A fala do
cientista chefe da NASA, Dennis M. Bushnell, de que a solução para todos os
problemas globais seria despachar a humanidade para o mundo virtual das redes
eletrônicas, livrando o planeta da ação daninha do homem, é o sintoma de uma
crise da nossa percepção de futuro. Filmes de ficção científica da América
Latina e de países periféricos à Zona do Euro refletiriam esse sintoma cultural
onde o futuro não é nem utópico nem distópico, mas agora hipo-utópico: um estranho futuro cada vez mais parecido com o presente. A alta tecnologia convivendo com favelas, deterioração urbana,
precarização do trabalho e muito lixo que, muitas vezes, se confunde com seres
humanos ou alienígenas que necessitam ser controlados, confinados, descartados ou eliminados. O novo Big
Brother não integra a todos obrigatoriamente como nas distopias 1984 ou Admirável Mundo
Novo, mas agora exclui a maioria compulsoriamente como mostrado nos filmes da chamada “Ficção
Científica do Sul”.
Um mundo ameaçado pelo aquecimento global e guerras. Causa: política,
religião, megalomania, crescimento populacional e disputas territoriais.
Solução: inteligência artificial, nanoteconolgia e biotecnologia, substituindo
progressivamente a ação humana pela automação e robótica. Afastado
de profissões enfadonhas como “caixas de banco, frentistas de postos de
gasolina, ensino, pilotos, soldados”, o ser humano ocuparia seu tempo livre
habitando mundos virtuais tri-dimensionais simulando, por exemplo, “a experiência
de se sentar numa praia tropical”. Mais do que isso, o planeta se livraria da
ação econômica e política humanas historicamente danosas ao meio ambiente
simplesmente transferindo a humanidade para o mundo virtual das redes
eletrônicas conectadas com o sistema neuronal humano.
Sobre o quê
estamos falando? A sinopse de algum filme de ficção científica ? Longe disso.
Essa é a síntese de uma palestra proferida por Denis Bushnell, cientista chefe
da NASA no Langley Research Center, na Conferência da World Futurist Society em
Boston, EUA em Julho de 2010. Se essas projeções do cientista chefe da NASA vão
ocorrer isso pouco importa. O mais importante é a estranha ironia que guarda
essa notícia: no espaço de uma organização civil que pretende reunir cientistas
e intelectuais para propor visões para o futuro, Bushnell propõe uma estranha
utopia, onde a humanidade, de tão inútil e maléfica para o planeta, seria
despachada para uma espécie de nowhere
virtual. Contrariando a visão de um futuro como lugar que alcançaríamos (seja
utópico ou distópico), Bushnell propõe uma migração da espécie humana
desnecessária para um “não lugar”.
Estranha visão futurista, pensada como solução para as mazelas do
presente, fruto do crescimento da economia globalizada a que o pensador Zygmunt
Bauman denomina por “problemas de acumulação de redundantes”: lixo tóxico,
populações excedentes e toda uma variedade de refugos que ameaça entrar em um
ponto crítico de autocombustão nas grandes cidades (veja BAUMAN, Zygmunt, Vidas
Desperdiçadas, Jorge Zahar Editores, 2005).
Bushnell: despachar a humanidade para os mundosvirtuais das redes eletrônicas |
Se o historiador francês Marc Ferro estiver certo de que o filme pode
ser considerado um verdadeiro documento primário por expressar por meio de
imagens e movimento o imaginário e sensibilidades de uma determinada época,
então encontraremos uma expressão cinematográfica dessa sensibilidade nowhere de Bushnell em um grupo de
filmes de ficção científica denominado de “ficção científica do Sul”: uma
produção ignorada por críticos e acadêmicos, mas que nos últimos anos passou a
ser descoberta. Filmes provenientes de uma região periférica (como a América
Latina, por exemplo) ao hegemônico sistema hollywoodiano, que articulam as narrativas
e convenções do gênero com elementos culturais regionais e tradicionais.
Filmes que exploram temas como direitos humanos/trabalho e,
principalmente, como uma sociedade estruturada em um sistema em rede com uma
interface digital contínua apagaria as tensões étnicas e raciais. A alta
tecnologia (ícone característico do gênero) convivendo com favelas,
deterioração urbana, precarização do trabalho e muito lixo que, muitas vezes,
se confunde com seres humanos que necessitam ser controlados, confinados,
descartados ou eliminados – imigrantes e estrangeiros humanos ou de outros
planetas.
Justamente pelo seu olhar de um ponto de vista periférico, a FC “do Sul”
expressaria de forma mais aguda essas contradições criadas pelo movimento de
Globalização dos fluxos sociais e econômicos.
A FC do Sul seria a confirmação de uma tendência de produção
cinematográfica que ocorre nas margens de Hollywood a
partir de filmes como “Blade Runner, O Caçador de Andróides” (1982, co-produção
EUA/Hong Kong), “Matrix” (1999, EUA/Austrália), “Código Fonte” (2011,
EUA/França), “eXistenZ” (1999, Canadá/França).
Hipo-utopia: o futuro é cada vez mais parecido com o presente |
Se a principal
característica do gênero é a especulação sobre mundos futuros utópicos ou
distópicos, nessa produção de FC periférica, ao contrário, cria-se uma utopia
que poderíamos chamar de “hipo”: na hipo-utopia
o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas
não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) ou negativos
(distópicos). “Hipo”
no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topos”,
“lugar”.
Por exemplo, filmes como a coprodução África
do Sul/EUA Distrito 9 (2009) de Neil
Blomkamp e o curta Cybraceros
(México/EUA, 1997) de Alex Ribera são produções de FC que,
paradoxalmente, parecem se ressentir de ausência de futuro: refletem mais as
mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros próximos. Na
verdade o futuro não existe, ele é apenas uma tela paródica ou cínica do
presente.
Sua forma hiperbólica se manifestaria através de uma narrativa mockumentary (filmes em estilo
documentário com um tom paródico), tornando ainda mais explícito esse “futuro
do pretérito”: através de uma narrativa realista e hiperbólica, o presente
curva-se sobre si mesmo, produzindo um estranho não futuro e um não lugar,
muito semelhante ao imaginado pelo cientista chefe da NASA Dennis Bushnell.
Utopia e a imaginação da Modernidade
O pensamento inaugural da utopia (Utopia de Thomas Morus ou Cidade
do Sol de Campanella) criará três categorias que tornarão comum na
imaginação da modernidade: o topos projetado, o logos excêntrico
e o novum estranho.
Esse topos ou lugar outro é projetado no futuro: a consciência
inquieta que quer enxergar longe, que quer transpor o estado atual do sonhador.
A consciência da carência e precariedade do real, uma projeção do melhor que
criaria uma brecha no espaço e no tempo, descontinuidades no fluxo do presente
e que abre para caminhos possíveis.
Nessa ontologia do real, o logos do ser seria “excêntrico”, ou
seja, se expande do centro (o presente) para explorar o que está fora, nas
regiões periféricas do futuro.
Esse topos projetado seria o novum estranho, cujo narrador
apresenta esse futuro como novidade e espanto. Esse choque com a nova realidade
é ainda potencializado pelo olhar de um “narrador-estrangeiro”, aquele que se
deslocou do centro ou do presente em direção da periferia ou do futuro.
Essas três categorias farão parte dos cânones tanto da ficção científica
da utopia quando da distopia, embora esse “lado negro da utopia” subverta o novum
para um topos hostil e inseguro.
De qualquer forma tanto na utopia
quanto nas distopias representadas por obras como 1984 de George Orwell como Admirável
Mundo Novo de Aldous Huxley ainda apresentam, de forma perversamente
invertida, o espírito positivo oitocentista nos termos de evolução total da
humanidade a partir de uma ideia teleológica de progresso: uma tecnociência que
aspira a universalidade através do planejamento e controle da totalidade
social, cultural e urbana. A distopia é o topos
projetado dos princípios modernos de integração, planejamento e controle elevados
ao paroxismo – o “ver para prever” da tecnociência positivista levado ao ponto
em que se transforma em pesadelo.
Hipo-utopia e Globalização
Com a evolução da modernidade
para a sua fase pós-industrial ou pós-moderna depois da Segunda Guerra Mundial
e a aceleração dos fluxos econômico-financeiros com a Globalização na década de
1990 temos uma erosão das categorias que norteavam o paradigma modernista. Autores
como Chesneaux (1995), Harvey (1994 ) e Gumbrecht (1994) convergem na tese de
que o novo processo econômico baseado em aceleração de fluxos financeiros,
humanos e de mercadorias baseou-se em uma nova configuração das tecnociências
rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica
computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como
extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o
humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado, flutuante que pode
ser sintetizado em três palavras-chave: destemporalização,
destotalização e crise da noção de progresso.
A destemporalização corresponderia
a uma crise teleológica: ruptura com a temporalidade moderna marcada por um
fluxo constante que caminha do passado em direção ao futuro. Nelson
Brissac Peixoto argumenta que a ficção científica atual perdeu a visão de
futuro: primeiro ao mostrar o futuro como pós-apocalipse (como catástrofe,
lixo, saturação e decadência) ou como passado, um olhar nostálgico
contemporâneo retro, o ímpeto pela vivência intensa de uma época quando a
aspiração pelo futuro foi formulada. Em síntese, o futuro do passado.
A ciência se transforma em tecnociência e gadgets |
Se o futuro como um “não lugar”
ou um topos projetado e estranho são
um dos cânones do gênero ficção científica, o que teríamos na atualidade seria
a sua desconstrução como um percepção de futuro “fraca” que muito mais se
remete ao presente – a hipo-utopia.
Outro cânone da ficção
científica, a sofisticação tecnológica, entra em crise com a destotalização. A
tecnologia até continua sofisticada, porém perde o seu caráter de planejamento,
totalização e controle. A Ciência abandonou
qualquer projeto que aspirava à universalidade, ao planejamento da totalidade
global, social ou urbana. Ao assumir a forma de tecnociência, ela privatiza e
individualiza seus propósitos. Abandona o macro para concentrar-se no micro: gadgets tecnológicos sofisticadíssimos e
prédios inteligentes conectados com velozes fibras óticas enquanto as ruas e o
entorno público são dominados pelo caos da poluição, trânsito e lixo.
A
tecnologia transforma-se em gadget:
personagens lidam com sofisticados aparelhos a partir de complexas telas,
manipulam telematicamente eventos distantes, perscrutam, vigiam e controlam.
Porém, diferente das utopias e distopias de controle e totalização do passado,
apenas intervêm pontualmente, fragmentariamente, o que só fomenta o caos e a
desordem pós-apocalíptica.
Como
consequência desse abandono do planejamento macro econômico e social, temos a
terceira crise: a perda da noção de progresso. Seja na utopia onde a ciência e a
tecnologia conduziriam a humanidade à maioridade através da igualdade e do
aperfeiçoamento moral e espiritual; ou seja na distopia onde a ciência domina
todos os aspectos da vida a tal ponto que se torna autoritária e abusiva ao
massificar os indivíduos como mais um número em uma gigantesca contabilidade, temos
visões teleológicas de progresso em seus aspectos positivos e negativos.
O novo Big Brother
Zygmunt Bauman descreve como o progresso da Globalização
não cria desigualdades, crescimento dos abismos das classes ou pobreza como nos
sistema econômicos clássicos marcados pela exploração da força de trabalho.
Simplesmente, o pleno desenvolvimento econômico trouxe a exclusão ou “baixas
colaterais”: lixo tóxico, tecnológico e refugos humanos – velhos, estrangeiros,
imigrantes etc., todos sem possibilidade de serem integrados. Assim como o lixo
informático (baterias, placas etc.) são enterrados em contêineres em algum país
africano, da mesma forma uma massa de “redundantes” são empurrados para
periferias, guetos ou caçados ou barrados pela polícia de imigração, sem
possibilidades de integração. Para o novo sistema global nem são considerados
“exército industrial de reserva”, mas “redundantes” e “superpopulação”.
Ao
contrário de distopias como 1984 onde
o Big Brother integra obrigatoriamente
os indivíduos como necessidade econômica de uniformização e controle, o novo
Big Brother da hipo-utopia faz o inverso: exclui
compulsoriamente. Esses redundantes devem “desaparecer”, seja física ou virtualmente.
Vamos
agora analisar alguns exemplos de filmes de FC do Sul e as suas conexões com
esse futuro hipo-utópico.
Cybraceros e Distrito 9
Why Cybraceros: exclusão obrigatória |
O
curta Cybraceros de Alex Rivera, onde
cinicamente mostra como o sistema econômico norte-americano livra-se da
presença indesejável de braceros
mexicanos para torná-los trabalhadores virtuais confinados na periferia,
partilha dessa visão hipo-utópica: alta tecnologia aplicada à exclusão de
refugo humano indesejado.
O curta tem a forma de uma
simulação de um vídeo promocional. Baseia-se em verdadeiro filme promocional da
década de 1940, feito pelo Conselho de Agricultores da Califórnia, intitulado Why Braceros? – “braceros” era como se
chamavam os peões ou mão de obra temporária mexicana. O filme era uma peça do
chamado Programa Bracero, uma série
de leis e iniciativas diplomáticas entre México e EUA para a contratação de mão
de obra temporária para trabalho no campo. Ao longo do tempo, a iniciativa
acabou gerando problemas de imigração ilegal e conflitos na fronteira entre os
dois países.
Uma típica voz feminina de vídeos
institucionais ou de sistemas de som de shoppings em of defende
um Programa Bracero futurista
em que apenas o trabalho seria importado pelos EUA: os trabalhadores seriam
deixados em casa no México diante de telas de computadores com conexões de alta
velocidade, munidos de joystick através do qual manipulam
telematicamente robôs que selecionam as laranjas nas fazendas californianas.
Cinicamente a narradora descreve
que na Internet não há diferenças entre ricos e pobres e que no futuro todos
trabalharão em casa, até mesmo os braceros. Uma reviravolta bizarra
do sonho americano. Com o Programa
Cybracero todos se livrarão dos problemas. Sem compromisso, com baixo custo e
sem cruzar a fronteira dos EUA, o cybracero é o imigrante perfeito, a cara high
tech do sonho americano. E os consumidores norte-americanos
consumirão produtos mais baratos e sem custo social. E o final do curta é
ufanista: com o programa cybracero não haverá mais a ameaça de um trabalhador
transformar-se em um cidadão o que significa “produtos de qualidade a um baixo
custo financeiro e social para você, consumidor americano", enquanto vemos
imagens de uma mulher branca loira em um supermercado moderno.
Dirigido pelo estreante Neill
Blomkamp, a produção independente sul-africana é mais um exemplo dessa
tendência da ficção científica “do Sul”: a exploração de temas como apartheid, racismo, precarização do
trabalho e privatização. Uma nave perdida vinda do espaço estaciona sobre
Joanesburgo e por lá fica 20 anos. Com o tempo os aliens ganham o apelido
pejorativo de “camarões” e são confinados em um distrito, explorados pela máfia
nigeriana e controlados por uma versão privatizada e policialesca da ONU, a
MNU.
Um futuro que projeta em alta
tecnologia o racismo e preconceito do presente. No filme estão muitas das
características perversas da globalização: precarização alimentar (os
nigerianos vendem a um preço exorbitante comida de gato enlatada, apreciada
pelos alienígenas), precarização do trabalho (a MNU é uma corporação cínica e
hipócrita) e o tráfico de armas (tanto a máfia nigeriana como a MNU estão
interessados no arsenal de armas da nave dos alienígenas).
Moebius, 2033 e Les Revenants
Desperdício de vidas, exclusão
compulsória e apartheid social passam a ser temas recorrentes na ficção
científica do Sul, criando um futuro cada vez mais próximo de natureza
hipo-utópica. As formas de representar esses “efeitos colaterais” da
globalização sócio-econômica assumem diversas formas.
No filme argentino Moebius (1996,
já analisado pelo blog – veja links abaixo) de Gustavo Mosquera baseado no
conto de A.J. Deutsch de 1950, temos um exemplo disso através de um paradoxo
espacial: em um futuro próximo o metrô de Buenos Aires assume uma forma
excepcionalmente labiríntica e complexa. No meio de um dos trajetos, uma
composição inteira com mais de 30 passageiros desaparece. Um topologista é
chamado para investigar o incidente e eventualmente descobre que a complexidade
das linhas de metrô teria assumido a uma forma semelhante a da fita de Moebius.
Devido às suas propriedades matemáticas e geométricas, o trem acabou circulando
em um plano dimensional indefinível e invisível, embora todos consigam sentir o
barulho e a vibração quando o trem está próximo.
O filme foi realizado em plena
era do governo Carlos Menem de políticas neoliberais radicais e privatizações,
entre elas a do próprio metrô de Buenos Aires. O filme narra como a empresa tenta
lidar com o problema do desaparecimento de um trem inteiro pressionando seus
funcionários sob um regime de censura e medo e como tenta manipular a opinião
pública. A precarização do trabalho no metropolitano coincide com o
desaparecimento de pessoas: referências não só ao desaparecimento de opositores
da ditadura militar nos anos 1970 de memória vívida para os argentinos, como
também do desaparecimento de trabalhadores “redundantes” em uma economia de
radical neoliberalismo– o desemprego se aproximava a 30% na época.
O filme 2033 (2009, analisado pelo blog – veja links abaixo) do diretor
mexicano Francisco Laresgoiti novamente nos apresenta um futuro próximo, dessa
vez no México, onde após intensas políticas de privatizações o Estado foi
convertido em mero aparelho policial e repressivo que
controla a sociedade, bancado por corporações de telecomunicações, farmacêuticas,
energia e Cryo-pausa - onde intelectuais, cientistas e políticos são guardados
em armazéns congelados para que suas mentes sejam reprogramadas para posteriormente
serem úteis aos sistema.
O
enorme desenvolvimento tecnológico apenas fez aprofundar o apartheid social: nos subúrbios vivem os pobres que são caçados por
esporte pelos ricos como fossem animais. Ao mesmo tempo, os cidadãos são
“pacificados” pela bebida viciante chamada “pactia” cujo principio ativo é uma
droga chamada “Tecpanol” produzida pela corporação farmacêutica Phaarmax. O filme é um evidente sintoma do México atual
arrasado pela violência do narcotráfico e pelo desastre econômico de políticas
neoliberais de um país na fronteira com os EUA e ansioso em se integrar ao
bloco econômico da América do Norte – o NAFTA.
Embora seja uma produção francesa, Les Revenants (2004) de Robin Campillo
apresenta uma parábola das complicadas relações do país com suas ex-colônias e
os imigrantes ilegais, refugiados de sua pobreza natal e excluídos na França. Mortos retornam
inexplicavelmente do além-túmulo em uma pequena cidade. Eles não querem comer
cérebros e nem matar. Voltam calados, como memórias vivas e indesejáveis para
os vivos. Os mortos recém-chegados tornam-se um problema social: o que
fazer com eles? Como reintegrá-los às suas famílias, à sociedade e aos seus
antigos trabalhos? Entes queridos que retornam podem, de uma hora para outra,
tornarem-se indesejáveis. De início, o filme apresenta a interessante metáfora
do problema social da integração dos imigrantes, do estrangeiro e o fenômeno da
intolerância.
Considerações finais
As limitações econômicas e
técnicas decorrentes de uma condição periférica, no cinema de ficção científica
latino-americana estão ausentes uma variedade de temas da FC norte-americana
como space operas ou filmes
catástrofes. Para escritora argentina de FC Angélica Gorodischer: “em um país
onde os telefones não funcionam e ter carro é um luxo, não podemos escrever
sobre ficção científica tecnológica, dar explicações sobre naves que vão até as
estrelas ou falar sobre impérios galáticos”.
E poderíamos acrescentar: em uma
região onde os “efeitos colaterais” da globalização e as mazelas das políticas
econômicas neoliberais são repercutidas de forma mais intensa devido a sua
condição geopolítica periférica (seja a América Latina ou nos países
periféricos ao centro nervoso da Zona do Euro, nesse momento em profunda crise),
o cinema de FC autóctone necessariamente irá assumir características bem
peculiares: hibridismos e mutações em relação aos cânones da FC
norte-americana. O futuro imaginado assumirá uma natureza hipo-utópica que
poderíamos sintetizar da seguinte forma:
(a) A categoria de topos projetado cede lugar a um futuro
próximo que se aproximaria do presente como alegoria ou metáfora. Perde-se a
noção teleológica de futuro para dominar o princípio de que, seja o passado ou o
futuro, seria mera projeção de um eterno presente, criando-se uma condição
esquizofrência e pós-moderna.
(b) O logos excêntrico cede lugar a uma espécie de logos concêntrico, isto é, o movimento centrífugo onde as energias
da imaginação vão a lugares “onde nenhum homem jamais esteve” invertem-se para
um movimento centrípedo de contração em direção ao centro, ao presente. Por
isso futuro é pensado de uma maneira insegura, incerta, pós-apocalíptica. A
ciência converte-se em tecnociência materializada por gadgets de ação pontual, fragmentada e privatizada, acelerando
ainda mais o caos e desordem. Não é à toa que a iconografia e simbolismos fílmicos
passam a assumir uma estética labiríntica, claustrofóbica, com instabilidades e
perdas de identidades.
(c) O novum estranho cede lugar a um tom narrativo híbrido, simultaneamente
irônico e realista em uma forma muitas vezes documental ou mockumentary. Reconhecemos nesse futuro próximo o nosso próprio
presente projetado de forma ao mesmo tempo hiperbólica e realista. A relação de
estranhamento com um futuro totalmente outro é substituído pelo mal estar da
familiaridade com o presente.
Filmes de FC do Sul seriam
documentos de uma sensibilidade que, de tão extrema em relação às contradições sócio-econômicas
globais, chegariam ao mainstream
representado pela fala hipo-utópica do cientista chefe da NASA Denis Bushnell,
ironicamente no país onde o cinema de FC desenvolveu-se como o gênero onde a
especulação sobre o futuro é a sua principal matéria-prima.