sábado, fevereiro 09, 2013

O mito da segunda chance no filme "Perdido Entre Dois Mundos"


Uma comédia leve e despretensiosa. Não fosse o filme francês “Perdido entre Dois Mundos” (Les Deux Mondes, 2007) estar inserido em uma recente recorrência de filmes que desenvolvem o tema da “segunda chance”, passaria despercebido. Mas não é o caso.  A cinematografia recente vem intensificando a exploração do tema em que se narra a possibilidade de o protagonista ter uma segunda chance (seja através do  deslocamento no tempo ou migrando para mundos alternativos) para se redimir de erros do passado ou do presente. Nesses filmes a fuga para outras dimensões não é mera fantasia escapista para atender aos sonhos dos espectadores. Pretendem ser “inspiradores e motivacionais” para convidar os espectadores à necessidade de transformações íntimas, segundo produtores e diretores. Essa tendência cinematográfica realmente seria “inspiradora” ou apenas refletiria um mal estar psíquico numa cultura influenciada por modelos de sucesso e bem estar da literatura de autoajuda e motivacional?

Passamos metade da vida cometendo erros. E a outra metade tentando corrigi-los. Esse é um provérbio que sintetiza um tema recorrente na literatura e no cinema: o tema da segunda chance. Seja no amor, no trabalho ou simplesmente nas pequenas decisões que criaram catástrofes no futuro. De obras literárias como “A Christmas Carol” de Charles Dickens do século XIX (fantasmas oferecem uma segunda chance para o velho sovina e de coração duro chamado Sr. Scrooge) até séries como “Lost” onde sobreviventes de um acidente aéreo tentam se redimir dos seus erros e pecados do passado em uma ilha perdida.

Esse tema se relaciona diretamente com a questão do tempo e da possibilidade de entrarmos em uma dimensão alternativa que nos liberte do ônus dos nossos erros desse mundo. No século XIX na literatura esse tema se intensifica por motivos que exigiriam uma análise mais profunda (poderia a aceleração da vida moderna nas primeiras metrópoles – Paris, Londres etc. – ter tornado a questão do tempo um tema mais sensível?): obras sobre transformações emocionais, éticas e ideológicas através de segundas chances oferecidas por viagens no tempo (“A Christmas Carol” ou “A Máquina do Tempo” de H.G.Wells) ou a jornada interdimensional de “Alice” de Lewis Carroll.

A Teoria da Relatividade de Einstein e a Física Quântica no século XX parecem incendiar esse imaginário: o relativismo do tempo e a constatação quântica de que a matéria nada mais é do que energia vibrando em diferentes frequências abririam a mente humana para um universo que poderia se desdobrar em muitos outros que poderiam conviver paralelamente.

Tudo isso nos leva à comédia francesa “Perdido Entre Dois Mundos” do diretor Daniel Cohen, um filme que faz parte da recorrência de filmes com o tema segunda chance nesse início de século. Temos nesse período basicamente duas formas de oportunidades que são oferecidas aos protagonistas para se redimirem: a viagem no tempo (“Efeito Borboleta” de 2004, por exemplo) ou a transição para um mundo paralelo, no qual se insere essa produção francesa.

O filme


Com um grande orçamento para um filme francês (20 milhões de euros), a narrativa descreve as desventuras de Remy Bassano (Benoit Poelvoorde) um artesão que trabalha em um pequeno ateliê de restauração de obras de arte em Paris, casado com uma esplendorosa esposa, mais bem sucedida profissionalmente e que tem secretamente um caso. Sua vida vira do avesso quando seu ateliê inunda com inúmeras telas em restauração (inclusive um Toulouse Lautrec) e sua esposa anuncia o divórcio e trás o seu amante para morar em casa. Humilhado e ameaçado pelos credores, o agente da seguradora e o banco credor das dívidas, Remy tenta retornar, resignado, à casa dos seus parentes.

Mas repentinamente ele é sugado para outro plano dimensional, um mundo com aspectos feudais e góticos, a Vila Bégamini. Lá vive uma tribo oprimida por um gigante tirano canibal chamado Zoltan que exige constantes sacrifícios humanos. Os begamines vivem a esperança da realização de uma profecia sobre um salvador que viria de um outro mundo para libertá-los, até que o seu desajeitado feiticeiro consegue trazer Remy ao manipular um estranho tabuleiro mágico de madeira.

Nesse mundo alternativo Remy é considerado um líder e avatar divino, enquanto no mundo atual ele é humilhado e passivo, sempre pedindo desculpas para todos e torturado por um difuso sentimento de culpa. 

Com o passar do tempo e controlando melhor a passagem interdimensional (há um gap tempo-espaço que ele deve entender e dominar), Remy passa a querer ficar mais tempo entre os bergaminis liderando a luta pela libertação do povo: afinal, lá ele é respeitado e cercado de belas mulheres que realizam todos os seus caprichos.

O tema da “segunda chance”


“Perdido Entre Dois Mundos” é uma comédia leve e despretensiosa com fotografia caprichada, cenários maravilhosos e competentes efeitos especiais que fazem jus ao elevado orçamento. É o típico produto que cairia bem em uma “sessão da tarde” da TV brasileira – um filme com argumento aparentemente escapista sobre um protagonista que quer se alienar de seus problemas em outro mundo, assim como o espectador sonha em ganhar na loteria e fugir para alguma praia paradisíaca e bem longe dos problemas domésticos.

Passaria despercebido, não fosse a produção francesa estar inserida na recente recorrência de filmes sobre o tema da segunda chance envolvendo mundos paralelos, espelhados ou invertidos ou deslocamentos tempo-espaço: “Another Earth” (2011), “Up Side Down” (2012), “Um Homem de Família” (The Family Man, 2001), Corra Lola Corra (1998), “Contra o Tempo” (Source Code, 2011), “Click” (2006), “Frequently Asked Questions About Time Travel” (2009), “Efeito Borboleta” (2004), "Safety Not Guaranteed" (2012) entre outros - veja links abaixo.

Nesse começo de século parece que testemunhamos a intensificação de filmes que o produtor Stephen Simon (“Em Algum Lugar do Passado” – Somewhere in Time, 1980 – e “Amor Além da Vida” – What Dreams My Come, 1998) denomina de “filmes espirituais, inspiradores e motivacionais” (veja SIMON, Stephen. Spiritual Cinema, Hay House, 2005).

Por que essa recorrência de filmes sobre “segunda chance”? Talvez a resposta encontremos no interior do argumento do filme “Perdido em Dois Mundos”: Remy é dominado por um enorme sentimento de culpa que o impede de reagir. Ele nada mais faz do que pedir desculpas a todos. “Fui o sétimo de uma família de oito filhos, quando nasci tudo já estava decidido. Por isso, nunca consegui conquistar o meu lugar na vida”, confessa Remy em uma linha de diálogo no mundo paralelo de Vila Bégamini.

Acompanhamos nessas primeiras décadas do século XXI a intensificação do imaginário da auto-ajuda e de toda as chamadas “tecnologias do espírito” – neurolinguística, neurociências, táticas motivacionais aplicadas em organizações e negócios etc. A certa altura do filme, Remy sente a necessidade de aprender técnicas de liderança para libertar o povo da tirania de Zoltan. Ele retorna ao mundo atual e vai a uma livraria onde compra uma lista de livros de liderança, títulos best sellers da literatura empresarial: “A Arte da Guerra” de Sun Tzu, “O Príncipe” de Maquiavel,  “On War” de Karl Von Clausewitz e o antigo ensaio chinês “The 36 Stratagems”.

Segunda chance e a introjeção da culpa


A grande crítica feita a esse tipo de literatura é a introjeção da culpa: a dor individual diante de uma totalidade (seja social e organizacional) somente pode ser entendida como derrota e incompetência. Diante da ideologia do “management” e da reengenharia total do espírito e das organizações qualquer fracasso individual é acompanhado pela esmagadora introjeção da culpa: o sistema é perfeito, a culpa é da falha individual.

Talvez esse recrudescimento do imaginário motivacional nas organizações esteja por trás dessa recorrência do tema da segunda chance na produção cinematográfica. O mal estar generalizado (cada vez mais todos nós nos sentimos “losers” diante dos exemplos de sucesso e bem estar oferecidos pela indústria do entretenimento e pela literatura de autoajuda) e a decorrente sensação de alienação e estranhamento com esse mundo alimentam esse desejo de uma “segunda chance”, mais uma oportunidade para dar a volta por cima.

O quanto de mal estar psíquico (ressentimento, dor, desejo de vingança etc.) está por trás desse desejo de “segunda chance”? Stephen Simon chama esses filmes de “inspiradores” por convidar o espectador a uma “reforma íntima” nesse e no outro mundo. Mas a humilhação de Remy nesse mundo levará ao desejo regressivo de desforra na outra dimensão: lá esse transformará em um pequeno tirano.

Convém lembrar que historicamente o ressentimento e humilhação coletivos estiveram por trás de todos os movimentos políticos que instituíram governos fascistas e autoritários.

Ficha Técnica
  • Título: Perdido em Dois Mundos (Les Deux Mondes)
  • Diretor: David Cohen
  • Roteiro: Daniel Cohen e Jean-Marc Culiersi
  • Elenco: Benoit Poelvoorde, Natacha Lindinger, Michel Duchaussoy, Pacal Elso
  • Produção: K2 SA, uFilm, Gaumont International
  • Distribuição: Gaumont, Eurovideo
  • Ano: 2007
  • País: França


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