Para a
revista “New Yorker”, publicação dos leitores bem pensantes liberais dos EUA, a
série “Handmaid’s Tale” (2017-) é um “distópico conto feminista” da atual era
Trump. Mas enquadrar a produção da plataforma de streaming Hulu nesse clichê é
confirmar aquilo que a própria série alerta: ao qualificar os sinais do
conservadorismo apenas como excrescências religiosas de gente ignorante é mau
informada, reduzimos tudo a uma estranha normalidade, sem percebemos os sinais silenciosos cotidianos que antecedem os golpes políticos. Em “The Handmaid’s Tale” a
América foi dominada por um estado teocrático fundamentalista cristão. Um
desastre ambiental tornou a maioria das mulheres estéreis. As poucas mulheres
férteis foram subjugadas e transformadas em “servas”, reduzidas a aparelhos
reprodutores de uma elite dominante masculina. O Congresso, a Casa Branca e o
Supremo Tribunal foram massacrados e a Constituição foi substituída pela leitura
radical dos versículos da Bíblia.
Era
apenas mais um dia de compras em uma loja da rede Hirota Food Supermercados em
São Paulo. Seria mais um dia normal, não tivesse recebido, após as compras, uma
cartilha de cunho religioso escrita por um pastor e com a identidade
corporativa da rede de supermercados. Uma cartilha que discorria sobre a
Família como “formadora de virtudes” e descrevia os “pilares do casamento”. Um
deles, a submissão da esposa ao marido.
Vanessa
ficou horrorizada ao ouvir de sua noiva, que lia em voz alta trechos da
cartilha, coisas como “casamento é heterossexual. A relação conjugal homem e
homem e mulher e mulher é antinatural, é um erro, uma paixão infame, uma
distorção da criação”.
Vanessa
postou críticas à cartilha no Facebook como um “desrespeito às milhares de
famílias que existem”. O episódio mereceu notificação do Ministério Público à
rede Hirota, considerando a cartilha que condena gays, o aborto e o sexo antes
do casamento como “discriminatória” – leia aqui a notícia.
Para as
mentes bem pensante liberais, cosmopolitas, intelectualizadas e laicas, tudo é
muito bizarro. Uma excrescência do fundamentalismo religioso em pleno século
XXI. Tudo não passa de um produto da ignorância de gente que parece viver fora
da História.
E as
cabeças bem pensantes postam nas redes sociais comentários entre a indignação,
ironia e chacota diante de algo tão extemporâneo e bizarro em uma moderna
metrópole. E voltam a suas vidas normais, sem se dar conta que eventos como
esse podem ser sinais de uma nova ordem que apenas está à espera da sua
tradução política para conquistar o poder e “revolucionar” a sociedade.
Estamos presos em bolhas virtuais?
E se,
presos em nossas bolhas virtuais nas quais confundimos a realidade com
postagens em redes sociais, não estivermos dando conta da gestação silenciosa
de uma nova ordem? – cartilhas como a dessa rede de supermercados criarão uma
estranha normalidade até o momento em que, um belo dia, acordaremos e daremos
de cara com uma nova ordem política na qual a Constituição foi substituída por
versículos da Bíblia Sagrada.
Essa é a
preocupante premissa da série The Handmaid’s
Tale (2017-), criada por Bruce Miler em 10 episódios para o canal de
streaming Hulu, adaptado do romance “O Conto de Aia”, escrito pela canadense
Margaret Atwood, em 1985. Já com a segunda temporada confirmada para 2018 com
13 episódios.
Muitos
críticos querem definir a série como “feminista”, já que o livro original foi
inspirado no período conservador na era Reagan dos anos 1980 no qual o
Feminismo era declarado como acabado diante da chegada massiva das mulheres no
mercado de trabalho – mas ao mesmo tempo havia a discussão anti-aborto liderada
por figuras do New Christian Right como Phylis Schafly e o televangelista Tammy
Faye Bakker.
Talvez,
reduzir a série The Handmaid’s Tale
ao viés do “feminismo” é uma racionalização liberal para acalmar as “mentes bem
pensantes” e reduzir as ameaças conservadoras a suposta ignorância de alguns recalcitrantes
que negam a História. A mesma racionalização que fez a América liberal ser
derrotada na série, por obra de uma reação política fundamentalista cristã que
massacrou os ocupantes da Casa Branca, do Congresso e do Supremo Tribunal.
Reduzindo o país a um grotesco Estado teocrático policial que vigia e pune, seguindo a
aplicação rígida dos mandamentos bíblicos.
Por
isso, a princípio a série é uma assustadora distopia no qual as mulheres foram
reduzidas a sua função reprodutora, o sexo consensual deixou de existir, os EUA
laico acabaram (agora é chamado de “República de Gileade” – na Bíblia, região montanhosa a Leste do Rio Jordão que
significa “monte de testemunho”) e a saudação ao invés de ser “Seig Heil!” é
“Sob o olhar Dele!”.
Mas
também The Handmaid’s Tale é preocupantemente
“hipo-utópica” – o sombrio futuro figurado na série nada mais seria do que uma
projeção hiperbólica de eventos que estão pipocando aqui e ali, agora, no
presente. Assim como a cartilha religiosa-corporativa da Rede Hirota de
Supermercados.
A Série
A
narrativa dos dez episódios é estruturada em constantes flashbacks, para que o
espectador consiga juntar os fragmentos de memórias da protagonista e descobr o
que fez de repente a Constituição e os direitos civis serem suspensos através
de um golpe de Estado cristão-fundamentalista.
A série acompanha
Offred (Elizabeth Moss - para : “Of-Fred”, o nome do “Comandante” que é dono
dela). Ela é uma das “servas” (ou “handmaid”) - trajadas com um hábitos
vermelho-sangue e pequenos chapéus brancos. Enquanto as esposas dos Comandantes
trajam vestido em verde musgo e se restringem às atividades domésticas –
administrar o trabalho das serviçais chamadas “Marthas” que trajam roupas
cinzas e se dedicam à cozinha e limpeza.
Uma sociedade religiosa, fanática, militarizada
e hierarquizada que foi uma reação fascista a algum tipo de catástrofe
ambiental que resultou na infertilidade da maioria das mulheres do planeta. Sob
o pretexto do combate ao terrorismo islâmico, um forte movimento político
religioso fundamentalista dá um golpe de Estado, em uma guerra civil que parece
perpetuar.
Sob um
novo regime de castas sociais, as mulheres foram subjugadas e, pela nova lei
bíblica, não têm direitos civis – não podem trabalhar, ter propriedades, ter
dinheiro ou simplesmente ler. Livros e revistas da velha ordem foram recolhidos
por caminhões de lixo para serem incinerados.
O
pequeno grupo de mulheres ainda férteis foi caçado e capturado pelas forças
policiais para serem violentamente submetidas e doutrinadas para
tornarem-se “servas” – numa interpretação extremista do conto bíblico de Jacó
do livro do Gênesis: Raquel ao descobrir que era estéril, ofereceu ao marido
Jacó sua criada para dar os filhos que não poderia gerar.
As
servas são designadas para a casa de cada Comandante onde são submetidas a
estupros ritualizados (a “Cerimônia”) pelos seus mestres masculinos, para gerar
os filhos para as respectivas esposas. E que observam, passivas, os estupros
ritualizados de cada “Cerimônia”.
June
Osborne, agora chamada de Offred, é designada para a casa do Comandante Fred
Waterford (Joseph Finnes) e de sua esposa Serena Joy Waterford (Ivonne
Strahovski). Ela é sujeita às regras mais rigorosas e sob constante vigilância;
uma palavra ou má ação pode levá-la a uma “execução”: conjunto de punições que
variam de acordo com cada "pecado": decepamento, apedrejamento, vazamento de um olho e
assim por diante.
Nas
ruas, vemos corpos de condenados a enforcamentos pendurados em paredões como
tática de propaganda pelo terror: ali jazem membros da Resistência e também
“traidoras do gênero”, lésbicas que ousaram em fazer sexo sem finalidade
reprodutiva. Aliás, sexo fora dessa finalidade é condenado como “luxúria” pelo
Estado de Gileade.
Muito além do feminismo
Toda a
primeira temporada é uma história de resistência psíquica e física de Offred,
seus pensamentos interiores e tiradas de humor negro como forma de manter algum
distanciamento da realidade cruel e não enlouquecer.
Há
vários flashbacks em que Offred relembra o “tempo de antes”, quando seu nome
era June, casada e com uma pequena filha.
O que
chama a atenção em The Handmaid’s Tale
é a forma aparentemente banal como a América foi destruída por um movimento
fundamentalista que aos poucos foi se infiltrando no cotidiano.
As ameaças
terroristas e o problema ambiental foram justificativas para a instalação de um
governo totalitário. Enquanto isso, June levava sua rotina de trabalho, casa e
relacionamento com amigas e redes sociais pela Internet, alheia aos
acontecimentos ao redor. Até o momento em que ela, e todas as mulheres da empresa em que
trabalhavam, serem inexplicavelmente demitidas; ou ao chegar a um café e fazer um
pedido, ser violentamente maltratada por um balconista, que lhe chamou de
“puta” e “vadia” por estar com uma amiga negra. Além de ter sua conta corrente
bancária arbitrariamente bloqueada.
Mas The Handmaid’s Tale não pode ser
qualificado apenas como uma “série feminista”. Seria como reduzir o
nazi-fascismo apenas a uma conspiração anti-sionista e ignorar as questões
universalmente perversas que esse regime totalitário levantou para o presente.
A
primeira temporada aborda dois elementos-chave do psiquismo do fascismo que,
como sempre, vale-se de álibis religiosos e leituras oportunistas da Bíblia
para ideologicamente se justificar.
Eugenia e “Correia de Transmissão”
O primeiro,
a perpetuação genética de uma elite dominante: a Eugenia. A “Cerimônia” é uma
versão religiosamente caricata do programa do partido nazista durante a Segunda
Guerra Mundial chamado “Lebensborn” (“Primavera da Vida”) no qual mulheres de
“sangue puro” (muitas delas sequestradas pela SS na Noruega) eram obrigadas a
manter relações sexuais com oficiais solteiros e casados da SS para dar a luz
crianças “puras”, com os traços arianos desejados pela religião Nazi.
E
segundo, a criação da dinâmica psíquica própria do fascismo que acaba criando
uma coesão social perversa por meio do ódio, subserviência e humilhação. Um
esquema que Adorno e Horkheimer chamaram certa vez de “correia de transmissão”:
“aquele que é duro consigo mesmo adquire o direito de sê-lo com os demais e se
vinga da dor que não teve liberdade de demonstrar, que precisou reprimir”,
afirmou Adorno – clique aqui.
No
“tempo de antes”, ironicamente Serena Waterford foi uma acadêmica e também uma
das ideólogas do movimento fundamentalista que resultou no golpe de Estado.
Para depois se tornar a esposa de um Comandante, submissa e humilhada pela
esterilidade e obrigada a testemunhar a “Cerimônia” do próprio marido. Ela
reprime a dor psíquica, para vingar-se no outro, por meio do relacionamento
autoritário e violento com as “Marthas” e com a própria serva Offred.
Sincronicamente,
The Handmaids’ Tale terminou de ser
produzida pouco depois de Donald Trump chegar ao poder nos EUA, chamando a
atenção para uma tendência global de reação neoconservadora como resposta às
crises econômicas e ambientais de todo o mundo.
Por
isso, a série é um alerta de como retrocessos e reações que antecedem toda
guinada política radical como golpes e revoluções surgem em eventos banais, sem
nos darmos conta, imersos em que estamos em nossos afazeres cotidianos.
Os
golpes políticos sempre são considerados “regimes de exceção”, necessários até
o “mal” ser derrotado. Tudo parece vai que durar poucos meses, até as coisas
serem normalizadas. Os alemães pensaram a mesma coisa quando o partido nazista
adotou a perseguição e violência como modus
operandi político. Até tudo acabar no holocausto e destruição.
Ficha Técnica
|
Título: The
Handmaid’s Tale (Primeira Temporada)
|
Criador: Bruce
Miller
|
Roteiro: Nina Fiore, baseado no romance de Margaret Atwood
|
Elenco: Elisabeth Moss, Yvonne Strahovski, Joseph
Fiennes, Max Minghella
|
Produção: MGM Television
|
Distribuição: Hulu, Channel 4
|
Ano: 2017
|
País: Canadá
|
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