Uma comédia leve e
despretensiosa. Não fosse o filme francês “Perdido entre Dois Mundos” (Les Deux
Mondes, 2007) estar inserido em uma recente recorrência de filmes que
desenvolvem o tema da “segunda chance”, passaria despercebido. Mas não é o
caso. A cinematografia recente vem
intensificando a exploração do tema em que se narra a possibilidade de o protagonista ter uma segunda chance
(seja através do deslocamento no tempo
ou migrando para mundos alternativos) para se redimir de erros do passado ou do
presente. Nesses filmes a fuga para outras dimensões não é mera fantasia
escapista para atender aos sonhos dos espectadores. Pretendem ser “inspiradores
e motivacionais” para convidar os espectadores à necessidade de transformações
íntimas, segundo produtores e diretores. Essa tendência cinematográfica
realmente seria “inspiradora” ou apenas refletiria um mal estar psíquico numa
cultura influenciada por modelos de sucesso e bem estar da literatura de
autoajuda e motivacional?
Passamos metade da vida
cometendo erros. E a outra metade tentando corrigi-los. Esse é um provérbio que
sintetiza um tema recorrente na literatura e no cinema: o tema da segunda
chance. Seja no amor, no trabalho ou simplesmente nas pequenas decisões que
criaram catástrofes no futuro. De obras literárias como “A Christmas Carol” de
Charles Dickens do século XIX (fantasmas oferecem uma segunda chance para o
velho sovina e de coração duro chamado Sr. Scrooge) até séries como “Lost” onde
sobreviventes de um acidente aéreo tentam se redimir dos seus erros e pecados
do passado em uma ilha perdida.
Esse tema se relaciona
diretamente com a questão do tempo e da possibilidade de entrarmos em uma
dimensão alternativa que nos liberte do ônus dos nossos erros desse mundo. No
século XIX na literatura esse tema se intensifica por motivos que exigiriam uma
análise mais profunda (poderia a aceleração da vida moderna nas primeiras
metrópoles – Paris, Londres etc. – ter tornado a questão do tempo um tema mais
sensível?): obras sobre transformações emocionais, éticas e ideológicas através
de segundas chances oferecidas por viagens no tempo (“A Christmas Carol” ou “A
Máquina do Tempo” de H.G.Wells) ou a jornada interdimensional de “Alice” de Lewis
Carroll.
A Teoria da Relatividade de
Einstein e a Física Quântica no século XX parecem incendiar esse imaginário: o relativismo
do tempo e a constatação quântica de que a matéria nada mais é do que energia
vibrando em diferentes frequências abririam a mente humana para um universo que
poderia se desdobrar em muitos outros que poderiam conviver paralelamente.
Tudo isso nos leva à comédia
francesa “Perdido Entre Dois Mundos” do diretor Daniel Cohen, um filme que faz
parte da recorrência de filmes com o tema segunda chance nesse início de
século. Temos nesse período basicamente duas formas de oportunidades que são
oferecidas aos protagonistas para se redimirem: a viagem no tempo (“Efeito
Borboleta” de 2004, por exemplo) ou a transição para um mundo paralelo, no qual
se insere essa produção francesa.
O filme
Com um grande orçamento para um
filme francês (20 milhões de euros), a narrativa descreve as desventuras de
Remy Bassano (Benoit Poelvoorde) um artesão que trabalha em um pequeno ateliê
de restauração de obras de arte em Paris, casado com uma esplendorosa esposa,
mais bem sucedida profissionalmente e que tem secretamente um caso. Sua vida vira
do avesso quando seu ateliê inunda com inúmeras telas em restauração (inclusive
um Toulouse Lautrec) e sua esposa anuncia o divórcio e trás o seu amante para
morar em casa. Humilhado e ameaçado pelos credores, o agente da seguradora e o
banco credor das dívidas, Remy tenta retornar, resignado, à casa dos seus
parentes.
Mas repentinamente ele é sugado
para outro plano dimensional, um mundo com aspectos feudais e góticos, a Vila
Bégamini. Lá vive uma tribo oprimida por um gigante tirano canibal chamado
Zoltan que exige constantes sacrifícios humanos. Os begamines vivem a esperança
da realização de uma profecia sobre um salvador que viria de um outro mundo
para libertá-los, até que o seu desajeitado feiticeiro consegue trazer Remy ao
manipular um estranho tabuleiro mágico de madeira.
Nesse mundo alternativo Remy é
considerado um líder e avatar divino, enquanto no mundo atual ele é humilhado e
passivo, sempre pedindo desculpas para todos e torturado por um difuso
sentimento de culpa.
Com o passar do tempo e controlando
melhor a passagem interdimensional (há um gap tempo-espaço que ele deve
entender e dominar), Remy passa a querer ficar mais tempo entre os bergaminis
liderando a luta pela libertação do povo: afinal, lá ele é respeitado e cercado
de belas mulheres que realizam todos os seus caprichos.
O tema da “segunda chance”
“Perdido Entre Dois Mundos” é uma
comédia leve e despretensiosa com fotografia caprichada, cenários maravilhosos
e competentes efeitos especiais que fazem jus ao elevado orçamento. É o típico
produto que cairia bem em uma “sessão da tarde” da TV brasileira – um filme com
argumento aparentemente escapista sobre um protagonista que quer se alienar de
seus problemas em outro mundo, assim como o espectador sonha em ganhar na
loteria e fugir para alguma praia paradisíaca e bem longe dos problemas
domésticos.
Passaria despercebido, não fosse
a produção francesa estar inserida na recente recorrência de filmes sobre o
tema da segunda chance envolvendo mundos paralelos, espelhados ou invertidos ou
deslocamentos tempo-espaço: “Another Earth” (2011), “Up Side Down” (2012), “Um
Homem de Família” (The Family Man, 2001), Corra Lola Corra (1998), “Contra o
Tempo” (Source Code, 2011), “Click” (2006), “Frequently Asked Questions About
Time Travel” (2009), “Efeito Borboleta” (2004), "Safety Not Guaranteed" (2012) entre outros - veja links abaixo.
Nesse começo de século parece
que testemunhamos a intensificação de filmes que o produtor Stephen Simon (“Em
Algum Lugar do Passado” – Somewhere in Time, 1980 – e “Amor Além da Vida” –
What Dreams My Come, 1998) denomina de “filmes espirituais, inspiradores e
motivacionais” (veja SIMON, Stephen. Spiritual
Cinema, Hay House, 2005).
Por que essa recorrência de
filmes sobre “segunda chance”? Talvez a resposta encontremos no interior do
argumento do filme “Perdido em Dois Mundos”: Remy é dominado por um enorme
sentimento de culpa que o impede de reagir. Ele nada mais faz do que pedir
desculpas a todos. “Fui o sétimo de uma família de oito filhos, quando nasci
tudo já estava decidido. Por isso, nunca consegui conquistar o meu lugar na
vida”, confessa Remy em uma linha de diálogo no mundo paralelo de Vila
Bégamini.
Acompanhamos nessas primeiras
décadas do século XXI a intensificação do imaginário da auto-ajuda e de toda as
chamadas “tecnologias do espírito” – neurolinguística, neurociências, táticas
motivacionais aplicadas em organizações e negócios etc. A certa altura do
filme, Remy sente a necessidade de aprender técnicas de liderança para libertar
o povo da tirania de Zoltan. Ele retorna ao mundo atual e vai a uma livraria
onde compra uma lista de livros de liderança, títulos best sellers da
literatura empresarial: “A Arte da Guerra” de Sun Tzu, “O Príncipe” de
Maquiavel, “On War” de Karl Von
Clausewitz e o antigo ensaio chinês “The 36 Stratagems”.
Segunda chance e a introjeção da culpa
A grande crítica feita a esse
tipo de literatura é a introjeção da culpa: a dor individual diante de uma
totalidade (seja social e organizacional) somente pode ser entendida como
derrota e incompetência. Diante da ideologia do “management” e da reengenharia
total do espírito e das organizações qualquer fracasso individual é acompanhado
pela esmagadora introjeção da culpa: o sistema é perfeito, a culpa é da falha
individual.
Talvez esse recrudescimento do
imaginário motivacional nas organizações esteja por trás dessa recorrência do
tema da segunda chance na produção cinematográfica. O mal estar generalizado
(cada vez mais todos nós nos sentimos “losers” diante dos exemplos de sucesso e
bem estar oferecidos pela indústria do entretenimento e pela literatura de
autoajuda) e a decorrente sensação de alienação e estranhamento com esse mundo
alimentam esse desejo de uma “segunda chance”, mais uma oportunidade para dar a
volta por cima.
O quanto de mal estar psíquico
(ressentimento, dor, desejo de vingança etc.) está por trás desse desejo de
“segunda chance”? Stephen Simon chama esses filmes de “inspiradores” por
convidar o espectador a uma “reforma íntima” nesse e no outro mundo. Mas a
humilhação de Remy nesse mundo levará ao desejo regressivo de desforra na outra
dimensão: lá esse transformará em um pequeno tirano.
Convém lembrar que
historicamente o ressentimento e humilhação coletivos estiveram por trás de
todos os movimentos políticos que instituíram governos fascistas e
autoritários.
Ficha Técnica
- Título: Perdido em Dois Mundos (Les Deux Mondes)
- Diretor: David Cohen
- Roteiro: Daniel Cohen e Jean-Marc Culiersi
- Elenco: Benoit Poelvoorde, Natacha Lindinger, Michel Duchaussoy, Pacal Elso
- Produção: K2 SA, uFilm, Gaumont International
- Distribuição: Gaumont, Eurovideo
- Ano: 2007
- País: França
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