terça-feira, abril 12, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Bruxas e a moralidade de puritanos da América colonial do século XVII
narrado com explícitas alusões à família que se autodestrói no filme "O
Iluminado" de Kubrick e a referência visual do quadro de Goya "O Sabá das
Bruxas". Tudo leva a crer que “A Bruxa” (The Witch, 2015) é mais um filme do
gênero terror com sustos, sangue e perseguições. Mas o estreante diretor Robert
Eggers sabe que a mente é o verdadeiro combustível
do horror: mantém o espectador no fio da navalha entre a realidade e a ficção:
a dúvida se o elemento sobrenatural sugerido no filme é real ou se atmosfera claustrofóbica da
moralidade puritana foi capaz de criar bruxas e demônios. O resultado é uma
verdadeira psicanálise dos arquétipos do horror e das bruxas que sempre foram
“bodes expiatórios” dos horrores que povoam nossas mentes.
Desde que Linda Blair vomitou um líquido verde e girou a cabeça em O
Exorcista em 1973, o gênero terror acabou confundindo-se com efeitos especiais,
monstros dismórficos e muito sangue e vísceras espirrando para a câmera. Foram
décadas de serial killers do outro mundo como Jason e Fred Krugger, zumbis e
bruxas cujas vassouras se transformam em arma mortal para decepar cabeças.
Décadas que acabaram fazendo o gênero esquecer os seus fundamentos no
distante expressionismo alemão de Fritz Lang, Robert Wiene e Murnau onde o
víamos o horror muito mais no rosto dos protagonistas (olhando para o
contra-campo – aquilo que está fora do enquadramento), na cenografia fantástica
e na atmosfera de pesadelo. O terror e o susto substituíram o horror humano
diante do próprio Mal.
Mas o filme A Bruxa, na
estreia do diretor Robert Eggers em longas metragens, resgata esse horror
fundamental e esquecido nos últimos tempos: um profundo e inquietante conto do
folclore da Nova Inglaterra em uma América colonial. Perturbador e totalmente
inesquecível.
Mas um ponto fora da curva dentro das atuais convenções hollywoodianas
do gênero. Tanto que o diretor encontrou dificuldades para encontrar
financiamento. Entre outras produtoras, precisou também de uma produtora
brasileira, a RT Features (responsável por filmes como Tim Maia e O Cheiro do Ralo),
que apostou em um filme estranho aos clichês atuais gênero.
Nas entrevistas com a imprensa especializada, Eggers afirma que o filme
foi, de um lado, o resultado de vinte anos de paixão e desconstrução do filme O
Iluminado de Kubrick e, do outro, o fascínio pelos filmes de horror inglês da
Hammer (produtora de filmes dos anos 1960) inspirados em contos do folclore daquele país.
O processo de autodestruição de uma família como em O Iluminado e as
personagens das bruxas do folclore, cuja melhor tradução visual está nas
pinturas de Goya, foram os principais elementos para a construção do filme A
Bruxa. Para tanto Eggers fez uma extensa pesquisa sobre a vida familiar e o
folclore da década de 1630 na Nova Inglaterra, algumas décadas antes do infame
julgamento das bruxas de Salém – onde 20 pessoas, a maioria mulheres, foram
julgadas e executadas.
Mas principalmente o filme A
Bruxa busca o horror que está dentro de nós: a forma como projetamos no outro
um bode expiatório para tentar expiar o Mal que instituições como a família e a
religião criam e que levam elas próprias à autodestruição.
O Filme
A narrativa acompanha uma família de agricultores que foi excomungada de
uma comunidade puritana depois de o pai William (Ralph Ineson) acusar os laços
religiosos frouxos que sustentariam aquela sociedade. William muda-se com sua
família para uma cabana isolada ao lado de uma floresta fechada e sombria,
vendo a possibilidade de praticar uma vida mais próxima a Deus e dos
fundamentos da religião puritana.
Mas o otimismo e o fervor religioso começam a ser postos em prova quando
a filha adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy) não percebe o desparecimento do
bebê da família enquanto brincava com ele. Então o espectador é introduzido a
uma figura encapuzada correndo com o bebê através da floresta.
O que se segue é o centro do conflito do filme: a família luta em manter
a fé em Deus diante de tal tragédia. Além disso, as coisas continuam a piorar
com a pobre colheita do milho e o perigo da família morrer de fome com a
aproximação do inverno.
A fé dos membros inclui a mãe Katherine (Kate Dickie), o filho
pré-adolescente Caleb (Harvey Scrimshaw) e dois jovens gêmeos
indisciplinados Jonas (Lucas Dawson) e
Mercy (Ellie Grainger). O tempo inteiro oscilam entre as questões
puritanas sobre o pecado original, o destino do bebê após a sua morte ou se
eles foram redimidos aos olhos de Deus. É possível ir para o céu se você pecou?
Podemos saber com certeza se Deus perdoa? O que significa permitir a entrada do
pecado em sua vida? E como podemos identificar as consequências?
Essas dúvidas começam a atormentar cada vez mais os corações e mentes da
família enquanto os infortúnios vão se sucedendo, o que se transformam em suspeitas
de uns contra os outros. Alguém deve ser o responsável pela má sorte. Se não é
Deus, com certeza será alguns deles.
O susto e o medo
O filme lida com o medo e não com sustos. O filme sugere que há alguma
coisa de sinistra e sobrenatural no
interior da floresta que cerca a cabana. Mas Eggers sabe que o verdadeiro poder
de filmes como esse não é mostrar um vilão icônico e familiar para o gênero. Há
uma dúvida sobre a existência real de algum círculo de bruxas no interior da
floresta, ou se a própria floresta sombria não passa de uma projeção da
crescente paranoia e ansiedades religiosas daquela família.
Há diversos sub-plots no filme (a relação de Caleb com o pai, a
incompetência do pai em manter a subsistência da família, a crescente histeria
religiosa da mãe, mentiras e hipocrisias que aos poucos vem à tona etc.).
Mas todos esse subtemas terminam na menina Thomasine. Ela está entrando
na puberdade, tornando-se um fator de desequilíbrio na dinâmica familiar.
Sutilmente, Eggers mostra como a natural sensualidade de Thomasine começa a
afetar a todos, a cada um de uma maneira diferente.
O que impressiona é como a moralidade puritana torna cada membro daquela
família duro consigo mesmo: se todos são filhos do pecado original, então somos
naturalmente culpados e condenados ao inferno desde o início, tornando a vida
uma série de gestos e penitências que buscam pedir o perdão de Deus.
O inferno puritano procura um bode expiatório
Com esse inferno psíquico puritano somada a série de infortúnios que
atinge a família, a pressão torna-se cada vez mais insuportável para todos.
Como em qualquer instituição social, essa pressão deve ser necessariamente
aliviada pela busca do chamado “bode expiatório”- alguém deve ser o culpado por
não ter fé suficiente ou de simplesmente ser um traidor.
O que Eggers faz no filme é uma verdadeira psicanálise dos contos de
fadas, no melhor estilo do livro clássico Psicanálise dos Contos de Fadas de
Bruno Bettelhein. A figura mítica da bruxa surge como um recurso desesperado
para manter uma família ou comunidade coesas quando estão à beira da
autodestruição.
As acusações dos pais contra Thomasine onde tentam encontrar alguma
lógica religiosa para acusa-la de bruxaria foram retiradas das pesquisas do
diretor sobre os relatos do Julgamento das Bruxas de Salém. Somado ao
assustador design de áudio e os sets unicamente iluminados por velas e
lampiões, cria-se uma atmosfera claustrofóbica que em muitos momentos faz o
espectador lembrar do filme O Iluminado.
A mente é o combustível do horror. Eggers sabe disso e mantém a
narrativa e os espectador no fio da navalha – os constantes enquadramentos com
os personagens olhando aterrorizados para o contra-campo; as sequências das
imagens da floresta profunda sugerindo às vezes o horror sobrenatural e, outras
vezes, apenas o medo natural diante das intempéries; a ameaça de alguma força demoníaca que
parece crescer ao mesmo tempo em que se acumulam as tensões e são reveladas as
mentiras e hipocrisias daquela família puritana. E a dúvida permanente do
espectador entre a realidade e ficção, bruxas reais ou delírios de puritanos
atormentados pelo culpa e pecado.
Eggers conseguiu fazer uma história arquetípica do horror da Nova
Inglaterra após pesquisas junto a historiadores, museus de história natural e
os arquivos do infame Julgamento de Salém. Mas, principalmente, também conseguiu
fazer uma psicanálise dos colonos puritanos que iniciaram a América.
Assistindo ao filme, fica a questão que continua martelando a mente
desse humilde blogueiro: qual as conexões desse horror gótico do século XVII
com o mundo moderno? Como esses medos puritanos que, foram a base cultural da
América, continuam presentes no mundo atual? Principalmente em um mundo onde a
cultura norte-americana é irradiada para todo o planeta através da indústria
hollywoodiana.
Ficha
Técnica
Título: A
Bruxa
Diretor: Robert Eggers
Roteiro: Robert Eggers
Elenco: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate
Dickie, Harvey Schrimshaw
Produção: RT Features, Parts and Labor, Rooks Nest Entertainment, Cod Red
Productions
Distribuição:
Universal Pictures International (UPI)
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
Publicidade
Coleção Curtas da Semana
Lista semanalmente atualizada com curtas que celebram o Gnóstico, o Estranho e o Surreal
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
Domingo, 30 de Março
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>