“Olhe
sempre para o lado brilhante da vida”, cantava um condenado à morte pelos
romanos, na cruz, no filme “A Vida de Brian” do grupo inglês de humor Monty
Python. Diante de uma realidade birrenta e teimosa que insiste em contradizer a
pauta da “retomada do crescimento econômico”, a mídia corporativa faz como Eric
Idle cantando naquele filme: tenta transformar más notícias em positivos “Contos
Maravilhosos”, conceito dos estudos de narratologia do
pesquisador Vladimir Propp – contos mágicos de perda e recompensa. Para tentar
elevar o astral da patuleia, agora convertida em mérito-empreendedores, a Globo
criou mais três edificantes contos para as festas de fim de ano: os contos
maravilhosos sobre o botijão de gás, o Conto Maravilhoso do resgate dos valores
natalinos e uma novidade – o Meta Conto Maravilhoso da jornalista demitida.
Enquanto universidades
privadas demitem em massa e engrossam as estatísticas do desemprego, os números
de moradores de rua crescendo em 75%, o prosaico botijão de gás com o sexto
aumento do ano forçando famílias a retroceder ao fogão à lenha e às velhas
espiriteiras com álcool, além do comércio popular de final de ano não apresentar
o aguardado aumento nas vendas, a grande mídia continua a sua cruzada estoica
de tentar transformar todas essas mazelas da estagnação econômica em
inspiradores contos maravilhosos.
Para tentar elevar a moral da
patuleia e fazê-la acreditar que lá na frente, depois de atravessar o deserto,
estará a terra prometida do mérito-empreendedorismo – a fé de que querer é
poder.
Em postagem anterior
discutíamos como uma realidade que insiste em contradizer os visionários
especialistas e pesquisas, associada a era das redes sociais e dispositivos
moveis, obrigou a mídia corporativa a buscar uma estratégia híbrida de
manipulação: transformar más notícias em “Contos Maravilhosos”, no sentido dado
pelo estruturalista russo Vladimir Propp - clique aqui.
São verdadeiros “contos de
magia” nos quais sempre parte-se de um dano ou carência, passando por funções
intermediárias (transmissão do objeto mágico, reação etc.) e chegando ao
casamento e recompensa.
Sem poder mais dissimular
(mentir, esconder etc.) diante da abundância de informações disponíveis nas
redes sociais (pelo menos enquanto a neutralidade da Internet permitir), o
jornalismo corporativo é obrigado a apresentar as “más notícias”. Mas agora o
desafio é reverte-las e transformá-las em “contos de magia” de superação e
recompensa.
Claro que essa estratégia
colocada em prática não é consciente. Afinal, com a atual precarização dos
cursos superiores, nenhum jornalista possui formação cultural generalista
suficiente que permita aplicar conceitos de narratologia em um texto noticioso.
Propp descobriu nos contos
folclóricos russos uma estrutura narrativa recorrente, uma “psicologia dos
povos” que certamente figuram nos atuais produtos da indústria do
entretenimento como arquétipos. Mas no caso do Jornalismo, nada mais é do que uma
espécie de Wishifull thinking - de
que a realidade magicamente se converta naquilo que é esperado nas reuniões de
pauta dos “aquários” das redações.
Vamos analisar mais três
Contos Maravilhosos “proppianos” que até poderiam ser divertidos, não fossem
trágicos...
1 – Aumento do preço do botijão de gás rende mais contos maravilhosos
Não importa se o aumento dos
preços é da eletricidade, da gasolina ou do botijão do gás. Sempre os motivos
alegados pelo governo, e diligentemente replicados pelo jornalismo corporativo,
estão no campo das fatalidades “naturais”: falta de chuva ou a tensa conjuntura
internacional dos preços.
Só o gás de cozinha sofreu
reajustes que acumulam 50% num ano em que os especialistas midiáticos definem
como de “retomada do crescimento e de queda da inflação”.
Diante dessa contradição entre
a pauta da retomada e as insistentes notícias de reajustes de preços, nada
melhor do que transformar tudo em um conto maravilhoso.
Por exemplo, para os aumentos
das tarifas de energia elétrica, a edição do Jornal Nacional de 05/12 qualifica como “estímulo para o consumo de
eletricidade fora dos horários de pico”.
E outra reportagem do
telejornal na qual os aumentos do botijão de gás também viraram uma espécie de estímulo:
a volta da “cozinha à moda antiga” do fogão à lenha, com direito a trocadilhos
como a da dona de casa Maria do Socorro que “manda brasa” na cozinha.
Com um olhar meio perdido,
virando de um lado para o outro, como fosse o espelho da própria ansiedade da
repórter diante da necessidade de confirmar a pauta do editor, Maria do Socorro
fala meio sem convicção: “... é mais gosto e mais barato, isso é verdade...”.
E na mesma matéria, também a
Dona Emília, “cozinheira de mão cheia”, prepara tudo na boca do fogão e não usa
mais o forno: “economiza gás, mas no sabor não tem economia...”, sintetiza a
atenta repórter a sabedoria popular da dona de casa.
Lições tatibitate de "economia doméstica" |
Os anos de abastança econômica
e o surgimento da Classe C (que começou a ter os alguns hábitos de consumo de
classe média alta) criou como reação a figura da “simplicidade descolada” – por
exemplo, enquanto o Rodrigo Hilbert em seu “Tempero de Família” do GNT fazia seu
próprio fogão a lenha e valorizava a volta das “tradições populares antigas”
como signo diferenciado de consumo para a classe média alta, a Classe C
esbaldava-se na ostentação comprando fogões novos de seis bocas com fornos espaçosos.
Hoje, quando a arrependida
Classe C retorna à lenha e à boca do fogão, tudo transforma-se num conto
maravilhoso do retorno do povo à sua própria sabedoria perdida pelos anos de
“consumismo” e de “vida supérflua” da era lulo-petista: agora, cozinha “à moda
antiga” com pratos “que não economizam sabor” e cozinheiras que “mandam brasa”.
Mas em tempos do modo de
pensar mérito-empreendedor (no qual todos os “desafios” podem ser
“equacionados” com “planejamento” e “ferramentas criativas”), os contos maravilhosos
devem ter o toque de “gestão”, como mostrou o Fantástico desse último domingo.
Dessa vez o “conhecimento
mágico” foi transmitido por uma especialista ou gestora que iluminou a
ignorância popular: Daniela Godinho, autointitulada “pioneira de educação
financeira e comportamental no Brasil (mais um desses personagens da chamada “economia
criativa”), “treinou” a Dona Jandira que fará uma ceia para 15 pessoas, em um
bairro popular de São Paulo, com dicas da especialista Daniela.
As “dicas” são nada mais do
que pérolas do pensamento gestor do empreendedorismo: divisão dos alimentos em
“grupos” antes de serem levados ao forno, “planejar uso e a capacidade do forno”,
“proporcionalidade das panelas” etc. ... Já podemos imaginar o lançamento de
futuros aplicativos, por alguma startup,
para a gestão da cozinha.
E todas as dicas da
“especialista em educação financeira” em tom de voz quase tatibitate, como se
tratasse a pobre Dona Jandira como uma ignorante.
2 – O conto maravilhoso do resgate dos valores natalinos
Não está fácil para os
repórteres saírem à rua e terem de confirmar, a todo custo, a pauta da retomada
econômica. Se os shoppings e calçadões comerciais não são mais capazes de
render imagens de animados consumidores carregando pesadas sacolas com compras,
dessa vez colocam os pobres repórteres para fazer o corpo-a-corpo no olho do
furacão do comércio popular como a 25 de Março em São Paulo ou no Saara no Rio.
Mas mesmo assim, a realidade é
teimosa e birrenta. Tanto que o canal GloboNews acabou jogando a toalha. Mas
não sem criar mais um Conto Maravilhoso.
No programa Estúdio i de 18/12 uma das pautas de
discussão foi “brasileiros pretendem apenas comprar lembrancinhas”. A
comentarista de economia do programa, a jornalista Flávia Oliveira, trouxe mais
uma das indefectíveis pesquisas sobre consumo no final de ano, dando conta de
que a maioria dos brasileiros compraria apenas “lembrancinhas” no Natal. Apesar
da economia apresentar “lenta tendência de recuperação” o Natal será mais simples”.
E, principalmente, que o
brasileiro gastará muito mais com os alimentos da ceia do que com presentes.
“Eu gosto disso!”, vibrou a apresentadora Maria Beltrão. “... A ideia do
ritual... já que estamos aqui, vamos comer bem, fazer brinde seja com que
bebida for...”, completou entusiasmada.
E a poética Flávia Oliveira
completou: “sem visar a questão comercial da data, as pessoas resgatam os
valores mais belos do significado do Natal”. E retornou às suas elucubrações
estatísticas dos números do infográfico da pesquisa.
Depois da estagnação econômica
nos fazer voltar no tempo para resgatar as delícias da gastronomia do fogão à
lenha dos nossos avós, também nos ajuda a refletir sobre os “mais belos
significados do Natal”.
Como cantava Eric Idle, membro
do grupo de humor Monty Python, no filme A
Vida de Brian: “Olhe sempre o lado brilhante da vida...”, cantarolava, enquanto
era condenado a morte pelos romanos, crucificado.
3 – O Meta Conto Maravilhoso da jornalista demitida
Uma injustiça! Certamente a
jornalista de economia Thais Herédia foi a pioneira da narratologia poppiana no
texto jornalístico. Nessa semana, a direção de jornalismo da Globo, sem dar
maiores explicações, pegou a produção do programa Em Pauta da GloboNews de surpresa ao anunciar a demissão da
apresentadora. Bete Pacheco foi chamada às pressas para substituí-la na edição
do programa daquele dia.
Thais Herédia iniciou o
jornalismo da grande mídia aos Contos Maravilhosos de Propp em abril desse ano:
em meio às notícias da queda da inflação que não poderiam ser comemoradas
(afinal era muito mais uma “deflação” provocada pela estagnação econômica) a
jornalista manchetou: “Recessão e desemprego derrubam a inflação e devolve
poder de compra aos brasileiros”.
O que provocou reações entre
piadas e acusações de fazer “jornalismo chapa branca”. Diante da incompreensão
da choldra que não conseguiu entender o momento histórico da criação da
novidade narratológica em jornalismo, Herédia foi forçada a apresentar um longo
pedido de desculpas nas redes sociais: “onde eu estava com a cabeça!”,
começavam as desculpas – clique aqui.
Pois a jornalista foi vítima
de outra injustiça: uma demissão sem justificativas públicas. Logo ela, a
percussora de todos os Contos Maravilhosos que tomam conta de páginas de
jornais e telas de TV e dispositivos móveis nesse final de ano...
Mas como em todo conto, vem a
recompensa final com a conquista do elixir: agora ela viverá o seu Meta Conto Maravilhoso:
poderá vivenciar na prática o fabuloso aumento do poder de compra dos
desempregados brasileiros do seu seminal Conto Maravilhoso.
Postagens Relacionadas |