domingo, novembro 25, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O filme “Matadouro 5” (Slaughterhouse Five, 1972) é um dos mais niilistas e desesperançados
filmes gnósticos: sem saída, o homem é prisioneiro no tempo e condenado por alienígenas a repeti-lo por toda a eternidade. O que torna o filme
“Matadouro 5” um clássico dos filmes com temática gnóstica é que ele inicia uma
crítica metafísica de fatos que tradicionalmente são abordados pelo viés da
crítica política ou social. No filme, a guerra não é mais enquadrada pela
crítica ideológica ou política, mas, agora, como mais um fato dentro de um
absurdo plano cósmico levado a cabo por demiurgos alienígenas.
"Matadouro 5" foi um dos filmes que mais impactaram a minha
adolescência nos anos 70. O filme, baseado na obra consagrada de Kurt Vonnegut
Jr. (escritor de ascendência germânica e falecido em 2007 nos EUA), é uma
mistura de II Guerra Mundial, viagens no tempo e alienígenas de um planeta chamado
Tralfamador. Uma mistura aparentemente bizarra que segue a linha do humor negro
e das obras anti-guerra ou pacifistas dessa época (filmes como “Ardil 22” -
Catch 22 de 1970, “Mash” de 1970 ou “Dr. Fantástico” - Dr. Strangelove, 1964 -
de Kubrick são outros bons exemplos).
O filme narra a vida do protagonista Billy Pilgrim, soldado
americano na II Guerra Mundial e sobrevivente ao infame bombardeio da cidade de
Dresden, na Alemanha, no final da guerra (para quem não sabe, Dresden não era
um alvo militar, mas acabou tornando-se vítima de pesado bombardeio aéreo
aliado que resultou em 135 mil mortos, o dobro de mortos de Hiroshima).
Assim como no filme “Sr. Ninguém”, aqui
a vida do protagonista é narrada de uma forma simultaneamente harmônica e
aleatória.
O filme inicia em momento no futuro,
onde Pilgrim datilografa uma carta ao editor de um jornal com a famosa frase
que abre o livro de Vonnegut: “Estou solto no tempo”. Pilgrim tenta explicar a
todos a sua estranha condição adquirida após ter sido abduzido por seres
alienígenas: ele não só navega no tempo através dos diversos momentos da sua
vida, mas todos os instantes são vividos simultaneamente.
Depois vemos Pilgrim no planeta
Tralfamador, aprisionado e exposto numa espécie de zoológico do planeta,
confortavelmente vivendo com uma atriz de filmes pornôs dos seus sonhos
(Montana Wildhack), e sendo observado pelos alienígenas. Lá Billy aprende o
modo de enxergar a vida e a morte dos tralfamadorianos. Para eles, uma pessoa
não morre, só parece morrer. Ela está morta apenas naquele momento. Em todos os
outros, em seu passado, está viva. Ninguém fica triste por uma morte. Basta
olhar para trás, para outro episódio da vida, e se transportar para lá. Para os
habitantes de Tralfamador a vida não tem começo, meio ou fim. Billy é um dos
poucos terrestres que compartilham essa capacidade, e ele passa toda a vida
sabendo como e onde vai morrer.
Sabe que vai sofrer um acidente aéreo e
sobreviver, e que sua mulher vai morrer envenenada por monóxido de carbono do
seu próprio cadillac. Sabe que será prisioneiro de guerra em Dresden (no campo
de concentração “Matadouro 5”) e que, lá, será jurado de morte por Paul Lazzaro
(psicopata com ideia fixa de criar uma lista de inimigos que devem ser
assassinados por ele) que será o seu algoz no futuro.
Billy observa milhares de vezes os
mesmos episódios, sem conseguir alterá-los. E como conviver com essa estrutura
do tempo eterna e repetitiva? “Uma forma agradável de passar a eternidade é
ignorar os maus momentos e concentrar-se nos bons”, dizem os alienígenas.
Pilgrim passa a eternidade revivendo bons momentos e saltando pelos fatos
desagradáveis.
Tempo Moderno e Pós-Moderno no Cinema
Em primeiro lugar é marcante como o
tempo é representado nesse clássico do início dos anos 70: aqui, o tempo é descrito
de forma aleatória, porém harmônica. Podemos voltar aleatóriamente no tempo,
mas não podemos alterar a cadeia de eventos. É a representação modernista do
tempo presente em outros clássicos como “A Máquina do Tempo” (Time Machine,
1960) ou a série Cult de TV “O Túnel do Tempo” (Time Tunnel, 1966) dos
anos 60. Somos meros observadores de fatos que se repetirão por toda
eternidade.
Já em filmes como “Sr. Ninguém” ou “O
Efeito Borboleta” (The Butterfly Effect, 2004), temos a representação
pós-moderna do tempo: não só podemos viajar pelo tempo como podemos alterar
eventos, criando futuros alternativos que convivem simultaneamente em linhas
paralelas. O tempo como um hipertexto. E esses futuros alternativos podem se
tocar a partir de desvios, como linhas de trem que correm paralelas.
E o que Pilgrim testemunha por toda
eternidade? Os fatos que fizeram o tempo se movimentar são estúpidos,
aleatórios, destituídos de sentido ou propósitos: a inexplicável fixação de
Paul Lazzaro em matá-lo, o professor americano que morre fuzilado por pegar uma
caixa de música dos escombros de Dresden e ser confundido com um saqueador, a
tragicômica morte da esposa asfixiada pelo monóxido de carbono, a abdução
inexplicável pelos alienígenas e assim por diante.
O filme é dominado por episódios sem
sentido, o que dá uma atmosfera constante de ironia e humor negro. Os próprios
alienígenas sabem como o universo acabará, por meio de mais um evento
igualmente estúpido (acidentalmente um Tralfamadoriano vai apertar um botão errado
e mandará tudo pelos ares)
Pilgrim observa tudo conformado, muitas
vezes apático e alienado, como um condenado a uma sentença eterna.
Um filme gnóstico sem Gnose
“Matadouro 5” contém os clássicos
elementos de uma narrativa gnóstica. Em primeiro lugar o caráter artificial da
realidade como uma construção de eventos aleatórios e despropositados. A
elaborada narrativa fílmica através de elipses e metonímias (por exemplo,
passagens de tempo feitas a partir de closes de objeto que dá início a uma nova
sequência temporal ou áudio de sequência anterior que se mescla com a próxima
sequência temporal) dá o aspecto artificial ou de desconstrução da vida de
Pilgrim (ele está “solto no tempo”).
Além disso, Pilgrim está condenado a
viver nessa estrutura temporal repetitivamente (não há “como” ou “por que”, as
coisas simplesmente “são”, como afirmam os alienígenas). Para os
Tralfamadorianos não há livre arbítrio no Universo (somente no planeta Terra os
humanos criaram essa ilusão, dizem).
A própria vida de Pilgrim é uma
sucessão de prisões (no Matadouro 5 durante a guerra, casado com a filha do
dono da escola de optometria onde estudava e, no final, preso no zoológico
planetário de Tralfamador).
Pilgrim complacentemente observa a tudo
com um olhar perdido. A certa altura ele até tenta, por meio de palestras ou
cartas dirigidas aos veículos de imprensa, denunciar a estrutura artificial e
aprisionadora do tempo criada pelos Tralfamadorianos. Mas é considerado louco,
vitima de traumas de guerra, necessitando urgentemente de cuidados
psiquiátricos.
Os alienígenas são os Demiurgos, seres
de uma quarta dimensão (no filme apenas ouvimos suas vozes em off) que montam
um zoológico cósmico apenas para observar seres aprisionados na estrutura
cíclica do tempo.
Ao contrário do filme “Sr Ninguém”,
onde há a possibilidade da gnose e a superação da prisão temporal (suspendendo
todas as escolhas dadas e criando a sua própria alternativa), em “Matadouro 5”
há um profundo niilismo e desilusão. Sem saída, Pilgrim vive uma existência
solipsista: reviver apenas os bons momentos enquanto está aprisionado com a
atriz pornô dos seus sonhos.
O que torna o filme “Matadouro 5” um
clássico dos filmes gnósticos é que ele inicia uma crítica metafísica de fatos
que tradicionalmente são abordados pelo viés da crítica política ou social. No
filme, a guerra não é mais enquadrada pela crítica ideológica ou política, mas,
agora, como mais um fato dentro de um absurdo plano cósmico levado a cabo por
demiurgos alienígenas.
Ficha Técnica
Título Original: Slaughterhouse Five
Diretor: George Roy Hill
Roteiro: Stephen Geller baseado no livro
de Kurt Vonnegut Jr (1969)
Elenco: Michael
Sacks, Ron Leibman, Eugene Roche, Valerie Perrine, Sharon Gans
Produção: Universal Pictures e Vanadas Production
Inc
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Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
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No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
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Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>