Um cineasta ateu
que não crê em reencarnação faz um filme inspirado no “Livro Tibetano dos
Mortos”. Essa é a principal virtude de “Viagem Alucinante” (“Enter The Void”,
2009) do diretor argentino Gaspar Noé. Dessa maneira, o diretor consegue demarcar
a diferença entre filmes religiosos e doutrinários daqueles que nos desafiam a
pensar. “Enter The Void” é tão extremo, sincero e desafiador como a produção
anterior “Irreversível” (2002): as visões flutuantes sobre Tóquio a partir da alma do
protagonista que foi mortalmente baleado sob efeito da droga DMT, acompanhando
os três níveis de consciência pós-morte tais como descritas no livro tibetano.
Neon e profusão de luzes de uma Tóquio que mais parece uma máquina de pinball vão
acompanhar uma jornada espiritual de autoconhecimento em meio a sexo e
violência.
Na história do
cinema, os melhores filmes religiosos foram paradoxalmente feitos por ateus. Um
exemplo é o filme Diário de um Pároco de
Aldeia (Journal d’un Curé de Campagne,
1951) de Robert Bresson. Baseado em livro de um autor católico, o ateu Bresson
conseguiu expressar a batalha existencial de um protagonista com sua fé em um
dos melhores filmes religiosos do cinema.
Certamente se
fosse feito por um católico, o filme seria apologético e doutrinário,
voltando-se contra a própria propagação da fé.
O mesmo se
aplica ao filme Enter de Void do
diretor Gaspar Noé (Irreversível), inspirado no Livro Tibetano dos Mortos – ou Bardo
Thodöl. É um texto sagrado do budismo tântrico tibetano, uma espécie de
guia para a consciência pós-morte através das experiências a serem vividas
entre a sua morte e o próximo renascimento.
Porém, Noé não
crê em vida após a morte e muito menos em reencarnação. Embora a narrativa
inteira do filme seja estruturado nos três níveis de consciência (ou “bardos”)
de um ser senciente após a morte, segundo o livro tibetano, o diretor afirma
que Enter The Void é apenas sobre
alguém que é baleado enquanto está chapado com DMT (Dimethyltryptamina). Mostra
sua própria morte enquanto sonha com a alma escapando da carne, porque ele quer
manter a promessa feita para sua irmã de que jamais iria deixá-la.
“Não preciso
acreditar em discos voadores para fazer um filme de marcianos chegando na
Terra”, diz Noé.
DMT, o cérebro e a morte
Por isso, Enter The Void é um filme extremo,
provocativo, sincero e desafiador. Um hipnótico design de áudio criado por um
antigo sintetizador russo, ruas e prédios de Tóquio que parecem ter saído da
cenografia do filme Tron ou de uma
máquina de pinball, uma profusão de
luzes feéricas em neon, sexo explícito e violência, créditos iniciais e finais
em colossais fontes sans-serif e muito som industrial que lembra alguma coisa
entre as bandas Einsturzende Neubaten e Nine Ich Nails.
Gaspar Noé
tinha o projeto Enter The Void desde
1994, mas os produtores consideraram o filme muito caro e, o que é pior,
cinematicamente irrealizável. Após o sucesso de Irreversível (2004), Noé conseguiu reunir recursos para este
projeto: um filme técnica e filosoficamente ambicioso.
Inteiramente
filmado em longos planos sequência sob o ponto de vista de quem foi baleado
após fumar DMT (pesquisadores acreditam que o princípio ativo dessa droga seria
liberado pelo próprio cérebro no momento da morte, criando alucinações) e que
voa através da cidade de Tóquio como um fantasma.
São as visões
de um olho flutuante de alguém aparentemente morto (Noé faz questão de tornar
ambígua a morte do protagonista do começo ao fim) que observa cenas de horror,
miséria e dor sem fim dos vivos.
Enter The Void é sobre a vida pós-morte que preocupa seja ateus, racionalistas
ou religiosos – a vida pós-morte em que todos nós, sempre de algum ponto de
vista, acreditamos (seja a sobrevivência física, espiritual ou apenas das
ideias) e de como a vida das pessoas nesse mundo infeliz e turbulento ainda
continua exercendo influência sobre aqueles que nos deixaram.
O Filme
Oscar
(Nathaniel Brown) é um jovem traficante norte-americano que vive em Tóquio em
um submundo de artistas, dançarinas e dealers. Tudo parece girar em torno de
uma boate chamada “The Void” (“O Vazio”). Oscar recebe sua irmã Linda, após de
anos de separação depois da morte traumática dos pais na infância. Graças ao
dinheiro do tráfico, Oscar consegue pagar a viagem da irmã até Tóquio para se
manterem juntos, uma promessa da infância perdida após a morte trágica dos
pais.
Vemos então
somente planos sequências a partir do ponto de vista de Oscar que apenas o
conhecemos quando ele se coloca diante de espelhos. Junto com o seus amigo Alex
(Cyril Roy), um desgrenhado e amável artista plástico, Oscar vai realizar uma
entrega de drogas em um bar. Mas ele é traído pelo seu cliente que o denuncia à
polícia. Desesperado e tentando se livrar da mercadoria, Oscar tranca-se em um
banheiro até ser baleado mortalmente.
A partir desse
momento, a “viagem” de Oscar começa a seguir estritamente as fases pós-morte
descritas no Livro Tibetano dos Mortos,
livro apresentado e descrito brevemente por Alex em sequência anterior.
O estilo de
plano de câmera muda: agora não vemos mais a realidade a partir dos olhos de
Oscar, mas vemos Oscar olhando para as costas de sua própria cabeça olhando
para o passado.
Esse é o
primeiro Bardo do budismo tântrico (“Chikai Bardo”): o momento da
experimentação da “Luz Primordial”, que para muitos é “a luz no fim do túnel”
de muitas experiências pós-morte em relatos científicos. Mas nada mais é do que
o mergulho na consciência do próprio ser, um mergulho em si mesmo, o “vazio do
coração” – daí o título que Gaspar Noé deu ao filme. Concentrar-se nessa luz é
abandonar todos os afetos do Ego e atingir a consciência supra-mundana.
Sem a
compreensão desse processo, o moribundo retornará ao ciclo de renascimentos.
Assim como
descrito no livro tibetano, Oscar é atraído por essas luzes (neons, abajures,
lâmpadas etc.) que, sem consciência, o protagonista as penetra como fossem
“buracos de minhoca” que o colocam em lugares diferentes de uma Tóquio etérica
e psicodélica.
As ilusões cármicas
Começa então o
segundo Bardo (“Chönyid Bardo”): as ilusões cármicas. O conteúdo da mente é
projetado tornando-se visível como um sonho. Oscar observa momentos da sua
infância, a morte de seus pais, a proximidade obsessiva com sua irmã, o anseio
sexualizado pela mãe perdida que termina encontrando expressão no caso com uma
mulher mais velha em Tóquio etc.
Nesse nível de
consciência pós-morte, o visível dependerá das crenças e criações mentais
anteriores – as “formas-pensamento” para a Teosofia. Por exemplo, um cristão
poderá vislumbrar imagens purgatoriais ou até mesmo do Paraíso. Serão
experiências que variarão segundo a cultura e crenças.
O Livro Tibetano dos Mortos é justamente
um guia para evitar a queda do ser nessas criações mentais – experiências de
vida, crenças, memórias, pensamentos, sentimentos. Evitar que o ser, alienado
de si mesmo sob o efeito da separação do corpo, seja capturado pelo próprio
egoísmo. Aqui tomado não em sentido moral, mas puramente energético como
prisioneiro das próprias formas-pensamento.
Muitos filmes
PsicoGnósticos já abordaram essa experiência de prisão egoica como, por
exemplo, A Passagem (Stay, 2005).
O momento
máximo da prisão de Oscar nesse nível das ilusões cármica é quando a cidade de
Tóquio se funde com a visões ilusória de uma maquete de neon criada por um
amigo artista de Victor, em uma visão hiper-real da cidade.
Luzes e espirais
O leitor
perceberá que a narrativa explora dois simbolismos importantes para a jornada
espiritual: as luzes que podem ser tanto a forma da compreensão de si mesmo
descobrindo o “vazio do coração”, o abandono do Ego e a decorrente união
supra-cósmica – na literatura espírita, por exemplo, espíritos são atraídos por
luzes como velas, assim como os insetos pelas lâmpadas; e a as espirais.
A espiral está
na maquete em neon de Tóquio e nos insistentes movimentos circulares
descendentes de câmera. Seja para o Budismo e mesmo para o xamanismo
(representado pelo movimento da serpente), a espiral está associada à viagem
espiritual da alma até a iluminação. Sua forma logarítmica (cresce de modo
terminal sem se modificar) indica a permanência da alma (luz, essência) através
das mudanças.
Nesse nível de
consciência, que ocupa grande parte do filme, Oscar terá um duro aprendizado ao
tentar separar as suas projeções mentais dos sofrimentos reais de todos que
observa – principalmente a irmã, que torna-se dançarina de pole dance na boate “The
Void” cujo proprietário é um sinistro mafioso, Mario (Masato Tanno).
O último Bardo – aviso de spoiler à frente
Aos poucos, o
leitor perceberá que a narrativa prepara o espectador para o último Bardo (“Sidpa
Bardo”): o bardo do renascimento e os estados psicológicos pré-natais.
Mas o ateu
Gaspar Noé nos oferecerá um final ambíguo e angustiante. Para o diretor, as
experiências do filme estão baseadas nas suas própria experiências no passado
com DMT fumável e Ayahuasca. Por isso, toda a trajetória da consciência
descrita pelo Livro Tibetano dos Mortos
seria apenas descrições de um estado de loop
temporal construído pelo próprio cérebro.
Quando vemos o
bebê saindo da barriga da mãe, não fica claro se vemos o rosto da irmã
(confirmado o laço cármico e a necessidade do renascimento) ou o rosto da
própria mãe da infância perdida. Noé sugere a criação de uma falsa lembrança do
momento traumático em que Oscar descobriu a luz e o oxigênio.
Essa
ambiguidade é a grande virtude de Enter
The Void: a viragem de um filme apenas apologético e doutrinário, para um
filme que faz o espectador pensar.
Ficha Técnica |
Título:
Viagem Alucinante (Enter The Void)
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Diretor:
Gaspar Noé
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Roteiro:
Gaspar Noé, Lucile Hadzihalilovic
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Elenco:
Nathaniel Brown, Paz de la Huerta, Cyril Roy,
Masato Tanno
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Produção:
Fidelité Films, Wild Bunch, BUF,
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Distribuição:
MPI Media Group
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Ano:
2009
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País:
França, Alemanha, Itália, Canadá
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