sábado, outubro 01, 2016

Curta da Semana: "Waltz For One" - o medo do futuro


Enquanto EUA e URSS disputam a corrida espacial dos anos 1960, um excêntrico milionário financia sua própria viagem espacial buscando quebrar o recorde de permanência solitária em orbita da Terra. Mas um irritante “beep” de mau funcionamento do sistema somado à claustrofobia e delírio no interior de uma minúscula cápsula ameaçam a missão. Esse é o curta “Waltz For One”  (“Valsa para Um”, 2012), lançado pelo coletivo de artistas “Intellectual Propaganda”.  É muito mais do que uma paródia aos cânones de filmes do gênero (entre eles, “2001” de Kubrick): é uma melancólica desconstrução do gênero ficção científica, enfraquecido na pós-modernidade porque perdeu a própria essência que o constituía - a visão confiante e utópica no futuro. O sintoma de uma sensibilidade atual marcada pela incerteza e temor em relação ao futuro.

        Em uma alternativa década de 1960, enquanto americanos e soviéticos se engalfinhavam em uma competição política pela conquista da vanguarda na corrida espacial, um excêntrico milionário chamado Arthur Whitman procura por sua própria conta a glória estelar. Através de uma viagem espacial autofinanciada, Whithman pretende quebrar o recorde de permanência no espaço ao tentar ficar em órbita da Terra por uma semana, solitário em uma claustrofóbica cápsula.

        Cair nas profundezas do espaço já é perigoso o suficiente, ainda mais solitário e ainda mais quando as coisas começam a dar errado: no meio da tensa contagem regressiva das horas pelo painel da cápsula em seu teste de resistência, Whitman perde diversas vezes contato com a base e um irritante aviso sonoro de mau funcionamento do sistema toca continuamente. Whitman mal consegue se mexer ou respirar na apertada cápsula.


        “É a luta do homem contra as forças da natureza e contra as forças mais poderosas que estão dentro da psique”, afirma o release do curta. “Waltz For One” é uma produção da Intellectual Propaganda, grupo de artistas norte-americanos baseado em Atlanta (EUA) liderados por fotógrafo e cineasta David Torcivia que já produziu vídeos para ESPN e MTV. O curta foi lançado no dia em que se comemorou o 49º aniversário do mais longo vôo espacial solitário na história feito pelo cosmonauta Valery Bykovsk. O curta foi produzido com uma verba de menos de 700 dólares.


O Curta


           A narrativa descreve a claustrofobia, tensão, stress, até chegar ao delírio onde o ritmo do irritante “beep” e os cliques dos botões do painel (Whitman começa aleatoriamente a apertar os interruptores do painel) e do botão de uma caneta vão unindo-se até se ajustarem com o compasso da valsa “Danúbio Azul”, referência explícita ao clássico de Kubrick “2001: Uma Odisséia no Espaço”.

            Dois elementos do argumento desse curta chamam a atenção para quem estuda as obras audiovisuais da premissa de que são documentos da sensibilidade cultural ou do imaginário de uma determinada época: por que criar uma década de 1960 alternativa? E por que essa experiência de claustrofobia e delírio do solitário astronauta culmina ironicamente com a referência máxima de qualquer sci fi, “2001” de Kubrick?

           A primeira vista podemos qualificar o curta como uma parodia aos temas e clichês do gênero ficção científica, mas há algo de estranho na atmosfera da narrativa: primeiro, a inverossimilhança de, em plena época da Guerra Fria entre duas superpotências, um milionário “privatiza” a corrida espacial, torna-se astronauta e faz uma viagem “free lancer”; e depois o insistente contraste que as imagens fazem entre a imensidão do espaço exterior e a claustrofóbica cápsula onde Whitman sente-se como um enterrado vivo de algum conto de Edgar Allan Poe.


           Há um tom estranhamente híbrido, simultaneamente irônico e realista que incomoda. O que difere do tom da paródia, sempre irônica, cínica e surreal.

         Se toda paródia é uma homenagem e crítica a um gênero que ainda é simbolicamente forte (lembre-se de paródia como “Apertem os Cintos Que o Piloto Sumiu”, paródia ao gênero disaster movie, ou “Tem Um Louco à Solta no Espaço” de Mel Brooks ao gênero space opera de “Star Wars”), no curta “Waltz For One” temos uma espécie de desconstrução de um gênero (o sci fi) que está enfraquecido no pós-moderno porque perdeu a própria essência que o constituía: pensar o futuro.

O Futuro do Passado


         Em um seminal texto sobre o gênero no pós-moderno, Nelson Brissac Peixoto argumentava que a ficção científica atual perdeu a visão de futuro: primeiro ao mostrar o futuro como pós-apocalipse (como catástrofe, lixo, saturação e decadência) ou como passado, um olhar nostálgico contemporâneo retro, o ímpeto pela vivência intensa de uma época quando a aspiração pelo futuro foi formulada. Em síntese, o futuro do passado.
“Ficção científica sugere de imediato uma visão de futuro. Planetas desconhecidos, robôs e tecnologia ultra-sofisticados, inacessíveis ao tempos atuais. Mas e se esta perspectiva do que está para vir tiver sido feita há muitos anos? Há algo de estranho e perturbador nos filmes sci-fi dos anos 50: eles apresentam uma ideia do futuro que é de uma outra época, distinta da nossa” (PEIXOTO, Nelson B., “O Futuro do Passado” In: Pós-Modernidade, Editora da UNICAMP, 1987, p.75-76).
          “Waltz for One” mostra esse olhar nostálgico para esse “futuro do passado”: o início da corrida espacial, o astronauta como o herói pioneiro. Um olhar da atualidade onde a aventura espacial entrou em crise porque os custos e riscos tornou inviável essa utopia.

A ficção científica representava a modernidade
no seu estágio mais avançado e final - foto:

poster do filme "Planeta Proibido", 1956.
         Da utopia temos uma, por assim dizer, “atopia”: projeta nesse futuro do passado o paradigma da privatização dos empreendimentos atuais. Se na ficção científica a conquista de novos mundos é um esforço coletivo da espécie humana, no pós-moderno a utopia é privatizada pelo esforço individual excêntrico. Diferente das utopias modernistas, vemos nesse curta um sintoma da desconstrução pós-moderna de um gênero através de uma “atopia”: representa-se o futuro do passado através da projeção das mazelas do presente, no caso o modelo privatizante e neoliberal dos empreendimentos humanos.

         A utopia espacial dos sonhos épicos de conquistas e descobertas perdida nos sonhos dos turistas milionários atuais que veem o espaço como mais um parque temático terrestre.

Claustrofobia do Futuro


         Outro ponto que impressiona no curta é a experiência claustrofóbica do protagonista. Ao lado do futuro o espaço e a viagem eram temas recorrentes do gênero sci fi: o espaço profundo, o infinito, grandes extensões percorridas por naves de design arrojado, retilíneo e funcional. A partir de “Alien” de 1979 vemos os protagonistas confinados em espaços claustrofóbicos, sujos, úmidos e insalubres.


          Se no passado o espaço e a viagem representavam a modernidade no estágio mais avançado e último do pós-guerra (cidades se alastrando, auto-estradas, o carro como símbolo de uma época em que tudo é extensão e movimento), hoje a experiência claustrofóbica é a projeção seja no passado ou no futuro da crise do presente: crise econômica, urbana e ecológica representado pela experiência do pânico e confinamento.

        Hoje o design das naves é neobarroco, labiríntico e disfuncional como se simbolizasse a ausência dessa utopia do espaço: não há mais mundos para descobrir, a não ser enfrentar os próprios fantasmas e demônios da psique. “Solaris” (1972) de Tarkovsky é um caso exemplar dessa renúncia do gênero às aventuras épicas. Astronautas se defrontam não mais com o espaço desconhecido, mas com suas próprias fantasias e desejos materializados pelo estranho mar de um planeta desconhecido.

        E, no final, a valsa “Danúbio Azul”, uma referência irônica, engraçada, mas também melancólica a Kubrick. O filme “2001” talvez tenha sido a última ficção científica modernista com todos os elementos fortes do gênero: utopia, futuro, espaço e design sofisticado. O sonho de que o desenvolvimento tecnológico nos conduziria ao encontro com nossos deuses para surgir um novo homem, como o “star child” que observava a Terra no enigmático final do filme de Kubrick.

         O curta “Waltz For One” é um sintoma desse esvaziamento contemporâneo da utopia espacial. O sintoma de uma sensibilidade atual marcada pela incerteza e temor em relação ao futuro.



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