"Os Famosos e os Duendes da Morte" (2009) é uma das raras
incursões da produção do cinema nacional no imaginário arquetípico gnóstico. A
narrativa é um exemplo de como, através do cinema, a subjetividade
contemporânea é representada por meio de personagens gnóstico. No filme,
caracterização do protagonista como o "Viajante" - aquele que
através do silêncio, melancolia e introversão busca um particular estado
alterado de consciência: a "suspensão": a busca de uma ponte (no
filme, ao mesmo tempo simbólica e literal) entre esse mundo e a iluminação
espiritual.
- As vezes eu tenho nojo de mim. Queria que tudo acabasse de uma vez!
- Como? A ponte? (diálogo do protagonista digitado no MSN)
Em uma cidadezinha gaúcha habitada por
descendentes alemães vive um jovem absolutamente deslocado, melancólico, a
maior parte do tempo em silêncio. Fugindo do cotidiano entediante do lugarejo,
o garoto se enclausura no seu quarto onde se conecta com o mundo exterior por
meio da internet, sob o codinome de "Mr. Tambourine Man".
Tal como na música de Bob Dylan, ele é
influenciado pela melancolia das canções do compositor. Tenta expressar seu
descontentamento com a vida por meio de contatos virtuais. Incapaz de expressar
suas angústias para a sua mãe viúva e para os amigos, tem as ferramentas da
internet como uma opção existencial.
Mas um mistério assombra a narrativa.
Entre seus sonhos, devaneios e alucinações ronda a imagem de uma garota (que na
internet assina como "Jingle Jangle", outra referência a Bob Dylan),
tal qual um fantasma. Com a chegada de um homem misterioso que retorna à cidade
após um acidente há anos atrás, a atmosfera do filme passa a beirar o realismo
fantástico. Alucinações e realidade começam a se misturar.
A Ponte
Tudo parece girar e convergir para a
ponte de ferro da cidade, o elemento emblemático da narrativa: local não só de
uma série de suicídios que ocorrem no vilarejo como, também, peça-chave do
simbolismo final ao qual o filme pretende chegar.
Os
Famosos e os Duendes da Morte (2009), o primeiro longa-metragem de Esmir Filho (diretor de curtas
como o famoso hit da Internet “Tapa na Pantera”), inspirado no romance de
Ismael Canepele (“Música para Quando as Luzes se Apagam”) é mais do que um
drama intimista adolescente que tenta emular tramas como as do filme
"Paranoid Park" de Gus Van San.
Mais além, Os Famosos... é mais um exemplo de como o cinema apresenta as
formas de constituição da subjetividade contemporânea por meio de recorrentes
personagens míticos da tradição do gnosticismo. Uma tradição que parasita
literatura e cultura, garantindo as constantes ressurgências dos elementos
gnósticos ao longo da história.
Detetives, Viajantes e Estrangeiros
Em postagens anteriores (veja links
abaixo) descrevemos que os personagens fílmicos do cinema contemporâneo parecem
se constituir em torno sempre de três tipos de protagonistas arquetípicos: o
Detetive, o Viajante e o Estrangeiro. Uma sensação atravessa esses três
personagens: prisioneiros dentro de um cosmos hostil, estrangeiros dentro do
seu próprio país, um mal estar que perpassa toda a experiência humana como uma
estranha sensação de deslocamento, de não fazer parte de uma totalidade,
pressentida como corrompida e inautêntica.
O protagonista adolescente de Os Famosos...” é o arquétipo do
Viajante, cuja subjetividade é marcada pelo silêncio, melancolia e Jogo. Ele
não entre em confronto ou choque violento, apenas observa tudo em um estado de
suspensão (para o pensador gnóstico Basilides, filósofo gnóstico do início da
era cristã, importante estado alterado de consciência capaz de fazer o
indivíduo alcançar a suspensão de todo o pensamento, o grau zero da linguagem,
para, então, se alcançar a iluminação e Deus – a gnose).
Sua introversão e silêncio são
extravasados pelas suas incursões pela Internet (“Jogo”, no sentido lúdico). O
jogo faz o protagonista criar uma interzona entre ficção e realidade, criando o
desejado estado de suspensão, em torno da qual gira toda a experiência
sinestésica que o filme quer criar para o espectador: um relato sensorial
marcado pela fotografia que quer marcar texturas e formas fluidas com muita
contra-luz, cores estouradas e a alta definição de imagens como a dos dedos
sujos que tocam a pela alva de Jingle Jangle ou os belíssimos takes dos seus
cabelos finos ao vento, sob a luz do sol, na ponte.
Sempre a ponte de ferro, o grande
simbolismo que caracteriza o protagonista o Viajante nesse filme. Estar no meio
da ponte (imagem recorrente no filme) é o estado de suspensão. De lá, muitos do
vilarejo saltam para a morte. Tal como em filmes como Vanilla Sky (2002) e Vidas em
Jogo (The Game, 1997), o salto
para o vazio é mais uma representação imagética desse estado de suspensão que
busca a gnose, o “salto de fé”, mesmo sabendo, como diz o jovem protagonista,
que nada existe depois.
Numa das sequências que se aproxima do
final, o protagonista está no carro com o “estranho” que retornou à cidade,
para dar “umas bandas” e não ter que ir para a chata feste junina da
cidadezinha. Eles atravessam a ponte. A sequência é propositalmente alongada,
dando a impressão falsa de erro de continuidade. O “estranho” é aquele que, no
passado, teve um trágico envolvimento com Jingle Jangle.
O protagonista tem um inexplicável fascínio por ele que o conduz através da ponte. Com esse proposital erro de continuidade, a narrativa sublinha ainda mais o estado de suspensão do protagonista. Ele, ansiosamente, busca uma “saída” (como diz o estranho forasteiro, falando sobre o que ele também buscava quando mais jovem) de toda aquela sensação (“Às vezes tenho nojo de mim. Queria que tudo acabasse de uma vez!”, digita no MSN o protagonista em certa altura da estória).
Sua “saída” está na ponte de ferro, para
onde vai caminhar na sequência de significado aberto que encerra o filme.
Gnosticismo pop e cult
Os
Famosos e os Duendes da Morte é um dos raros filmes brasileiros a fazer uma incursão por narrativas
místicas gnósticas. Diferente dos filmes gnósticos norte-americanos como Show de Truman, Vanilla Sky, A Passagem
etc. onde temos roteiros que buscam uma espécie de gnosticismo pop para as
massas, aqui temos um gnosticismo Cult.
A mão pesada da direção parece querer
encher de simbolismos todos os vazios dos enquadramentos do filme. Tal como em
filmes como O Fabuloso Destino de Amelie
Poulin, parece que, em cada elemento do plano, o diretor que colocar aqui e
ali detalhes para que o espectador busque simbolismos. Esta estilização extrema
muitas vezes dá um quê de artificialismo, como se o filme pretendesse vir às
telas desde o início como “Cult”.
Erik Wilson (The Secret Cinema: Gnostic Visions in Film) afirma que essa fase
Cult (gnosticismo somente para um público intelectualizado) predominou nos anos
60 e 70 através de filmes como Zardoz
(Zardoz, 1974) ou O Homem Que Caiu na Terra (The Man Who Fell to Earth, 1976) e que,
na atualidade, entramos na fase pop do gnosticismo quando alcança o mainstream hollywoodiano por meio de
roteiristas como, por exemplo, Charlie Kauffmann.
De qualquer forma, Os Famosos... é um filme ousado e bem vindo ao trazer para a
produção cinematográfica brasileira o principal elemento narrativo gnóstico: o
aprisionamento do protagonista não apenas por uma realidade política ou social
hostil, mas por uma condição metafísica que envolve todas as outras.
Ficha Técnica |
Título: Os Famosos e os Duendes da Morte
|
Diretor: Esmir Filho
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Roteiro: Esmir Filho baseado no livro de
Ismael Caneppele
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Elenco: Ismael Caneppele, Tuane Eggers, Henrique Larré
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Produção: Dueto Filmes, Casa do Cinema de Porto
Alegre, Dezenove Som e Imagem
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Distribuição: Warner Bros.
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Ano: 2009
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País: Brasil
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