O material de propaganda do PMDB cujo slogan
é “Se Reforma da previdência não sair, tchau Bolsa Família, adeus Fies, sem
novas estradas, acabam programas sociais”, mais do que desespero de um governo
que corre contra o relógio (Lava Jato e Eleições 2018) revela a natureza do
Estado contemporâneo: o terrorismo e a lógica do refém. Se antes o terrorismo
era restrito a territórios como aeroportos e embaixadas, agora tornou-se
prática de governo: todos nós somos reféns sob a estratégia da chantagem dos
rombos e dívidas que se transforma na nova função do Estado. Lógica que se
sustenta em um mito, assim como aquele que o Barão de Munchausen, no filme
clássico de Terry Gilliam de 1988, destruiu: não existem exércitos turcos por
trás dos muros que mantém a cidade submissa pelo medo e a ignorância.
Na última sequência do filme As Aventuras do Barão de Munchausen
(1988), de Terry Gilliam, o herói Barão termina de contar suas histórias sobre
como conseguiu derrotar o exército turco e salvar o dia.
“Pare com essas idiotices! O Sr. está preso
por espalhar histórias ridículas num momento de grande perigo quando o inimigo
está às portas...”, ordena o prefeito que completa: “Sou ou não sou
representante eleito do povo?”.
Supostamente a cidade está sitiada e os
turcos estão diante da gigantesca porta da muralha. Mas o Barão grita: “Abram
os portões, aproveitemos o dia... nada destrói mais um homem do que o medo e a
submissão”. À frente, conduz a todos em direção da muralha da cidade para abrir
os portões, sob a mira dos rifles da exército do prefeito. São tantos cidadãos
que seguem o Barão, que nenhum soldado consegue atirar.
Os portões são abertos e tudo é revelado: o
Barão dizia a verdade. O exército turco foi há muito tempo derrotado. O
prefeito mantinha o mito do perigo turco para submeter a população através do
medo e ignorância.
Nessa sequência que encerra as loucas
histórias contadas pelo Barão de Munchausen está fantasticamente resumida uma prática
de engenharia de percepção que é repetida ad
infinitum pela propaganda política: a lógica da chantagem e do refém.
"Abram os portões!" |
A chantagem e o refém
Para o pensador francês Jean Baudrillard
(1929-2007), a chantagem e o refém são as figuras políticas de manipulação que
representariam o estágio final da evolução do Estado: primeiro o Estado foi
criado para gerir o exercício da liberdade; depois para suprir a necessidade de
segurança; e agora, a prática institucional do terrorismo ao tomar com refém a
população por meio da aposentadoria, seguridade e assistência social.
Porém, Baudrillard alerta: essa é uma
estratégia fatal do “gênio maligno do social”. Ao contrários dos antigos
terroristas de aeroportos e embaixadas que exigiam algo em troca para a
libertação dos reféns, na atual forma fatal de terrorismo de Estado o governo
não negocia a vítima – ela será imolada em um espetáculo midiático, assim como
o são os reféns do Estado Islâmico, decapitados em série para as câmeras – leia
BAUDRILLARD, Jean. As Estratégias Fatais,
Rocco, 1996.
Para além da truculência e oportunismo do
governo do desinterino Temer (que parece seguir à risca o conselho do
publicitário Nizan Guanaes: “torne-se impopular, mas faça o necessário”), a
peça publicitária do PMDB “Se a reforma da previdência não sair, tchau Bolsa
Família, adeus Fies, sem novas estradas, acabam programas sociais” é uma
fratura exposta reveladora da função terrorista do Estado atual.
Se fosse
apenas o desespero de um governo ilegítimo que corre contra o relógio (eleições
2018 e a espada da Operação Lava Jato sobre suas cabeças) para executar o
serviço sujo, poderíamos acreditar que a restituição da Democracia resolveria
tudo, recolocando a função do Estado como gestor do exercício da liberdade.
Porém, esse material publicitário não se
restringe a uma legenda partidária. Criado pela agência Benjamin Digital, do marqueteiro
Lula Guimarães (que comandou a campanha do tucano João Dória Jr. em São Paulo),
foi uma iniciativa tomada pelo Palácio do Planalto – após estudos de
inteligência de rede e monitoramento da Internet e diante da forte resistência
no Congresso contra a reforma previdenciária, perceberam o predomínio da
narrativa da oposição no debate virtual.
A ameaçadora peça publicitária segue a trilha
de um debate iniciado em países laboratórios do chamado “Consenso de
Washington” – Chile e Coréia do Sul nos anos 1990, cujos resultados foram
catastróficos para a população: no Chile, média da aposentadoria reduzida à
metade do salario mínimo e crescimento da desigualdade; e na Coréia do Sul o
desmonte de um secular sistema previdenciário e o desmoronamento de um contrato
social confuciano ao transformar idosos em não-pessoas - entre 2011 e 2015
cresceu em 56% as mortes de idosos abandonados pelas suas famílias.
A função terrorista do Estado
Por
que o Estado evolui para a função terrorista? Antes mesmo que os neoliberais
defendessem a necessidade de um “Estado mínimo”, ironicamente o Estado já foi
minimizado com o esvaziamento do próprio Poder que o reduziu historicamente, de topos da luta política para a produção
de alguma finalidade social, em aparelho de gestão da reprodução
macroeconômica, da reprodução da força de trabalho e consumo e do endividamento
público .
Por isso o Estado evoluiu para uma cena (ou
“obscena”) pior do que a da proibição, da censura e da repressão: a “obscena”
da chantagem. Forma de dissuasão que é pior do que a sanção. Na (obs)cena da
chantagem não se diz mais “não farás isso!”, mas agora “se não fizer isso...”.
A eventualidade ameaçadora é mantida sob suspense.
Na proibição ainda havia uma referencia, uma
lei que poderia ser transgredida. No terror há suspensão – o refém não é um
condenado. Ele está num estado entre vida e morte.
Jean Baudrillard: o terror da suspensão |
Essa é a perfeita logica do terror: não há
mais a violência da proibição, mas o terror da suspensão.
Na peça de propaganda do PMDB sobre a reforma
da previdência a conjunção subordinativa condicional “se” é seguida pelo terror
contíguo do “tchau”, “adeus”, “sem” e “acabam” – em algum lugar não definido no
tempo virá a catástrofe. Assim como dizia o prefeito da cidade cercada por
muralhas no filme As Aventuras do Barão
de Munchausen: se os portões forem abertos...
Chantagem e Transpolítica
A questão é que essa lógica obscena da
chantagem não objetiva uma troca – um refém por um prisioneiro político. Como
afirmava Baudrillard, a lógica da chantagem é transpolítica: não objetiva troca
mas a execução exemplar do refém, sem negociações – apenas ostentação.
A não invasão dos exércitos turcos na cidade
atrás das muralhas não garantia liberdade e vida digna para os cidadãos, mas o
aumento da miséria, medo e submissão. Supostamente o refém aprisionado pelo
prefeito era a segurança dos cidadãos. Mas, como percebeu o Barão de
Munchausen, na verdade todos cidadãos são os verdadeiros reféns, executados
pelo próprio governo.
A satisfação das condições da chantagem não
garantirá a libertação dos reféns. No caso da peça de propaganda, os reféns não
são o Fies, programas sociais ou Bolsa Família. Os reféns somos todos nós, tal
qual os reféns do Estado Islâmico perfilados em uma praia com capuzes apenas
esperando a decapitação como um tétrico show midiático internacional.
Somos todos reféns
E por
que todos tornam-se reféns? Por que ao contrário do velho terrorismo político,
o terrorismo de Estado não tem território – todo os cidadãos são feitos
coletivamente responsáveis pela ordem que reina na sociedade. Se supostamente o
Estado quebra e a dívida pública torna-se impagável todos são responsabilizados
e pego como reféns para serem liquidados como contraprova da existência de uma
dívida real.
Historicamente, as saídas desse impasse
simbólico sempre foram as piores possíveis: a busca de um bode expiatório
(racial ou de classe) para a expiar a culpa dos cidadãos-reféns (o fascismo); a
transformação do resto do mundo como refém como fizeram os EUA na Era Nixon com
a moratória da dívida através do fim do lastro-ouro para o dólar, moeda do
comércio internacional (as bases do terrorismo econômico da Globalização); a
transformação de cidadãos em não-pessoas tratadas como refugo social – velhos,
doentes, crianças miseráveis etc. (o “homo sacer” ou “refugo humano” – leia
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas,
Zahar, 2005).
Afinal, o mito da bomba populacional e da
histeria do controle da natalidade como solução econômica e ambiental também
fazem parte dessa ampla estratégia terrorista de Estado.
O que as reflexões de Baudrillard sobre as
formas do terrorismo moderno nos ensina é que os próprios termos do debate têm
que ser redefinidos: assim como o Barão de Munchausen colocou em xeque a
chantagem do refém (não há turcos por trás dos muros porque há muito tempo os
derrotei), o rombo da Previdência já foi há muito provado como mito – clique aqui.
E mesmo que existisse, seria tão impagável
como todos os papéis das dívidas públicas de todo os países que sustentam a
espiral especulativa da Globalização, o principal mecanismo de terror que pegou
todo o planeta como refém.
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