo se aplica ao filme Enter de Void do diretor Gaspar Noé (Irreversível), inspirado no Livro Tibetano dos Mortos – ou Bardo Thodöl. É um texto sagrado do budismo tântrico tibetano, uma espécie de guia para a consciência pós-morte através das experiências a serem vividas entre a sua morte e o próximo renascimento.

Porém, Noé não crê em vida após a morte e muito menos em reencarnação. Embora a narrativa inteira do filme seja estruturado nos três níveis de consciência (ou “bardos”) de um ser senciente após a morte, segundo o livro tibetano, o diretor afirma que Enter The Void é apenas sobre alguém que é baleado enquanto está chapado com DMT (Dimethyltryptamina). Mostra sua própria morte enquanto sonha com a alma escapando da carne, porque ele quer manter a promessa feita para sua irmã de que jamais iria deixá-la.

“Não preciso acreditar em discos voadores para fazer um filme de marcianos chegando na Terra”, diz Noé.


DMT, o cérebro e a morte


Por isso, Enter The Void é um filme extremo, provocativo, sincero e desafiador. Um hipnótico design de áudio criado por um antigo sintetizador russo, ruas e prédios de Tóquio que parecem ter saído da cenografia do filme Tron ou de uma máquina de pinball, uma profusão de luzes feéricas em neon, sexo explícito e violência, créditos iniciais e finais em colossais fontes sans-serif e muito som industrial que lembra alguma coisa entre as bandas Einsturzende Neubaten e Nine Ich Nails.

Gaspar Noé tinha o projeto Enter The Void desde 1994, mas os produtores consideraram o filme muito caro e, o que é pior, cinematicamente irrealizável. Após o sucesso de Irreversível (2004), Noé conseguiu reunir recursos para este projeto: um filme técnica e filosoficamente ambicioso.

Inteiramente filmado em longos planos sequência sob o ponto de vista de quem foi baleado após fumar DMT (pesquisadores acreditam que o princípio ativo dessa droga seria liberado pelo próprio cérebro no momento da morte, criando alucinações) e que voa através da cidade de Tóquio como um fantasma.


São as visões de um olho flutuante de alguém aparentemente morto (Noé faz questão de tornar ambígua a morte do protagonista do começo ao fim) que observa cenas de horror, miséria e dor sem fim dos vivos.

Enter The Void é sobre a vida pós-morte que preocupa seja ateus, racionalistas ou religiosos – a vida pós-morte em que todos nós, sempre de algum ponto de vista, acreditamos (seja a sobrevivência física, espiritual ou apenas das ideias) e de como a vida das pessoas nesse mundo infeliz e turbulento ainda continua exercendo influência sobre aqueles que nos deixaram.

O Filme


Oscar (Nathaniel Brown) é um jovem traficante norte-americano que vive em Tóquio em um submundo de artistas, dançarinas e dealers. Tudo parece girar em torno de uma boate chamada “The Void” (“O Vazio”). Oscar recebe sua irmã Linda, após de anos de separação depois da morte traumática dos pais na infância. Graças ao dinheiro do tráfico, Oscar consegue pagar a viagem da irmã até Tóquio para se manterem juntos, uma promessa da infância perdida após a morte trágica dos pais.

Vemos então somente planos sequências a partir do ponto de vista de Oscar que apenas o conhecemos quando ele se coloca diante de espelhos. Junto com o seus amigo Alex (Cyril Roy), um desgrenhado e amável artista plástico, Oscar vai realizar uma entrega de drogas em um bar. Mas ele é traído pelo seu cliente que o denuncia à polícia. Desesperado e tentando se livrar da mercadoria, Oscar tranca-se em um banheiro até ser baleado mortalmente.


A partir desse momento, a “viagem” de Oscar começa a seguir estritamente as fases pós-morte descritas no Livro Tibetano dos Mortos, livro apresentado e descrito brevemente por Alex em sequência anterior.

O estilo de plano de câmera muda: agora não vemos mais a realidade a partir dos olhos de Oscar, mas vemos Oscar olhando para as costas de sua própria cabeça olhando para o passado.

Esse é o primeiro Bardo do budismo tântrico (“Chikai Bardo”): o momento da experimentação da “Luz Primordial”, que para muitos é “a luz no fim do túnel” de muitas experiências pós-morte em relatos científicos. Mas nada mais é do que o mergulho na consciência do próprio ser, um mergulho em si mesmo, o “vazio do coração” – daí o título que Gaspar Noé deu ao filme. Concentrar-se nessa luz é abandonar todos os afetos do Ego e atingir a consciência supra-mundana.

Sem a compreensão desse processo, o moribundo retornará ao ciclo de renascimentos.

Assim como descrito no livro tibetano, Oscar é atraído por essas luzes (neons, abajures, lâmpadas etc.) que, sem consciência, o protagonista as penetra como fossem “buracos de minhoca” que o colocam em lugares diferentes de uma Tóquio etérica e psicodélica.


As ilusões cármicas


Começa então o segundo Bardo (“Chönyid Bardo”): as ilusões cármicas. O conteúdo da mente é projetado tornando-se visível como um sonho. Oscar observa momentos da sua infância, a morte de seus pais, a proximidade obsessiva com sua irmã, o anseio sexualizado pela mãe perdida que termina encontrando expressão no caso com uma mulher mais velha em Tóquio etc.

Nesse nível de consciência pós-morte, o visível dependerá das crenças e criações mentais anteriores – as “formas-pensamento” para a Teosofia. Por exemplo, um cristão poderá vislumbrar imagens purgatoriais ou até mesmo do Paraíso. Serão experiências que variarão segundo a cultura e crenças.

O Livro Tibetano dos Mortos é justamente um guia para evitar a queda do ser nessas criações mentais – experiências de vida, crenças, memórias, pensamentos, sentimentos. Evitar que o ser, alienado de si mesmo sob o efeito da separação do corpo, seja capturado pelo próprio egoísmo. Aqui tomado não em sentido moral, mas puramente energético como prisioneiro das próprias formas-pensamento.

Muitos filmes PsicoGnósticos já abordaram essa experiência de prisão egoica como, por exemplo, A Passagem (Stay, 2005).

O momento máximo da prisão de Oscar nesse nível das ilusões cármica é quando a cidade de Tóquio se funde com a visões ilusória de uma maquete de neon criada por um amigo artista de Victor, em uma visão hiper-real da cidade.


Luzes e espirais


O leitor perceberá que a narrativa explora dois simbolismos importantes para a jornada espiritual: as luzes que podem ser tanto a forma da compreensão de si mesmo descobrindo o “vazio do coração”, o abandono do Ego e a decorrente união supra-cósmica – na literatura espírita, por exemplo, espíritos são atraídos por luzes como velas, assim como os insetos pelas lâmpadas; e a as espirais.

A espiral está na maquete em neon de Tóquio e nos insistentes movimentos circulares descendentes de câmera. Seja para o Budismo e mesmo para o xamanismo (representado pelo movimento da serpente), a espiral está associada à viagem espiritual da alma até a iluminação. Sua forma logarítmica (cresce de modo terminal sem se modificar) indica a permanência da alma (luz, essência) através das mudanças.

Nesse nível de consciência, que ocupa grande parte do filme, Oscar terá um duro aprendizado ao tentar separar as suas projeções mentais dos sofrimentos reais de todos que observa – principalmente a irmã, que torna-se dançarina de pole dance na boate “The Void” cujo proprietário é um sinistro mafioso, Mario (Masato Tanno).


O último Bardo – aviso de spoiler à frente


Aos poucos, o leitor perceberá que a narrativa prepara o espectador para o último Bardo (“Sidpa Bardo”): o bardo do renascimento e os estados psicológicos pré-natais.

Mas o ateu Gaspar Noé nos oferecerá um final ambíguo e angustiante. Para o diretor, as experiências do filme estão baseadas nas suas própria experiências no passado com DMT fumável e Ayahuasca. Por isso, toda a trajetória da consciência descrita pelo Livro Tibetano dos Mortos seria apenas descrições de um estado de loop temporal construído pelo próprio cérebro.

Quando vemos o bebê saindo da barriga da mãe, não fica claro se vemos o rosto da irmã (confirmado o laço cármico e a necessidade do renascimento) ou o rosto da própria mãe da infância perdida. Noé sugere a criação de uma falsa lembrança do momento traumático em que Oscar descobriu a luz e o oxigênio.

Essa ambiguidade é a grande virtude de Enter The Void: a viragem de um filme apenas apologético e doutrinário, para um filme que faz o espectador pensar.


Ficha Técnica

Título: Viagem Alucinante (Enter The Void)
Diretor: Gaspar Noé
Roteiro:  Gaspar Noé, Lucile Hadzihalilovic
Elenco:  Nathaniel Brown, Paz de la Huerta, Cyril Roy, Masato Tanno
Produção: Fidelité Films, Wild Bunch, BUF,
Distribuição: MPI Media Group
Ano: 2009
País: França, Alemanha, Itália, Canadá

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