Na estreia do diretor Robert Eggers em "A Bruxa" (2015), ele nos mostrou que o combustível do horror é a nossa própria mente, tanto no cinema quanto na vida real da época de como a moralidade puritana foi capaz de criar monstros e demônios. Em “O Farol” (2019), Eggers expande sua abordagem do horror: além da mente, a mitologia e a nossa memória arquetípica podem criar mundos claustrofóbicos e monstros terríveis. Inspirado no mito grego de Prometeu (o titã que roubou o fogo dos deuses para dar aos homens e foi cruelmente castigado pela eternidade), acompanhamos dois faroleiros em uma ilha perdida no fim do mundo – sua lenta descida da racionalidade para o delírio e loucura. Eggers articula uma complexa simbologia que vai da psicologia profunda de Carl Jung aos monstros híbridos de HP Lovercraft – a luz do farol como o fogo disputado por deuses e homens. E nada melhor do que a figura do faroleiro, isolado numa rocha no meio das tormentas, guardando a luz/fogo roubada dos deuses, apontando-a desafiadoramente para a escuridão.
Esse é o filme mais intrincadamente simbólico assistido até aqui por esse humilde blogueiro, desde o filme Mãe! (2017) de Darren Aronofsky – um casarão é transformado em uma metáfora do conflito central da mitologia gnóstica: Queda, Criação, Destruição e Recomeço. E de como essa tensão cosmológica está contida no psiquismo de cada um de nós.
O Farol (The Lighthouse, 2019), de Robert Eggers, aprofunda ainda mais a sua proposta de resgatar os fundamentos do gênero do horror, iniciada no filme anterior A Bruxa (2015) : o horror está muito mais na mente do espectador do que nos efeitos especiais; muito mais no contra-campo (aquilo que está fora do enquadramento e que não vemos), refletido no rosto dos personagens no enquadramento.
Mas em O Farol, Eggers vai além da mente (ou do psiquismo) incorporando outros dois elementos simbólicos: o mitológico e o arquetípico. Graças à psicanálise junguiana e o seu conceito de memória genética (arquetípica), forte influência nesse filme, admitida pelo próprio Eggers em entrevistas.
Tal combinação torna O Farol um horror surreal – ainda mais pela fotografia em preto e branco (mais exatamente, em tons de cinza, com poucos pretos e brancos distintos em uma aparente eterna noite nublada, mesmo durante o dia) e a proporção de tela 4:3.
De início, toda a constelação simbólica em torno do Farol – o mar revolto e perigoso, uma torre austera, alta, com a luz capaz de iluminar a escuridão de uma Natureza hostil; e, ao mesmo tempo, é fálico, poderoso, ereto, denotando poder e espírito que vão da terra aos céus.
Também é evidente a inspiração na figura mitológica grega de Prometeu – o campeão da humanidade, aquele que criou o homem do barro e desafiou Zeus roubando o fogo dos deuses e presenteando à humanidade. Prometeu sofre a ira dos deuses: é acorrentado a uma pedra na mais alta montanha para ser comido vivo por uma águia por toda a eternidade – certamente, inspirou Eggers quanto ao destino final do protagonista.
Luz, fogo e Jung
Esse jogo que a narrativa fará entre luz e fogo é o aprofundamento do próprio processo junguiano de individuação e isolamento – ao se tornar consciente, o indivíduo é ameaçado cada vez mais com o isolamento, o que é, no entanto, o sine qua non da individuação consciente. A individuação como fosse jogar uma luz na extensão do inconsciente coletivo para encontrar a diferenciação.
E nada melhor do que a figura do faroleiro, isolado numa rocha no meio das tormentas, guardando a luz/fogo roubada dos deuses, apontando desafiadoramente a luz para a escuridão.
E onde está o elemento de horror em tudo isso? Para tornar ainda mais inquietante e complexa a simbologia do filme, Eggers acrescenta evidentes influências de HP Lovrecraft – criaturas ou sereias com tentáculos sugeridas em várias momentos da narrativa: será que aquela pequena rocha perdida na imensidão oceânica abrigaria “Os Profundos” (Deep Ones), os antigos deuses do mar que se acasalam com seres humanos para criar espécies híbridas inteiras?
Pela complexidade simbólica de O Farol, vamos dividir a análise em três camadas: primeira, a superfície; segunda, a tensão homoerótica; terceira: mitologia, simbologia junguiana e magia.
Primeira camada: o filme
Ambientado na década de 1890 numa ilha longínqua no mar da Escócia, o filme conta com apenas dois personagens: Ephraim Winslow (Robert Pattinson), um “wickie” (faroleiro) que chega ao local para começar o seu novo trabalho, sob a supervisão de um velho “cachorro salgado” e chefe do farol, Thomas Wake (William Dafoe) – ostentando uma barba espessa, cachimbo e um rosto vincado pelos anos no mar.
Ele é praticamente carne e sangue do próprio farol, considerando sua “esposa perfeita”: Para ele, melhor do que qualquer mulher viva, por ser “silenciosa”.
Mas não é bem assim: a base sonora que acompanha todo o filme são as ondas batendo e um constante uivo não só do vento, mas do constante aviso sonoro para os navios em meio às noites de névoa espessa.
Sob o comando enérgico de Thomas, Winslow cuida das pesadas tarefas diárias de manutenção do pesado mecanismo que mantém o funcionamento do farol, limpeza, polir aparelhos de latão, varandas, grades. Thomas faz questão de mostrar que está no comando, enquanto anota o desempenho do faroleiro num diário.
Sua missão é permanecer ali por quatro semanas, até serem resgatados por um navio da companhia.
Winslow é quieto, trancado em seu rosto anguloso e desconfiado. Enquanto Thomas é falante, sempre contando histórias da sua vida no mar durante o jantar e provocando o seu companheiro. Sua liderança passa aos poucos a enlouquecer Winslow. Para completar, ele vai desenvolvendo uma rivalidade com as centenas de gaivotas que sobrevoam o farol – irritantemente pousam no seu caminho, atrapalhando o já difícil trabalho.
Num ritmo hipnótico, aos poucos Winslow começa a ficar obcecado sobre o que acontece exatamente no topo do farol – Thomas tranca-se lá proíbe seu faroleiro de subir a imensa escada em espiral que leva ao projetor giratório de luz.
Nesse cenário de isolamento e de um design sonoro assustador, aos poucos Eggers começa a sugerir que existem forças sobrenaturais em ação: Winslow tem visões de sereias entre as rochas e o motivo de Thomas zelosamente proteger o acesso ao topo da torre seja possivelmente a existência de uma lula gigante com a qual mantém algum tipo de bizarra relação erótica!
Esse são sinais do crescimento de uma tensão homoafetiva entre os dois. Há raiva e energia erótica reprimida – flagramos diversas vezes masturbações que permeiam o jogo de poder e submissão: Thomas humilha seu ajudante, forçando-o a cumprir “deveres domésticos femininos”. “Não aceitei esse trabalho para ser esposa de alguém!”, ataca Winslow.
De um lado a arrogância de Thomas. De outra, o ressentimento de Winslow naquele fim de mundo: depois de empregos malsucedidos, ele precisa agora daquele trabalho para sair do buraco em que se tornou a sua vida. Ele precisa de sucesso. Ele precisa de luz.
Segunda camada: a tensão homoafetiva – alerta de spoilers à frente
“Era bastante explícito no roteiro. O roteiro dizia que o farol parecia um pênis ereto”, disse Pattinson em entrevista – clique aqui.
Eggers expandiu o tema para dizer que o subtexto homoafetivo sempre esteve no centro do filme: "todo é sobre a dinâmica de poder, é sobre Thomas empurrando, empurrando, empurrando, empurrando, empurrando". E há raiva reprimida, energia erótica reprimida e cheiros reprimidos. Onde está o ponto de ruptura?
Mas a sexualidade dos dois, disse Eggers, não é binária (gay versus não gay). Trata-se menos de explorar a sexualidade humana ou a orientação sexual, e mais sobre as perguntas que essas conotações sexuais homoeróticas representam de uma perspectiva freudiana mais ampla.
Enquanto isso, Thomas quer ter a exclusividade sobre a propriedade do símbolo fálico do farol. Ele constantemente se refere ao farol como ela/ele, equiparando-a a melhor esposa que já teve. Segundo Dafoe, o homoerotismo do filme fala de alguns aspectos da identidade e do que significa ser homem:
"Masculinidade tóxica! Eles estão apertando os botões um do outro por medo e ameaça de quem eles são. E ambos são culpados. Eles têm um sentimento de culpa, de errado. Não há julgamento moral nesta história. É apenas assistir a esses dois caras lutando para encontrar uma maneira de sobreviver ... É uma história simples, mas tem raízes existenciais e coisas de identidade e coisas sobre masculinidade, dominação e submissão, e para melhor e para pior. ".
Como Eggers resume no final da entrevista, tudo o que ele escreve é "junguiano" - o que significa que ele está trabalhando com símbolos e arquétipos que o psicanalista Carl Jung descreveu como parte do inconsciente coletivo. "Nós os mantemos em casa com orifícios vaginais, ferramentas e toras fálicas de lenhador", disse ele.
Da perspectiva junguiana, Thomas e Wislow representam diferentes aspectos do psiquismo de uma única pessoa. Thomas é como o id selvagem que cede a todos os seus desejos mais básicos e Winslow é como o ego, consciente das normas sociais e lutando para manter a civilidade.
No início, quer ficar silencioso diante do falante Thomas – não quer beber, embriagar-se, quer ficar focado no pagamento final daquele trabalho que poderia tirá-lo do buraco da sua vida.
Terceira Camada: Jung e mitologia
A realidade só começa mesmo a enlouquecer depois que Thomas e Winslow ficam bêbados pela primeira vez – há o argumento de que a bebida envenenou suas mentes, principalmente pela bebida caseira feita aparentemente à base do querosene que mantém em funcionamento o farol. O que poderia ter causado as alucinações que se seguem no filme.
De um lado, a exclusividade pela qual Thomas quer o farol só para si. E do outro, a obsessão de Winslow em saber o que há no topo da torre – lá Thomas passa a noite com alguma forma aparentemente de entidade híbrida marinha.
Progressivamente a narrativa começa a entrar no campo mitológico e mágico do inconsciente coletivo.
O farol pode ser visto como símbolo da consciência individual, do processo de individuação que acende "uma luz na escuridão do mero ser", como Jung colocou em suas memórias. Ele também escreveu estas palavras de aviso em Psicologia e Alquimia : "O encontro entre a (...) consciência individual e a vasta extensão do inconsciente coletivo é perigoso, porque o inconsciente tem um efeito decididamente desintegrador na consciência."
Os faróis costumavam ser construídos perto das águas mais perigosas, somente após uma infinidade de desastres terríveis no mar. Como tal, eles simbolizam brilhantemente os perigos da individuação - um perigo constante de serem engolidos pelas forças inconscientes que vão além do nosso controle.
Nesse ponto O Farol se encontra com o mito de Prometeu, titã que roubou o fogo dos deuses para entregar à humanidade. Thomas atormenta o quieto Winslow com sua histórias e fábulas sobre, por exemplo, como as gaivotas são os receptáculos das almas dos marinheiros que morreram no mar. É o magma do inconsciente coletivo, enquanto tenta manter a racionalidade, o foco no trabalho, pensando no pagamento e no navio que, depois de um mês, o resgatará daquela ilha esquecida por Deus.
Ele aos poucos está se perdendo nas alusões a sereias e seres híbridos ao estilo HP Lovrecraft. Winslow luta pela individuação, pela luz/fogo no topo do farol – a tensão homoafetiva que cresce com Thomas está ligada ao fascínio pelo poder fálico do farol e aquilo que Winslow mais almeja: a afirmação individual.
Como na mitologia, ele desafia os deuses e sobe a escadaria em espiral, em si, repleta de simbolismos - uma complexa simbologia do eixo e da verticalidade. Enquanto forma ela enquadra-se perfeitamente no tema da identidade e individuação. Por ser uma forma logarítmica, isto é, por crescer de modo terminal sem modificar a forma total constitui-se no ícone da temporalidade, da permanência, do ser através das mudanças.
Ele quer também ter o privilégio de olhar para a Luz, mesmo ao preço de ter o mesmo destino final de Prometeu.
De várias maneiras, o personagem de Thomas Wake é elaborado como um Demiurgo que, como os deuses, quer impedir a “ascensão” de Winslow, e mantê-lo submisso ou vítima de alguma conspiração sugerida a certa altura do filme: será que o faroleiro anterior foi assassinado por Thomas?
Ao final, Robert Eggers consegue fazer uma magistral fusão entre a simbologia do farol (a eterna batalha do homem contra as forças da natureza), os perigos da individuação e da imersão do ego do oceano do inconsciente coletivo e, finalmente, a conspiração gnóstica dos deuses contra a humanidade para impedir que provemos do fruto proibido – assim como no Paraíso bíblico, impedir que ascendemos à Luz e tenhamos a capacidade própria de julgar o que é certo e errado. Sem a necessidade de deuses.
Ficha Técnica
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Título: O Farol
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Diretor: Robert Eggers
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Roteiro: Robert Eggers, Max Eggers
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Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe, Valeriia Karaman
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Produção: New Regency Pictures, A24
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Distribuição: Vitrine Filmes (Brasil)
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Ano: 2019
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País: EUA, Brasil, Canadá
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